Seis meses separam as duas jornadas parlamentares do Bloco de Esquerda. Há meio ano, a 9 e 10 de maio, em Évora, os deputados bloquistas aproveitavam a ressaca do primeiro Orçamento do Estado apresentado com o selo da atual maioria parlamentar para exigir mais ao Governo socialista. Era preciso “esticar a corda” na devolução de rendimentos e na reposição de direitos sociais. 174 dias depois, 480 quilómetros a norte, um congresso reunificador pelo meio, com um segundo Orçamento que muitos diziam ser altamente improvável no bolso e com as autárquicas no horizonte eleitoral mais próximo, o grupo parlamentar bloquista esteve em Trás-os-Montes para aumentar a parada: lutar permanentemente por “migalhas” não chega. É preciso ir mais longe. É preciso “derrubar” definitivamente “o muro da dívida pública”.

Não é exatamente um estado de alma para o Bloco. O partido coordenado por Catarina Martins vem defendendo desde há muito tempo a renegociação da dívida pública. Não representa uma revolução no discurso, mas representa uma evolução. Recuperadas bandeiras que eram prioritárias para os bloquistas, como a devolução dos salários, a atualização do salário mínimo, o aumento das pensões e a reposição de direitos sociais, o Bloco vê-se agora numa locomotiva dirigida pelo Governo socialista que insiste, acreditam, em esbarrar contra um muro de betão chamado dívida pública. E tal torna inviável qualquer expectativa de resolução dos problemas estruturais do país.

Há seis meses, em Évora, Catarina Martins definia o tom: este era o tempo de dar emprego a quem não tem, aumentar as pensões mais baixas, garantir condições de trabalho e níveis salariais dignos, proteger e reforçar o ensino público e Serviço Nacional de Saúde, investir na cultura e na ciência. A “geringonça”, definiu então Catarina Martins, era uma “máquina complexa com muitos parafusos que funciona. E que vai funcionado”.

E foi, foi funcionando. E vai, vai funcionado para os partidos que nela navegam. Ainda na sexta-feira, o Bloco aproveitou o primeiro dia de jornadas parlamentares para anunciar um acordo de princípio com o Governo socialista para cortar nas rendas de energia, uma reivindicação antiga do partido. Mas, por muito relevantes que sejam essas conquistas para o país, assumiu Catarina Martins, são “migalhas”, quando comparadas à necessidade de construir um futuro sustentável.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi isso que aproveitou para dizer no jantar-comício de sexta-feira, em Vila Real. “Há neste momento em Portugal, diria em todos os países da Europa, um problema gigantesco com [a definição] de uma política a longo prazo. Para onde estamos nós a caminhar? Como é que respondemos pela nossa economia, serviços públicos e emprego se não tivermos meios? Há sempre um muro à nossa frente. E esse muro chama-se dívida pública. E esse [muro] temos de começar a derrubar”.

Os dirigentes bloquistas nunca colocaram a renegociação da dívida com uma condição sine qua non para a sobrevivência da aliança parlamentar — não será por aqui que a “geringonça” se desmonta, como explicava o Observador. Pelo menos enquanto António Costa continuar a garantir a recuperação de rendimentos. Mas, dois Orçamentos depois, a margem para ir mais longe no desenvolvimento do país aparenta ser cada vez mais reduzida, parece assumir Catarina Martins. “[Não] chega estarmos sempre com estas migalhas e não sermos capazes de respondermos verdadeiramente pela coesão territorial e pelo acesso aos serviços públicos.”

O controlo público da banca e a reestruturação da dívida pública portuguesa sempre foram “as” prioridades do Bloco de Esquerda. E a gestão das divergências entre os dois partidos não tem sido fácil, sobretudo no que diz respeito ao sistema financeiro. Depois do braço-de-ferro no processo de resolução do Banif, os bloquistas têm-se oposto frontalmente à forma como o Governo socialista tem gerido o processo de nomeação do novo conselho de administração da Caixa Geral de Depósitos. De resto, avançaram mesmo com uma iniciativa legislativa para limitarem o salário dos gestores públicos.

A questão da reestruturação da dívida tem sido gerida de forma diferente, pensada no grupo de trabalhado organizado entre socialistas e bloquistas para o efeito. Não existe confronto público entre as duas forças. Há, de resto, uma ala considerável do PS alinhada com o Bloco. Mas o Governo socialista não parece disposto a bater-se em campo aberto pela renegociação. Pelo menos para já. O Bloco, por sua vez, não está disposto a desistir. E a pressão aumenta.

“O Bloco de Esquerda não abandonou nem um milímetro do seu programa. É com muita determinação, com muita convicção e com muito orgulho que negociamos cada pequena medida com PS. Mas não podemos abandonar o nosso programa. E abandonar esta ideia essencial que é salvar o país da asfixia da dívida pública”, deixou bem claro a coordenadora do partido.

Depois de dois dias de jornadas parlamentares que serviram, sobretudo, para o Bloco de Esquerda assinalar o problema de subfinanciamento e de falta de recursos que afeta setores estratégicos do país, como a Saúde, a Justiça e a Educação; cumprido que está grande parte do acordo celebrado entre PS e Bloco; o partido coordenado por Catarina Martins quer agora passar a discussão para outro nível: criar um plano concreto para a reestruturação da dívida. Resta saber se o Governo socialista está disposto a fazê-lo.