Foi uma audição repleta de poesia e de citações. De Camões a Jorge Luís Borges, o ministro das Finanças esteve esta quarta-feira no Parlamento em mais uma audição sobre o Orçamento do Estado para 2017, desta vez já com as tabelas “escondidas”, que tinham faltado na semana passada. Foram essas tabelas, com as estimativas de receita e despesa em contabilidade pública, reclamadas pela oposição e pela UTAO, que motivaram Mário Centeno a ir buscar “o génio de Camões”. E foram essas tabelas que Mário Centeno reiterou não serem imprescindíveis ao debate, uma vez que, na sua opinião, é a contabilidade nacional (assente na lógica dos compromissos do Estado) e não a contabilidade pública (na lógica simples do que entra e sai) que interessa para as contas públicas.

“O génio de Camões já tinha celebrado a palavra ‘cativo’. A oposição está cativa de uma tabela. ‘Aquela cativa, Que me tem cativo, Porque nela vivo, Já não quer que viva’. Quando nos tornamos cativos, por mais transparente que seja a forma, não conseguimos ver o que nela consta”. Foi assim, com poesia, que o ministro das Finanças rematou a sua intervenção inicial aos deputados, para deixar a mensagem de que as tabelas requeridas pelo PSD e CDS foram apenas “um embuste” para “inventar pequenos incidentes”, como viria a dizer o deputado socialista João Galamba. É que, para Centeno, os números que o PSD e o CDS tanto pediram “continuarão sempre a não agradar à oposição”. E nada há a fazer quanto a isso, porque as escolhas do Governo não são apenas “políticas”, mas também “metodológicas”.

A “lírica camoniana” voltaria várias vezes à intervenção do ministro das Finanças, que reiterou várias vezes que a oposição, PSD e CDS, vai “continuar na lírica camoniana à procura dos cativos, mas eles não estão nas tabelas que tanto queriam”. Ou seja, dizia Centeno, queriam as tabelas, agora querem as cativações, mas elas não existem. Ou melhor, existem tanto quanto sempre existiram com os governos anteriores, e não existem de forma mais acentuada nos setores chave da Saúde e da Educação. “Não há cativo na Saúde nem na Educação”, respondeu várias vezes o ministro, perante as perguntas não só da oposição como também do Bloco de Esquerda, que admitiu que essa era uma questão ainda em branco. “É preciso perceber onde estão as cativações e qual é o seu impacto”, questionou a dada altura Mariana Mortágua.

Centeno manteria o registo poético e agressivo para, em resposta a uma deputada do PSD, citar não Luís Vaz de Camões mas sim Jorge Luís Borges. “Só devemos falar para melhorar o silêncio”, disse, acrescentando que “gostaria que [a deputada] preenchesse o silêncio com qualquer coisa útil”. O tom do debate subiu e levou o deputado social-democrata Duarte Pacheco a responder com igual agressividade, interferindo em favor da sua bancada: “Se era para continuar a mentir como tem feito toda a manhã fez muito bem em ficar calado”, disse, depois de já ter acusado a proposta de OE do Governo de estar “cheia de truques, meias verdades e chico-espertices”.

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As citações voltariam mais tarde, mas desta vez com mais matemática e menos poesia. Demonstrando que “não há qualquer persistência no erro” por parte do atual Governo, Centeno recuperou duas frases ditas recorrentemente por professores seus, nomeadamente de Harvard. “Se não receio o erro [é porque] estou sempre disposto a corrigi-lo”, disse, citando Bento de Jesus Caraça, e voltando a ele várias vezes para deixar clara qual era a sua postura em relação ao erro. E outra, desta vez de Derek Bok, ex-reitor da Universidade de Harvard, para contrariar a suposta redução do orçamento da Educação face ao ano em curso. “Se acham que a Educação é cara, tentem a ignorância”, disse.

Citações e poesia à parte, eis os pontos-chave da audição de Mário Centeno, que aconteceu na véspera de arrancar o debate do Orçamento do Estado para 2017 na generalidade:

Carga fiscal aumenta ou diminui?

A oposição tem dúvidas sobre se a carga fiscal em 2017 diminui, como o Governo tem dito sistematicamente (na carta que enviou a Bruxelas na semana passada até disse que as previsões de receita fiscal eram muito conservadoras), mas Mário Centeno mantém a palavra: a carga fiscal vai diminuir, apesar de, como notou o PSD, a receita fiscal e contributiva prevista no Orçamento ser “muito inferior ao que o Governo tinha previsto inicialmente, havendo um desvio de mais de 800 milhões de euros”. “Onde vai o Governo cortar a despesa para compensar este desvio?”, questionou a deputada social-democrata Inês Domingues.

À pergunta do PSD, a explicação de Centeno. É que em 2015 houve receitas extra “para mostrar serviço”, como foi o caso da alteração das regras do regime fiscal dos fundos de investimento, que geraram mais receita em 2015 e menos este ano. Segundo Centeno, só em outubro de 2016 se vão sentir algumas receitas com impostos. A isto acrescem os reembolsos que sobraram do Governo anterior e que representam 900 milhões de euros a mais. Ainda assim, diz, as “bases fiscais estão a crescer muito próximo do esperado, em alguns casos até acima do esperado”. E há uma estabilidade fiscal “que nunca tinha sido experimentada em Portugal” na última década.

Centeno promete “reforço” no Metro e diz que orçamento da RTP e Lusa não prejudicarão serviço público

O problema da “falta de verbas” no Metropolitano de Lisboa, que pode estar a comprometer o serviço prestado, foi levantado pelo Bloco de Esquerda. E Centeno não só admitiu as dificuldades, dizendo que é “público e notório” que o orçamento do Metro para este ano não foi suficiente, como prometeu um “reforço” da verba para investimento. Ainda que o ministro admita apenas uma recuperação “parcial” e que admita também que o metro, assim como outras entidades públicas como a RTP e a Lusa (questão também levantada pelo BE) “não estão isentas” do esforço orçamental exigido.

Na resposta ao BE, o ministro garantiu que o Governo estava a “dar atenção” à situação da Lusa em termos orçamentais e acrescentou que “essa situação vai ser acautelada”. “O serviço público que a Lusa presta terá reflexo orçamental adequado à sua prossecução”, disse. O mesmo para a RTP, com o governante a dizer que o orçamento “terá uma repercussão suficiente para que não seja posta em causa a dimensão de serviço público que também a RTP presta”.

Redução de funcionários públicos prometida a Bruxelas? Governo vai falhar

Foi uma confissão de Mário Centeno. A medida incluída no Orçamento para 2016 para garantir a aprovação em Bruxelas previa uma poupança de 100 milhões. A Comissão Europeia sempre duvidou do valor e agora o Governo admite que não vai dar os resultados esperados. Isto porque o número de funcionários que esperava que se aposentasse ficou “muito abaixo” do esperado pelo Governo, admitiu o ministro, furando a meta de menos 10 mil funcionários, e 100 milhões de euros da poupança que pensava atingir com a saída por aposentação de funcionários públicos.

O objetivo era chegar aos menos 10 mil funcionários apenas através da recuperação da regra de 2 por 1, ou seja, uma entrada por cada duas saídas. Não resultou.

“A verdade é que, ao contrário da previsão inicial, o número de aposentados na Administração Pública está muito abaixo, muito abaixo, do que era a previsão inicial dos serviços que gerem a Caixa Geral de Aposentações. Numa estimativa inicial de 20 mil passámos para 15 mil e os últimos números que temos disponíveis apontam para um nível de aposentação de seis mil e poucos efetivos na Administração Pública onde esta regra se iria aplicar. Depois temos obviamente que tomar em atenção que algumas destas áreas para funcionar precisam de adaptação desta regra e, portanto, do que estamos a falar é de uma regra que é aplicada em média”, disse o ministro.

Orçamento da Educação: uma questão de suborçamentação

As diferentes contas previstas para a despesa do Ministério da Educação na proposta inicial do Orçamento para 2017 (em contabilidade nacional) e nas tabelas enviadas posteriormente (com as contas em contabilidade pública) dominaram grande parte do debate. PSD e CDS insistem que há um corte de 2,7% no orçamento da Educação de 2017 relativamente ao orçamento que será executado este ano (e não relativamente ao orçamento previsto para 2016), com a deputada social-democrata Margarida Mano a vincar que o Orçamento para 2016 estava “suborçamentado”.

Do lado do CDS o deputado João Almeida insiste igualmente que, olhando para a variação da despesa efetiva consolidada, os números mostram que no próximo ano “haverá sempre uma redução efetiva da despesa na Educação”.

Mas não é assim que Mário Centeno vê os números, garantindo que “há um aumento da execução na Educação em 2016 que só é inferior aos 3,3% por pagamentos feitos em 2016 referentes a 2015”. Os reembolsos. Mas, mesmo corrigindo esse efeito, “há um aumento da despesa consolidada em Educação”, garantiu, insistindo que houve sim uma “suborçamentação muito gravosa” nos últimos anos e que é essa trajetória que é preciso corrigir.

“As despesas em Educação cresceram face a 2015. Este crescimento anual acontece pela primeira vez desde 2011. Depois de anos sucessivos de redução do orçamento inicial da Educação, com uma diminuição de 440 milhões de euros entre 2013 e 2015, em 2016 e 2017 este orçamento tem um reforço significativo de 483 milhões de euros. Trata-se apenas de corrigir a suborçamentação do programa orçamental da Educação”, diz. Ou seja, trata-se de corrigir um problema antigo, conclui.