(Cuidado, este texto contém spoilers: o fim da história está contado no segundo parágrafo)

A novela do Orçamento do Estado para 2017 chega aos últimos episódios esta quinta e sexta-feira, com a discussão parlamentar e votação na generalidade, antes de abrir uma segunda temporada da mesma série na especialidade. No geral, a vida de António e Mário — os dois personagens principais — tem sido uma procura constante de equações impossíveis para manterem viva a relação com Catarina e Jerónimo (pronto, e também com Heloísa, que só aparece de vez em quando). Toda a ação se encadeia numa busca de um ideal que parece impossível: agradar, em simultâneo, àqueles parceiros de uma relação mais por interesse que por amor, mas também a Valdis e Pierre (conhecidos como comissários Dombrovskis e Moscovici) que tudo vigiam ao longe, a partir de Bruxelas. Desse estrangeiro pairam sanções se não forem cumpridos os objetivos: no fim da história o herói perde se não for cumprido o défice.

Já se adivinhava, apesar da intriga e do suspense inicial simulado por Catarina e Jerónimo, que a história ia acabar bem: com o orçamento aprovado (eis o spoiler), mesmo com os reparos dos parceiros à esquerda e apesar das críticas da oposição à direita. Vale a pena recordar os episódios desta novela que começou no dia 15 de setembro com um anúncio feito por uma deputada do Bloco de Esquerda: Mariana.

Episódio 1. Espalhar com as patas

A cena começa nos Passos Perdidos, na Assembleia da República. Mariana (da família Mortágua, com pedigree na extrema-esquerda), falou antes do socialista Eurico Brilhante Dias num imposto para tributar os grandes patrimónios imobiliários. O Jornal de Negócios tinha dado a notícia nessa manhã de 15 de setembro, desencadeando uma série de reações, de que o Governo perdeu o controlo. O ruído foi tanto que o Expresso apelidou a nova taxa de IMM (Imposto Mariana Mortágua). Para o CDS era um “assalto fiscal”, e para o PSD uma coisa daquelas não deixava nenhum português “descansado”.

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Discutiu-se muito se a futura taxa afetava ou não a classe média. Afinal, o que era isso de classe média? Mortágua, sempre na frente, dizia que o imposto abrangia apenas 1% da população: os mais ricos. “Temos de perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”, chegou a dizer, e a frase fez escândalo nas hostes da direita ou mesmo entre muitos socialistas. Mas sem haver um desenho definitivo do imposto, a especulação estava lançada.

Roído pelo ciúme, no mesmo dia do anúncio do IMM o PCP também disse que estava a estudar a possibilidade de taxar o património mobiliário (mas a intenção morreu por ali). O efeito do caso no triângulo da “geringonça” gerou um “arrufo” entre PCP e BE: “Parece que andam uns a juntar com o bico e outros a espalhar com as patas…”, escreveu no Avante! o líder parlamentar comunista, João Oliveira, a propósito da especulação que se gerou a partir das palavras de Mortágua.

A direita, sempre contra avanços ou reversões dos novíssimos “amigos” da esquerda, embatucou num vídeo com a recordação de um discurso de Pedro Passos Coelho — personagem que lidera o PSD e luta com o destino por ter ganho as eleições mas perdido o poder — a dizer coisas parecidas a Mortágua em relação ao imposto de selo.

Finalmente, António Costa e Mário Centeno deram ao novo imposto o nome de “adicional ao Imposto Municipal sobre o Imobiliário (IMI)”, que vai incidir sobre contribuintes com património superior a 600 mil euros. No entanto, ainda foi preciso corrigir um erro porque no texto da lei onde se percebia que quem tivesse dívidas ao fisco e à segurança social ficava abrangido pelo “IMM”. No final, fica a saber-se que a receita de 100 milhões será consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. Tudo está bem quando acaba bem.

Episódio 2. Palavra dada não foi honrada

Cenário: jornadas parlamentares do Partido Comunista Português no Porto. Protagonista: outra vez João Oliveira, líder parlamentar, no dia 11 de outubro. “A sobretaxa deve acabar imediatamente. Está previsto em decreto-lei que em janeiro de 2017 é eliminada”, afirmou o líder da bancada comunista aos jornalistas. O suspense subia, mas seria uma pressão pública ou apenas bluff. No dia anterior, o Bloco tinha admitido o fim faseado da sobretaxa de 3,5% ao longo de 2017. Era a linha que parecia prevalecer.

Um flashback: campanha eleitoral de 2015. António Costa tinha uma promessa e “palavra dada” era “palavra honrada”: acabar em dois anos com a sobretaxa do IRS criada pelo Governo PSD/CDS que sobrecarregava todos os portugueses com essa contribuição extraordinária criada no tempo da troika. No entanto, os planos de António para o fim desse jugo fiscal foram encurtados para um ano depois das negociações com Catarina e Jerónimo.

O prazo para esse alívio voltaria, porém, a alargar-se para os dois anos inicialmente previstos pelo chefe do PS. Não havia “margem orçamental”, diria António Costa numa entrevista à TVI. Mesmo com a promessa escrita na lei para a sobretaxa acabar em janeiro de 2017, esta só será eliminada ao longo de 2017, de forma gradual para vários rendimentos.

Episódio 3. O maior aumento da década

Nos estúdios da TSF, Jerónimo revelava detalhes da negociação com o Governo de António Costa: um aumento geral extraordinário de 10 euros para todas as pensões, das mais baixas às mais altas. Argumento principal: “O saldo da segurança social permite uma visão mais aberta”.

Uma semana depois aparecia Catarina a falar em campanha nos Açores e a competir com Jerónimo. O BE não queria tratar as pensões altas da mesma forma que as baixas. “É uma questão de justiça”. As pensões até aos 600 e poucos euros é que precisam de ter “um aumento real e 10 euros parece-nos um valor adequado”.

Foi então que entrou em cena Pedro Mota Soares, do CDS. Pedro desafiou Jerónimo e Catarina (e António) a aumentarem também as pensões mais baixas, como as mínimas e as rurais, que ficavam excluídas do aumento extraordinário de 10 euros. Até Maria Luís Albuquerque, do PSD, vista pela esquerda como uma vilã da direita por ter sido ministra das Finanças no tempo dos sacrifícios, achou “vergonhoso” que as pensões mais baixas estivessem fora.

Não tiveram sorte. A história acabaria com o chamado “maior aumento de pensões da década”: todas as pensões até 838 euros vão ser atualizadas ao nível da inflação e só as pensões de 275 a 628 euros vão ter aumento extra (em agosto). O CDS ainda apresentou uma proposta de alteração que prevê um aumento real de 10 euros também para pensões mínimas para obrigar BE e PCP a tomarem uma posição. Segundo algumas fontes da direita, o alegado enorme aumento das pensões não é bem assim, porque se os ganhos de 10 euros a partir de agosto forem anualizados, os pensionistas a partir dos 500 euros não ganham poder de compra em 2017 face à inflação prevista para esse ano.

Episódio 4. A fat-tax, as taxas e as taxinhas

É sempre o dinheiro a alimentar qualquer boa novela. Neste episódio, Centeno garante que a carga fiscal vai descer, ainda que ligeiramente. Outros membros do Governo preferem dizer que não vai subir. Mário alega que se reduzem os “impostos diretos sobre o rendimento”, sobretudo pela eliminação faseada da sobretaxa.

Para compensar o fim da sobretaxa, cria-se um imposto sobre o grande património (ver episódio 1), outro sobre os refrigerantes açucarados em nome da saúde dos portugueses e outro ainda a incidir sobre munições e cartuchos (embora ninguém alegasse a saúde da caça ou o equilíbrio do ecossistema).

Para Passos Coelho, o Governo estava a substituir impostos temporários por outros definitivos. E a narcotizar os contribuintes, que assim passavam a pagar ao fisco por via indireta, sem dar conta. “A escolha privilegiada que este Governo tem vindo a evidenciar vai mais para agravar os impostos indiretos, que são mais difusos. E as pessoas não se dão tanta conta de os pagar, mas são as pessoas que pagam.”

Assunção Cristas iria mais longe, a lembrar o “aumento de impostos sobre a classe média, por exemplo nos combustíveis”, e disse não esperar para o próximo ano coisa diferente, dado que o primeiro-ministro, António Costa, afirmou que será mantida a linha seguida este ano. “Estamos à espera do tal aumento de impostos indiretos de que [o ministro das Finanças] Mário Centeno falava”, chegou a acusar, antes de saber que impostos indiretos iam ser agravados.

Desculpem outro spoiler, mas toda a gente sabe que o tema deste episódio será revisitado sistematicamente nas próximas temporadas.

Episódio 5. O Plano B e a nova austeridade

A posição de António e Mário torna-se difícil de gerir por ser tão contraditória: não podem fazer todas as vontades a Catarina e a Jerónimo sem agradar ao mesmo tempo aos vigilantes Valdis e Pierre. E não podem mentir descaradamente a nenhum deles. Assim, para agradar aos comissários Dombrovskis e Moscovici há sempre um plano B nunca assumido como tal, que dá pelo nome de “cativações”, palavra com derivações poéticas em Camões que viria a ser usada por Mário Centeno no Parlamento, noutro contexto.

As cativações somam 445 milhões de euros, um garrote nas despesas do Estado que tem sido a garantia dada a Bruxelas de que o défice é mesmo para cumprir: 2,4% em 2016 e 1,6% em 2017. Para Passos Coelho, que noutra novela dramática foi o protagonista das políticas de austeridade, a nova austeridade é esta: “O Governo, simplesmente, está a impor uma poupança forçada aos serviços — e isso significa que, das estradas aos hospitais, até às escolas e prisões, o Estado está sem dinheiro e está a prestar um mau serviço que não é sustentável para futuro”, disse numa entrevista ao Público.

Noutro palco, no Parlamento, Assunção Cristas atacava também António Costa pela direita: “O senhor tem a faca e o queijo na mão e faz cativações, e as cativações significam corte na despesa, significam um enorme ataque aos serviços públicos. O seu Governo e o Governo das esquerdas radicais é o Governo do enorme ataque aos serviços públicos. É também o Governo do enorme ataque ao investimento público”, acusou a líder do CDS.

Volte face no enredo: os papéis parecem invertidos. A direita defende o Estado e até Passos Coelho reclama contra a falta de investimento público. O episódio acaba, dias mais tarde, com Mariana Mortágua a repetir a Mário Centeno, por via da esquerda, na sala do Senado no Parlamento: “É preciso perceber onde estão as cativações e qual é o seu impacto…”

Episódio 6. A polémica das tabelas encobertas

Nos bons argumentos há sempre um agente encoberto que aparece no fim a precipitar um desfecho. Neste caso, eram tabelas, mapas ou quadros com números, como se lhes quiser chamar. Esta acabaria por ser, no entanto, uma daquelas partes em que os espetadores menos especializados têm alguma dificuldade em perceber a gravidade do drama e adormecem. As Finanças não tinham entregado com o Orçamento as chamadas “tabelas de execução provisória” do orçamento de 2016, que permitem comparar o que na realidade o Governo está a gastar este ano com o que prevê gastar no ano seguinte.

Eis que surge então essa nova intriga, quando a Unidade Técnica de Apoio Orçamental acusa o Governo de “retrocesso em termos de transparência orçamental” e a oposição clama pelas tabelas, sobretudo pelas que dizem respeito à receita fiscal desagregada (em contabilidade pública). Mário Centeno responderia assim: “Não podemos dizer que há falta de números. Há é falta de números que agradem à oposição”. (Redundante: quaisquer que sejam os números, nunca agradam a oposição nenhuma).

A questão das tabelas seria resolvida. Não só o ministro Centeno enviaria os chamados “mapas” para a Assembleia da República, como iria à Comissão Parlamentar de Finanças por duas vezes: responder aos deputados sem as tabelas; e depois com as tais tabelas que já permitem uma leitura diferente do Orçamento (por exemplo, colocando em causa a narrativa de que o orçamento da Educação ia crescer). Aí sim, Mário citaria autores sem fim, recordando um poema de Camões para dizer que a oposição estava “cativa” de uma tabela, embora ninguém lhe recordasse que ele também estava cativo das cativações: “Aquela cativa/ Que me tem cativo/ Porque nela vivo/ Já não quer que viva”.

É nesta altura que começa a tocar uma musiquinha e aparece a legenda: “To be continued…”