“Toda a gente conhece histórias de homens gay que vivem fechados no armário e um dia decidem assumir-se, mas alguém que é homossexual assumido e com orgulho e um dia volta para dentro do armário constitui uma história bizarra e muito interessante”, reflete o realizador Justin Kelly, em entrevista ao Observador. “Quis perceber o que aconteceu a este homem e achei que transformar a história dele em filme criaria debate em torno da identidade ‘queer’ e do poder da fé”, acrescenta.

O homem de que se fala é o norte-americano Michael Glatze, nascido em 1975, ativista e fundador de revistas gay para adolescentes. Há uma década, depois de um problema de saúde traumático, anunciou publicamente que rejeitava a homossexualidade e queria tornar-se heterossexual e pastor de uma comunidade religiosa cristã.

O filme que Justin Kelly realizou a partir desta história intitula-se “O Meu Nome é Michael” e estreia-se em Portugal nesta quinta-feira. Foi exibido pela primeira vez em 2015 nos festivais de Sundance e de Berlim.

A personagem de Michael Glatze é desempenhada por James Franco, que nos últimos anos protagonizou, ou produziu, vários filmes de temática gay: “Milk” (2008), “Uivo” (2010), “Interior. Leather Bar” (2013) ou “King Cobra” (2016).

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Trata-se da primeira longa-metragem de Justin Kelly, de 37 anos. Ao Observador, descreve-se como “homossexual assumido e orgulhoso desde os tempos de escola” e explica que o filme lhe “despertou a consciência”. “Tentar entender alguém de cujos pontos de vista discordo levou-me a uma viagem interior”, confessa. “Foi um trabalho difícil, um desafio que me esforcei por ultrapassar.”

[trailer de “O Meu Nome é Michael”:]

A história de Michael Glatze foi contada pela primeira vez em 2011 na revista do New York Times, num artigo de um amigo que o conhecera em São Francisco, 12 anos antes, quando ambos trabalhavam na revista gay “XY”. Michael parecia ter lido todos os livros gay alguma vez escritos, participava em manifestações, apelava aos adolescentes para aceitarem e celebrarem a sua homossexualidade, achava que os “cristãos fundamentalistas deveriam arder no inferno”, tinha um namorado, Ben, e ambos emanavam certeza e felicidade – escreveu Benoit Denizet-Lewis em 2011.

Acontece que Michael não era o que parecia. Ou talvez não fosse apenas aquilo. Fundou uma outra revista, a “Young Gay America”, a partir do Canadá, para onde ele e o namorado tinham ido viver, e fez um documentário sobre a morte de um adolescente homossexual, “Jim in Bold”. Mas em 2007 declarou que “a homossexualidade, quando divulgada junto dos jovens, e pela sua própria natureza, constitui uma forma de pornografia”. Disse mais, em dois textos publicados no “site” conservador World Net Daily: “Foi fácil tornar-me homossexual porque estava fraco”, “pensar sobre a homossexualidade causa-me repulsa”, “vou fazer o que puder para lutar contra isto.”

Aproximou-se de organizações americanas que constituem o chamado “movimento de ex-gays”: homens e mulheres que alegam ter “curado” a própria orientação homossexual. O movimento é muitas vezes descrito como “fundamentalista cristão” e está caído em desgraça desde que o principal dinamizador, Alan Chambers, renegou as ideias que defendia.

Quando o cantor Ricky Martin revelou ser homossexual, Michael Glatze escreveu-lhe uma carta aberta, referindo-se à homossexualidade como “uma jaula em que se está preso” e um “ciclo infinito de busca por mais – em termos sexuais – do que aquilo que é possível receber, um ciclo cheio de nada em que se tenta justificar a conduta com ideologia e linguagem positiva”.

Os atores Emma Roberts e Nick Rehberger contracenam com James Franco

O realizador Gus Van Sant – que muitos lembrarão de filmes como “A Caminho de Idaho” (1991), “O Bom Rebelde” (1997), “Elefante” (2003) ou “Milk” (2008) – soube da história através da imprensa e comentou o assunto com o ator James Franco, dizendo-lhe que deveria reunir-se com Justin Kelly para ambos pensarem numa adaptação ao cinema.

“James queria ser produtor do filme, não estava muito interessado em fazer de Michael, mas achei que o papel se adequava a ele na perfeição, por isso pedi-lhe para ser protagonista e ele, obviamente, aceitou”, conta Justin Kelly.

O autor do artigo no New York Times, Benoit Denizet-Lewis, tornou-se produtor executivo do filme. Também assinou o argumento, juntamente com o realizador e ainda Stacey Miller. A rodagem decorreu no outono de 2014, em Nova Iorque, e o custo total foi de cerca de dois milhões de dólares (1,7 milhões de euros).

Gus Van Sant fez a produção executiva e, segundo Justin Kelly, deu sugestões para o guião e ajudou na montagem, mas “não teve intervenção” na realização. “Ele tinha visto uma curta-metragem que fiz e confiou nas minhas capacidades como realizador e na minha abordagem ao tema.”

As questões de saúde que Michael Glatze enfrentou enquanto vivia no Canadá, retratadas no filme como ataques de pânico e medo extremo de um problema cardíaco grave (idêntico ao que vitimou o pai, quando Michael era criança), têm sido apresentadas como justificação para a súbita mudança de vida e um presumível “despertar da espiritualidade”.

“Ele pensou que ia morrer por causa dos problemas de saúde”, afirma o realizador. “É comum as pessoas virarem-se para a religião quando têm experiências de quase-morte, é uma maneira de enfrentarem o problema e de pensarem o que lhes acontecerá depois da morte. Para a maioria das pessoas, é aterrorizante ver a morte como um momento de escuridão, sem memória, como se nunca tivessem existido. Michael admite que durante algum tempo andou ‘enlouquecido’ a tentar lidar com a morte. Convenceu-se de que teria de ir para o céu para estar junto dos pais. Alguns líderes espirituais cristãos com quem ele começou a dar-se plantaram-lhe a ideia de que os homossexuais não vão para o céu, por isso é que ele se obrigou a ser heterossexual”, analisa Justin Kelly.

Michael vive atualmente com uma mulher e o casal “parece muito feliz”, diz o realizador. “Mas isso não significa que ele vá ser heterossexual para o resto da vida”, entende. “Os seguidores de Michael, e outros líderes cristãos, gostam de pensar que houve uma ‘cura’ e que deus fez com quem ele, de repente, sentisse atração por mulheres, mas não é verdade. Ele próprio admite que passou quase cinco anos a obrigar-se a ser hetero e durante esse tempo esteve várias vezes com homens.”

O realizador informa que não é cristão e nunca foi. Tem, até, uma opinião crítica sobre o tema. “Não me aproximo de religiões, porque na maior parte dos casos são fraudes autênticas. Acho ridículo que, por exemplo, os cristãos façam pouco da cientologia, quando na verdade ambas as religiões acreditam na vida no céu, num livro que outros escreveram e em regras e doutrinas que nem sempre fazem sentido e, mesmo assim, não são questionadas.”

“O Meu Nome é Michael” retrata problemas de saúde de Michael Glatze, apontados como origem da mudança de vida

As reações a “O Meu Nome é Michael” têm sido díspares, com o New York Times a escrever que o realizador revela uma “benevolência acrítica” perante o percurso da personagem central, e o Guardian a considerar a história indecisa entre o retrato fiel e a visão crítica por parte do realizador.

A estas duas opiniões, Justin Kelly responde que “o objetivo foi sempre o de contar a história sem juízos, até porque atacar ou desprezar Michael teria sido o caminho mais fácil”. Concede que alguns espectadores não gostaram da abordagem suave, mas justifica:

“Gosto de apresentar os factos e deixar que o público decida, porque essa é uma maneira de ser fiel àquilo que nós, homossexuais, queremos: não ser julgados por aquilo que somos.” Sublinha ainda: “O filme não agride Michael, mas também não o mostra como resultado de uma ‘cura’ de deus. Ele obrigou-se a mudar por razões com as quais não concordo. Não acho que as pessoas possam tornar-se heterossexuais. Uma pessoa homossexual pode, sim, apaixonar-se por alguém do sexo aposto.”

Se, como diz Justin Kelly, “O Meu Nome é Michael” pretendeu pôr o público a debater identidades e fé, o discurso que ele apresenta – e aquele que rebate – parece apontar noutro sentido, que pode ser formulado através de uma pergunta: ainda será adequado, no nosso tempo, classificar os comportamentos sexuais a partir das categorias homo, hetero ou bissexual?

No início do filme, a personagem Michael afirma que “ser gay é coisa que não existe”, “é uma identidade falsa, ninguém deveria definir-se a si mesmo a partir do seu desejo”. Mas depois aponta a heterossexualidade como a categoria desejável. O realizador comenta.

“Não acho que se trate de uma identidade falsa, mas concordo que a sexualidade é flutuante e se não lutássemos tanto para separar a homossexualidade da heterossexualidade a vida das pessoas gay seria mais fácil. ‘Gay’ tornou-se uma maneira de estereotipar, significa que alguém anda, fala e se comporta de certa forma. É esta, pelo menos, a perceção de muitos heterossexuais.”

Justin Kelly aprofunda a reflexão e encontra um paradoxo:

“Esta ideia moderna – moderna porque os termos ‘heterossexual’ e ‘homossexual’ têm apenas um século – de que alguém que dorme ou tem encontros com pessoas do mesmo sexo é imediatamente considerado gay, gera muita homofobia. As pessoas deveriam poder ter sexo com quem quisessem, sem serem julgadas ou catalogadas por causa disso. Mas é complicado porque, ao mesmo tempo, a identidade gay representa força em termos numéricos, de progresso, de reconhecimento, de sentido de comunidade, ajuda os homossexuais a irem ao encontro dos seus pares e a sentirem-se mais confortáveis com aquilo que são.”

O realizador estabeleceu contacto direto com Michael Glatze durante o período de preparação do guião. Viajou até ao estado do Wyoming para se encontrar com ele. De resto, o filme só foi possível porque a produtora pagou direitos de autor sobre esta história de vida (“life rights”). Justin Kelly confessa que “não esperava” conseguir um diálogo franco com um ex-gay tornado pastor, por isso surpreendeu-se ao descobrir um homem “incrivelmente inteligente e estranhamente aberto aos pontos de vista dos outros”. O encontro representou uma “experiência muito intensa e esclarecedora”.

Entretanto, será que Michael Glatze gostou do retrato que lhe fizeram no grande ecrã? “Como a mudança de paradigma foi tão difícil, ele diz que ao ver o filme ganhou consciência do radicalismo dos seus atos e da forma como, em certos momentos, teve um efeito negativo sobre os outros. Acho que ele se sente mal por isso”, responde Justin Kelly.