A Catalunha teve um dia confuso. Naquilo que foi uma jornada de notícias contraditórias, falsas partidas e fogos fátuos, a Catalunha esteve mais perto do que nunca da reconciliação com o Governo de Espanha mas acabou por ver o conflito com o poder central entrar numa fase letal, que vai culminar com a aplicação cada vez mais certa do Artigo 155.

No mesmo dia em que chegou a ponderar a opção preferida de Madrid — a convocação de eleições regionais antecipadas — Carles Puigdemont acabou por rejeitar esse cenário, acusando o Governo de Mariano Rajoy de não lhe dar “garantias”. Do seu lado, a única garantia que parte agora de Madrid é a aplicação do Artigo 155, que depois de ser aprovado na especialidade será votado na manhã desta sexta-feira pelo Senado. Considerando o que Partido Popular tem maioria absoluta naquela câmara, e acrescentando o facto de estar longe de ser a única força política favorável a esta bomba atómica, a votação não deverá passar de uma mera formalidade.

O relato deste 26 de outubro, o 26.º dia desde que o “Sim” ganhou no referendo à independência que foi declarado ilegal pelo Tribunal Constitucional, é tudo menos uma linha reta.

Às 9h00 desta sexta-feira, o Senado vai aprovar o Artigo 155. Duas horas depois, o parlamento regional catalão pode declarar unilateralmente a independência

Ao nascer do sol, a imprensa espanhola e também a catalã dava conta da conclusão da maratona de reuniões entre os partidos do governo regional da Catalunha, que discutiam as linhas de ação a tomar perante a cada vez mais provável aplicação do Artigo 155 da Constituição espanhola contra a Generalitat. “Radicais empurram Puigdemont para uma declaração unilateral da independência”, lia-se na manchete do La Vanguardia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Porém, ao final da manhã, as notícias começaram a mudar. Primeiro, por causa de um fax. Na véspera, tinha sido noticiado que Carles Puigdemont não ia aceitar o convite para apresentar as alegações do governo regional contra a aplicação do Artigo 155, no Senado. Porém, na manhã desta quinta-feira, a Generalitat negou essa rejeição e disse que enviou um fax com o texto das alegações. Este ia assinado por Carles Puigdemont, que depositava no delegado do governo regional da Catalunha em Madrid a tarefa de se apresentar no Senado. Só que o Senado disse que esse fax chegou com atraso: em vez de chegar até à hora limite, as 10h00, só deu entrada às 10h23. Neste documento, dizia Puigdemont a Mariano Rajoy, lê-se que a aplicação do Artigo 155 é “incompatível” com a destituição do governo regional.

Mais minuto menos minuto, e apesar dos tropeções, começava a adivinhar-se aqui uma aproximação de Carles Puigdemont a uma hipotética cedência a Madrid. E foi precisamente essa ideia que saiu reforçada quando saíram notícias que apontavam para um imprevisível volte-face: para evitar a aplicação do Artigo 155, Carles Puigdemont estaria disposto a dissolver o parlamento regional e a convocar eleições antecipadas para 20 de dezembro. Em suma, estaria a recuar em praticamente toda a linha.

A notícia espalhou-se como fogo num palheiro entre os partidários do independentismo. A partir da Esquerda Republicana Catalã (ERC), o segundo maior partido que compõe a coligação governativa da Catalunha, saiu a promessa de bater em retirada caso houvesse eleições antecipadas. Dos Democratas da Catalunha, o terceiro maior partido no poder, pediu-se a Carles Puigdemont que mudasse de ideias. Até no PDeCAT, o partido do líder da Generalitat, houve deputados a anunciar a sua demissão. “Não partilho a decisão de convocar eleições. Renuncio ao meu mandato de deputado e saio do PDeCAT”, escreveu o deputado Jordi Cuminal. Nas ruas, começava a gritar-se: “Eleições é traição, Puidgemont demissão”.

Mal começaram a correr as notícias de eleições antecipadas a 20 de dezembro, foi marcada uma conferência de imprensa onde Carles Puigdemont iria anunciar a sua decisão. A hora marcada eram as 13h30 locais (12h30 de Lisboa). Quase meia hora para lá do prazo, foi anunciado que afinal a conferência de imprensa seria às 14h30 locais (13h30 de Lisboa). E, chegada essa hora, o discurso foi afinal cancelado.

Sem “garantias”, Puigdemont entrega decisão ao parlamento independentista

Carles Puigdemont viria a falar, enfim, às 17h00 locais (16h00 de Lisboa). E, afinal, veio dizer que não ia haver eleições antecipadas.

Sabem que estive disposto a convocar eleições sempre e quando houvesse garantias de que elas aconteceriam com absoluta normalidade”, disse o presidente do governo regional catalão. Mas, segundo acrescentou, “não existe nenhuma destas garantias que justifiquem hoje a convocatória de eleições”.

Por garantias, leia-se, o recuo por parte do Governo de Mariano Rajoy na aplicação do Artigo 155 caso fossem realizadas eleições regionais antecipadas.

No seu discurso, Carles Puigdemont transferiu as decisões para o parlamento regional da Catalunha, onde os independentistas têm maioria. “Chegados a este ponto, corresponde ao parlamento proceder da maneira que a maioria parlamentar determinar”, disse. Daqui, poderá resultar tudo o que já estava na mesa: declaração unilateral da independência; declaração unilateral da independência seguida de eleições com caráter constituinte; convocatória de eleições regionais antecipadas.

Carles Puigdemont recusou convocar eleições antecipadas e transferiu todo poder decisório para a “maioria do parlamento” regional

A votação de resoluções por parte do parlamento regional da Catalunha, perante a iminente aplicação do Artigo 155, ficou marcada para esta sexta-feira às 12h00 locais (11h00 de Lisboa). Do lado dos independentistas, ficou a promessa de avançar para uma declaração unilateral da independência da Catalunha, sob a forma de república.

“Amanhã, vamos fixar um novo rumo para o nosso país”, garantiu Lluís Corminas, do Juntos Pelo Sim. Alberto Botran, da CUP, também apontou na mesma direção. “Entre hoje e amanhã, que ninguém se esqueça do mandato popular do 1 de outubro. Os escritórios são obscuros, mas as ruas são luminosas”, disse o deputado daquele partido de extrema-esquerda, essencial para a maioria independentista dentro do parlamento regional.

Terminou assim um dos dias mais imprevisíveis da Catalunha pré-independente. Não sem antes se dar a revogação de uma demissão. Isso mesmo: o deputado do PDeCAT Jordi Cuminal voltou atrás. Também no Twitter, perguntaram-lhe: “E agora? Deixas de renunciar, pelo menos por agora?”. Na resposta, disse tudo aquilo que este dia não foi: “Claro”.

O Artigo 155 vai para a frente e não tem volta atrás

Enquanto na Catalunha reina a incerteza quanto aos rumos a tomar, da parte de Madrid avolumam-se as certezas do caminho a seguir: o Artigo 155. Esta quinta-feira, o texto que prevê os trâmites da aplicação daquele artigo constitucional — que prevê sanções, entre as quais a destituição dos poderes autonómicos, caso uma região incumpra a Constituição espanhola — foi aprovado na especialidade. Esta sexta-feira, pelas 10h00 locais (9h00 de Lisboa), vai ser votado em sessão plenária do Senado.

A apresentação da proposta foi feita pela vice-Presidente de Governo, Soraya Sáenz de Santamaría, contempla quatro objetivos com a aplicação do Artigo 155: recuperar a “legalidade, a convivência, a normalidade”; acabar com o “desassossego”; recuperar o desenvolvimento económico; e celebrar eleições “em situação de normalidade política e neutralidade institucional”.

Vice-Presidente do Governo: “Converteram o parlamento num mero instrumento de sedição”

Durante a sessão no Senado, o PSOE pediu ao PP que admitisse a possibilidade de voltar atrás no Artigo 155 caso fossem convocadas eleições antecipadas. A resposta foi negativa e tornou claro aquilo que é a reciprocidade de desconfiança entre Madrid e a Catalunha: nem Madrid confia na Catalunha para fazer umas eleições autonómicas por si só; nem a Catalunha confia em Madrid para levar a cabo umas eleições nas suas condições.

Nesta sessão do Senado — onde foi negada a palavra ao representante do governo regional da Catalunha, presumivelmente pelo atraso de 23 minutos com quem chegou o fax catalão àquela câmara — a número dois do Governo de Mariano Rajoy tornou a falar com dureza sobre Carles Puigdemont e o seu governo. “Converteram o parlamento num mero instrumento de sedição”, disse Soraya Sáenz de Santamaría. Além disso, procurou sublinhar o isolamento que Carles Puigdemont tem encontrado a nível internacional, depois de ter pedido mediação estrangeira para falar com Madrid. “Não conseguiram o apoio da União Europeia, não conseguiram o apoio de nenhum país sério”, disse. “Na Europa, só encontraram apoio entre aqueles que querem ferir a própria União Europeia. Radicais de todo o tipo.”