Era um sábado. A 25 de novembro de 1967 o dia tinha sido abençoado por chuviscos: só entre 1965 e 1966 tinha chovido mais do que nos últimos 80 anos, mas 67 estava a ser um ano particularmente seco. Não tinha chovido o outono inteiro e aquelas gotas eram bem-vindas. Mas tudo começou a piorar entre as sete da tarde e a meia-noite. Às duas da manhã, a chuva intensa fez com que a água entrasse pelas casas das zonas baixas da península de Lisboa e levantasse as camas até ao teto em Vila Franca de Xira, Alhandra, Cascais, Alenquer, Loures, Odivelas e Oeiras.

Enquanto toda a gente dormia, o nível da água do Tejo tinha subido quatro metros em cinco horas. Naquela noite choveu um quinto do que choveu em todo o ano de 1967. A água deixaria depois um rasto de morte e destruição: terão morrido mais de 700 pessoas, só no primeiro dos três dias de chuva constante. Mas o Estado Novo quis que os jornais parassem de contar os mortos: para Salazar, os números ficaram nos 462.

Os números eram contudo pouco coerentes: passados 50 dias das grandes cheias de Lisboa, ainda apareciam corpos por debaixo das ruas enlameadas e dos edifícios destruídos pela força das correntes, mas as cheias de 1967 já não eram notícia dos jornais por essa altura. No domingo seguinte à desgraça, o Diário de Lisboa fazia manchete com os “mais de 200 mortos” que tinham sido anunciados até aquele dia. Em Lisboa, a Avenida de Ceuta ficou debaixo de água, a Avenida da Índia encheu-se de lama, as linhas de comboio estiveram submersas e a Avenida da Liberdade e Praça de Espanha pareciam uma piscina. A 29 de novembro, o Diário de Notícias confirmava 427 mortos e, mais tarde, as autoridades atualizavam o número de vítimas mortais para 462. A península da capital não sofria um evento tão mortífero desde o terramoto de 1755 e António Salazar sabia-o. Um dos funcionários do Estado Novo ligou a João Paulo Guerra, jornalista da Rádio Clube Português, e deu a ordem: “A partir desta hora, não morre mais ninguém”, recorda Alice Vieira, na altura jornalista do Diário de Lisboa, numa entrevista ao Público. A partir daí, não haveria mais notícias sobre o caso, porque as que havia eram travadas pela censura.

Depois daquele aviso, o Governo passou a mandar documentos para as redações na tentativa de suavizar as notícias sobre um desastre cuja dimensão estava perante o olhar de todos. Um projeto de Francisco da Silva Costa, Miguel Cardina e António Batista Vieira — “As inundações de 1967 na região de Lisboa: Uma catástrofe com diferentes leituras” — citava alguns desses telegramas: “Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos”. Mais tarde, outro aviso: “Os títulos não podem exceder a largura de meia página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Atividades beneméritas de estudantes — Cortar”.

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Mais de 20 mil casas ficaram destruídas. Em alguns locais do distrito de Lisboa, a água chegou a concentrar-se num volume de 170 litros por metro quadrado. Apenas um grupo de pessoas não se calou perante o lápis azul de Salazar: os estudantes. Jorge Simões e José Brazão estavam com Zeca Afonso numa viagem entre Coimbra e Lisboa quando souberam do que estava a acontecer através da rádio. Os dois juntaram-se a António Alves Redol, que já não estudava mas continuava ligado à associação de estudantes, no Instituto Superior Técnico para engendrarem um plano para ajudar a população: à Rádio Renascença, Danilo Matos, um dos estudantes que participou na iniciativa, disse que “a causa de tanta desgraça não foi a chuva, foi a miséria. “Foram postas a nu as condições sociais em que muitas pessoas viviam nesta cidade, mas também a inoperância do governo”: “O governo atrasou-se, paralisou, só conseguiu mandar para o terreno o Movimento Nacional Feminino, que só ia atrapalhar, e a GNR, que era uma polícia preparada para reprimir e não para salvar gente. Essa inoperância gerou uma enorme revolta na população”. Aos estudantes ninguém calou: o jornal “Solidariedade Estudantil”, que surgiu depois das inundações, era o único que fugia à censura. Vendia 10 mil exemplares por número.

As cheias foram de tal modo catastróficas que também mereceram a atenção internacional: o fotógrafo inglês Terence Spencer, vencedor de um World Press Photo em 1968, veio a Portugal para fotografar sem filtros ditatoriais os cadáveres, a lama e os escombros pelas ruas lisboetas. Terence Spencer vendeu as fotografias à revista LIFE e a notícia sobre as cheias de 1967 foram publicadas a 8 de dezembro. O artigo não tinha mais do que um parágrafo e, embora sublinhasse a falta de ordenamento urbanístico em Lisboa, ficou-se pelo número oficial de mortos, muito inferior ao real, que só foi desvendado depois do 25 de Abril.

Veja na fotogaleria as imagens que ficaram das cheias de 1967.