A arte falou mais alto na primeira metade do último dia reservado aos desfiles do Portugal Fashion. As passerelles do Parque da Cidade do Porto viraram as costas ao mau tempo, que se continuou a fazer sentir, e deixaram-se invadir por coordenados inspirados em pinceladas de diferentes técnicas. Coube a Nuno Baltazar, que arranca 2018 a celebrar 20 anos de trabalho (o designer não gosta da palavra “carreira”), a abrir as hostilidades, com a coleção “Studio”, revelando pontos em comum com o processo criativo da pintora Paula Rego. Coube a Katty Xiomara dar o apontamento final com peças impregnadas de cor e de texturas.

O desfile de Nuno Baltazar, cuja banda sonora foi bastante mais calma do que o costume, com monólogos e o som de máquinas de escrever à mistura, começou por revelar coordenados marcados pela presença de tule, com ombros acentuados e silhuetas vincadas. Daí progrediu para saias rodadas com faixas metalizadas junto às bainhas, vestidos cintilantes e fatos masculinos de corte exímio. Durante a apresentação da coleção foram notórios os momentos de contraste: entre luz e sombra, compacto e translúcido, pesado e etéro e até entre fantasia e austeridade.

“Quando estava a preparar a mudança de loja [que em breve vai abrir na baixa portuense] tive de recuperar todo o meu percurso, ir ao início, à ideia da construção. Aí percebi que existem elementos recorrentes no meu trabalho, os quais queria mostrar de forma diferente”, conta Nuno Baltazar já findo o desfile que lhe valeu os parabéns das dezenas de pessoas que o seguiram até aos bastidores. Não é por acaso que alguns dos vestidos de estopa de linho fazem lembrar bustos, com direito a etiqueta de fora, fechos a fingir e anotações várias. “É sempre importante voltarmos ao início, não tomarmos o nosso trabalho como uma rampa que é sempre a subir. É preciso voltar atrás para não nos deslumbrarmos.”

A coleção apresentada por Nuno Baltazar centrou-se no processo criativo dele e da artista Paula Rego. ©Ugo Camera

O que interessa verdadeiramente ao designer com duas décadas de percurso é — repita-se — o ato de criar. Depois de uma peça estar acabada, diz, ela deixa de lhe pertencer. E é precisamente aqui que entra a influência de Paula Rego: “Uma das artistas que mais admiro a esse nível é a Paula Rego. A construção, o imaginário dela… As coisas que ela desenha nunca saem diretamente da cabeça para o papel, há uma preparação. Ela ouve no fado no estúdio, tal como eu. Há muitos pontos de união, até nas angústias”. Nuno Baltazar foi buscar inspiração ao atelier da artista, sobretudo às personagens que nele habitam, mas também encontrou interesse em algumas obras da artista. É o caso do quadro “O Baile”, cujos vários tons de azul e luminosidade tiveram entrada direta para a coleção.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Também Katty Xiomara encontrou consolo na arte, em particular naquela abstrata com uma dose equilibrada de cubismo. Há figuras geométricas, muitos traços e estampados criados pela própria, imagens que se replicam ao longo da coleção, conta Xiomara ainda os preparativos para o desfile vão a meio. É num intervalo de relativa calma que a estilista tenta explicar uma coleção intensa, com muitos estímulos visuais: nos diferentes coordenados encontramos fitas bordadas, lenços lisos e outros estampados e ainda padrões localizados, em golas e em punhos.

A maquilhagem das modelos, a fazer lembrar salpicos de tinta, acompanhou o mote da coleção de Katty Xiomara. © João Porfírio/Observador

“Isto tem que ver com arte abstrata, mas tudo surgiu porque quis pensar numa palavra que descrevesse a nossa sociedade de hoje. A palavra que surgiu, que pode não ser tão óbvia, é ‘abstrata'”, diz. É a partir desta premissa que a designer mistura uma grande diversidade de materiais — seda, algodão, fazenda, lã, renda, camurça, pêlo sintético e até burel português — para brincar com texturas e sobreposições. A variedade estendeu-se ainda às cores, que viajam de azuis e rosas até alcançarem um laranja vivo e intenso. O styling, a fazer jus à coleção, marcou pela diferença, com as modelos a desfilarem com uma maquilhagem peculiar e interessante, a fazer lembrar, muito a propósito, salpicos de tinta azul, branca e vermelha. E o que dizer da passerelle? Quem além das muitas “obras” que desfilaram, em pano de fundo estavam quadros criados de propósito e a gosto de Katty Xiomara.

O último dia da 42º edição do Portugal Fashion ainda está longe de terminar. A cortina da moda só fecha depois de Luís Onofre e Diogo Miranda revelarem as respetivas coleções para a próxima temporada outono-inverno 2018-2019.