A 9 de junho de 1935, quatro dias antes de completar 47 anos, Fernando Pessoa escreveu uma série de poemas dedicados aos três santos populares — Santo António, S. João e S. Pedro. De estilo claramente popular, o tríptico não pretendia, contudo, celebrar as festas de Lisboa ou os seus santos. Como expôs o historiador José Barreto, num artigo publicado no mais recente número da revista Pessoa Plural (disponível online a partir desta quarta-feira, data em que se celebram os 130 anos do autor), Pessoa quis sim contestar “a mobilização e apropriação dos ‘santos populares’ lisboetas pelo Estado Novo e pela Igreja Católica”, numa altura em que as celebrações mais tradicionais começavam a ser substituídas por um grande evento de propaganda do regime.

Escrito poucos meses antes da morte de Pessoa, em finais de novembro desse mesmo ano, o tríptico não chegou a ser editado durante a vida do poeta, que chegou a ponderar publicá-lo, como testemunham vários projetos editoriais datados de 1935 e reproduzidos por José Barreto nos anexos do artigo. Num deles, citado pelo historiador, Fernando Pessoa refere até o título que pretendia dar ao conjunto: Praça da Figueira. Num outro manuscrito, que faz parte do espólio guardado na Biblioteca Nacional de Portugal, Pessoa pondera incluir o tríptico num volume intitulado Canções da Derrota, onde constariam também os poemas “À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”, “Elegia na Sombra”, “Reminiscência” (onde se inclui “O Capitão”, “O Contramestre” e “O Mar”) e “Chamada”, todos eles com uma grande (e pesada) carga simbólica.

Apesar dos desejos do poeta, os três poemas só foram publicados em 1986, pela editora Regra de Fogo, sem porém incluir o título Praça da Figueira. Esta primeira edição vinha acompanhada de uma introdução da autoria de Alfredo Margarido, fortemente contestada por Barreto no artigo publicado na Pessoa Plural deste mês. O tríptico dos santos populares voltou a ser editado apenas uma outra vez, em Poemas de Fernando Pessoa 1934-1935, um dos volumes da edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda. O artigo de José Barreto é, contudo, o primeiro a tentar descortinar o verdadeiro significado político e social dos poemas de Fernando Pessoa aos “santos lisboetas de junho”, como ele lhes chamou.

Praça da Figueira, centro das festas lisboetas

Uma das razões que terá levado Fernando Pessoa a escolher o título Praça da Figueira terá sido, segundo José Barreto, a “enigmática atração” que “o grande mercado abastecedor” — que exista no lugar da estátua equestre de D. João I, que hoje ocupa uma boa parte do espaço — exercia “há muito” sobre o poeta. “Testemunha-o o ‘Soneto já antigo’ de Álvaro de Campos, datável de 1915 e publicado pela primeira vez na revista Contemporânea, em 1922, no qual o poeta confessa que ama ‘aquele lugar lógico e plebeu’ sem, todavia, saber porquê nem se importar com isso”, lembra o historiador no artigo “A reinterpretação religiosa e política dos santos populares lisboetas na Praça da Figueira de Fernando Pessoa”. Outro motivo, mais óbvio, terá sido o papel da praça durante os festejos dos santos populares em Lisboa.

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Todos os anos, na noite da véspera do dia de Santo António (12 de junho), as vendedeiras organizavam no antigo mercado da Praça da Figueira um gigantesco arraial. Era aí que, quando a noite já ia longa, se juntavam os foliões de todos os arraiais da cidade, enchendo as ruas até ao Rossio. Dançava-se, comiam-se sardinhas e bebia-se vinho — muito daquilo que se faz ainda hoje. Acendiam-se grandes fogueiras, queimavam-se alcachofras e deitavam-se as sortes, práticas que terão tido origem nos festejos de S. João e que terão sido apropriadas pelas gentes de Lisboa. De acordo com o relato do príncipe Feliz Lichnowsky, que passou por Portugal em 1842, a Praça da Figueira já era então o “ponto nevrálgico” das festividades. E continuou a sê-lo, por muitos e muitos anos, até demolição do mercado, em 1949.

António, o santo de tudo e de todos: a história das Festas de Lisboa

Como explica Barreto, o desmantelamento do velho mercado da Praça da Figueira foi o “golpe final” num processo de “cooptação, promoção e enquadramento pelo poder político” dos santos populares lisboetas que, durante o Estado Novo, passaram a fazer parte de um “programa de âmbito e propósitos mais vastos, as Festas de Lisboa”. Organizadas pela primeira vez em 1934, na primeira quinzena de junho, as festividades apresentavam-se como “uma oportunidade de associar as tradições festivas dos santos populares aos desfiles, cortejos históricos, exposições e outros eventos de propaganda e consagração do regime, associação em que as autoridades viam ‘insofismáveis benefícios de ordem pública’”. Nelas, o Estado e a Igreja trabalhavam em conjunto.

“O eixo dos festejos dos santos populares começou então a migrar para o Terreiro do Paço, a Avenida da Liberdade e o Parque Eduardo VII. Estes locais mais espaçosos permitiam acolher o prato forte do novo programa, o popular concurso das marchas dos bairros, uma ‘tradição’ inventada em 1932 por José Leitão de Barros, explorando o espírito de competição bairrista”, refere o historiador.

Os santos do “povo profano”, que “não sabe onde é o céu”

Na noite de 9 de junho de 1935, quando Fernando Pessoa escreveu os três poemas (segundo relato do próprio), realizou-se em Lisboa o concurso das marchas populares. “Não sabemos que contacto direto Pessoa terá tido, se teve algum, com o ambiente festivo que nesses dias e noites atraiu grandes multidões às ruas do centro da cidade”, afirma Barreto, lembrando que o poeta “estava descontente com o ascendente ideológico e cultural que a Igreja Católica, apoiada pelo governo, estava visivelmente a conquistar na vida nacional”. Por esta e outras razões, “não custa imaginar que Pessoa estivesse recolhido naquele dia festivo, talvez até fora de Lisboa, e ali tivesse escrito os 320 versos da trilogia” e o poema “Reminiscência”, datado do mesmo dia.

Segundo o próprio Fernando Pessoa, o tríptico dos santos de junho não pretendia ser popular, uma vez que foi baseado no “obscuro sentimento pagão do nosso povo”, que o poeta pretendia elevar a “outro nível”. “Realmente, os poemas não são populares, mas Pessoa opõe neles a emoção popular e o sentir pagão do povo aos propósitos da hierarquia da Igreja e do poder”, frisa José Barreto, autor de Fernando Pessoa — Associações Secretas e Outros Escritos.

É isso que Pessoa faz com Santo António, a quem dedicada o primeiro poema. Começando por dizer que foi “exatamente” no dia do santo padroeiro de Lisboa que nasceu, o escritor (que se chamava Fernando António por isso mesmo) opõe “ao santo feito pelo papa, ao franciscano e ao insigne pregador que Santo António era para a Igreja Católica”, a “imagem paganizada e dionisíaca consagrada pelas festas populares e pelo povo, que não seria seu devoto, mas sim seu amigo”, como refere o historiador. Ou seja: ao despi-lo do seu “franciscano sentir, católico, apostólico e romano”, Pessoa tenta devolver Santo António – “o santo das raparigas”, de Lisboa e do povo, que tem “uma auréola de cantigas” — ao “povo profano”, que “não sabe onde é o céu”.

“És este, e este és tu, e o povo é teu –
O povo que não sabe onde é o céu.
E nesta hora em que vai alta a lua,
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E, cheio de um prazer mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.”

— Excerto de “Santo António”

Este contraste entre o que é popular e o que é católico volta a ser explorado no segundo poema do tríptico, dedicado a S. João, o “Precursor”. Neste, Pessoa explica que, para o povo, o santo não é precursor de nada — é apenas “um rapaz ainda menino que tem por missão boa” ter “um cordeiro pequenino” ao colo. O significado desse cordeiro “não tem cheiro” porque, para as pessoas comuns, “o cordeiro é o cordeiro” e “o menino sorri e a vida esquece”. Já perto do final do poema, Pessoa vai mais longe (muito mais longe do que nos outros dois poemas do conjunto), apresentando S. João como o símbolo pagão do solstício de verão e como maçon, opondo-o claramente ao Estado Novo.

“Para isso, constrói todo o poema em torno da associação de S. João à primeira organização maçónica, a Grande Loja de Londres, depois cismada Grande Loja de Inglaterra, que foi realmente criada a 24 de junho, no ano de 1717, e que adotou S. João Baptista como seu patrono”, explica José Barreto. “Pessoa explora este dado histórico, ficcionando S. João como o secreto fundador da Maçonaria, em resultado de uma ‘partida’ que o santo, descido à terra disfarçado, teria feito à ‘Igreja constituída’, para a arreliar e se vingar dela.” Pessoa pensou até em chamar “S. João do Verão” ao poema, título que depois encurtou para “S. João”. “S. João do Verão e S. João do Inverno (este, o Evangelista, celebrado em dezembro) são designações maçónicas das festas dos solstícios”, refere Barreto.

Convém aqui lembrar que, pouco antes da composição destes três poemas, Fernando Pessoa esteve envolvido numa polémica a propósito da extinção das associações secretas em Portugal, que procurou, sobretudo, atingir a Maçonaria. A 4 de fevereiro de 1935, Pessoa publicou, no Diário de Lisboa, o famoso artigo “Associações Secretas”, no qual se mostrou contra a decisão da Assembleia Nacional, acusando os deputados portugueses de falta de conhecimento na matéria. Como lembra José Barreto, a polémica foi breve, até porque foi “logo silenciada pelo chego do governo” (apesar disso, Pessoa não se livrou de ser alvo de uma “vigilância redobrada da censura e impedido de voltar a escrever sobre a Maçonaria”). Passados quatro meses, Fernando Pessoa ainda não se tinha esquecido do sucedido, voltando a desafiar a Igreja e em especial o regime salazarista através de um conjunto de poemas que lhe poderiam ter causado sérios problemas caso fossem divulgados.

O último poema, “S. Pedro”, é diferente dos dois primeiros, talvez porque “aquilo que o poeta quis dizer ficou perfeitamente expresso em ‘Santo António’ e ‘S. João’”, como sugere o investigador. Isto significa que o terceiro poema não tem “vestígios da intentada separação dos santos populares das zonas de influência da Igreja Católica e ao Estado”, que podem ser encontrados nos dois primeiros. É por esta razão que José Barreto considera o tríptico “desigual” e que “se o objetivo de Pessoa tivesse sido e de separar os três santos populares das zonas de influência da Igreja Católica e do Estado Novo, poderíamos constatar que o poeta só o fez claramente em relação a Santo António e a S. João”. Ao terceiro e último santo restou apenas “a missão de completar a trilogia dos santos lisboetas”, papel que Pessoa fez questão de deixar claro numa estrofe do poema:

“Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia”

— Excerto de “S. Pedro”

Apesar deste desequilíbrio, o objetivo dos poemas que compõem Praça da Figueira é claro: atingir o Estado Novo e a Igreja Católica portuguesa. Estes inserem-se na “torrente de polémica e oposição que foi jorrando da pena do escritor ao longo de 1935, até à sua morte”, refere José Barreto, lembrando que, “no período em que escreveu estes três poemas, Pessoa introduziu uma série de escritos políticos anti-salazaristas, textos panfletários anticatólicos” e ainda “uma dúzia de poemas satíricos contra Salazar e o seu regime”. Muitos destes textos foram divulgados pelo próprio investigador no volume Fernando Pessoa – Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, publicado em 2015. Barreto acredita que foi também na sequência destes textos que Fernando Pessoa escreveu a “Elegia na Sombra” (que datou de 2 de junho de 1935), um poema de tom pessimista no qual o sujeito poético lamenta:

“Como longínquo sopro altivo e humano
Essa tarde monótona e serena
Em que, ao morrer o imperador romano
Disse: Fui tudo, nada vale a pena.”