A história já com dois séculos dos ténis ou sapatilhas é feita de lutas e campeões, ou não tivessem eles nascido como calçado desportivo, pensados para correr, competir, ganhar. Se o século XX foi o tempo das grandes invenções em termos de design e da criação de marcas como a Adidas ou a Puma, a Converse, a Keds, a New Balance, a Nike, a Asics, a Fila ou a Diadora, quase todas elas associadas a uma modalidade desportiva, o século XXI será o tempo em que os ténis prometem ser dominados pelas marcas de luxo mais direcionadas para o lifestyle e a moda do que para as maratonas e o futebol. É que se em 2017 a guerra das vendas ainda se fez entre a Nike, a Adidas e a Converse, 2018 promete ser o ano em que as marcas de luxo se afirmam como as novas imperatrizes da criação e venda de ténis, desde logo com alguns fabricantes a assumirem a dianteira, como a Louis Vuitton, a Balenciaga ou a Gucci.

Quem está atento a desfiles de moda internacionais, a blogues e contas de Instagram sabe que, na primavera que termina como no verão que agora começa, tudo gira em volta dos novos modelos de ténis robustos, coloridos propostos por Nicolas Ghesquierre da Vuitton, por Demna Gvasalia na Balenciaga e na Vetements ou os barrocamente ornamentados Gucci de Alessandro Michele. Saltos altos, sandálias ou sapatinhos de cristal foram literalmente derrotados no universo da moda feminina. Já no universo masculino, usar e colecionar sapatilhas de luxo substituiu as gravatas de seda, os relógios suíços como símbolo de ascensão social, pujança financeira e lifestyle.

Ténis com vestidos compridos, vaporosos, florais e malas de luxo: a trilogia que marca o verão de 2018

É verdade que são os ténis de marcas desportivas que têm dominado as vendas e o street style: em 2017, no mercado americano a Nike voltou a liderar com o modelo Tanjun logo seguido pelos Converse, modelo Chuck Taylor (low) e pelos Adidas Superstar. Segundo a revista Esquire estas escolhas refletem sobretudo uma questão económica, pois as marcas e modelos realmente inovadores continuam a ser conhecidas e vendidas no meio dos desportos de alta-competição e são demasiado caras para o cidadão comum. Uma coisa é certa: nunca se venderam tantos ténis e nunca existiram tantos modelos disponíveis no mercado, com as mulheres a trocarem literalmente o sapatinho de cristal por umas sapatilhas inspiradas nos Nike Air Max’95.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No ano passado, a venda de ténis a mulheres, nos EUA, foi 5% superior à dos homens e representou um lucro de 19,6 biliões de dólares, segundo o jornal Sourcing. Esta mudança nos paradigmas da moda que é conhecida como “Athleisure”, com os seus rituais de running, fitness, yoga, alimentação saudável, vida descomplicada, tudo o que é vestuário e calçado de inspiração desportiva não tem parado de fazer vítimas, isto é de crescer. As sapatilhas são, atualmente, o sapato mais transversal a todas as gerações, classes sociais, culturas e contra-culturas, algo que só acontecia com os jeans.

A ascensão das sapatilhas ao Olimpo da moda deu origem a uma guerra que ainda agora vai nas primeiras ofensivas entre as marcas desportivas e as marcas de luxo. A primeira casa de alta moda a apostar nos ténis foi a Gucci, em 1984, seguida da Prada em 1996. Só nesta segunda década do século XXI é que o mercado do luxo voltou a ver no calçado desportivo uma janela de renovação da sua imagem e públicos: dos criadores mais irreverentes como Alexander Wang, às casas mais conservadoras como a Balenciaga, a Louis Vuitton, a Loewe, Pucci, Chanel, todas têm hoje as suas propostas de ténis e, a avaliar pelo street style, as bloggers, a estrelas do mundo da música ou as modelos, parecem a conseguir causar alguns danos às até agora imbatíveis Nike, Adidas, Converse. Naturalmente a maioria de nós não pode comprar estes modelos mas a sua procura reflete-se nas coleções das marcas de fast-fashion como a Zara, cujas atuais e futuras coleções já não estão a imitar as marcas desportivas mas sim as marcas de luxo.

“Chunky, ugly sneakers”, o lema deste verão

Os Archlight da Louis Vuitton são os novos Louboutin do street style (1090€)

Esqueça que um dia lhe ensinaram que não se conjugam sapatilhas com vestidos de cetim, folhos e rendas, que não se vai de ténis a uma cerimónia formal, que não se complementa um look desportivo com uma mala estruturada. Se há regras que mudaram no universo da moda foram as que restringiam o uso de peças desportivas à prática de desporto porque esta é, essencialmente, uma mudança de fundo cultural em que a vida saudável, a atividade física, o culto de um corpo esculpido no ginásio ou a alimentação biológica se tornaram manifestação não só de uma estética mas de um ética de vida.

Na moda, esta mundividência traduz-se no uso de roupa desportiva. Já tivemos os fatos de treino com saltos altos, os sneakers de saltos altos, agora temos os  “chunky, ugly sneakers” por um lado e os ténis modelo vintage por outro. Estes últimos parecem ser a resposta das marcas desportivas à nostalgia das gerações do fim de milénio e o seu culto de tudo o que é “old school”. A evidência é que os modelos que nos últimos anos têm feito maior sucesso vêm diretamente dos arquivos, ou são inspirados em modelos com várias décadas. Há mesmo marcas quase esquecidas que renasceram graças ao apelo nostálgico dos seus modelos, como a Fila, a Diadora, a Lotto.

Este verão a Tiger ressuscitou o elegante modelo México66, numa edição de luxo, para espíritos nostálgicos

Se os modelos grandes, teatrais se apresentam como os preferidos das mulheres, já os modelos masculinos que mais se adequam ao regresso dos dandys com os seus fatos de alfaiataria, as calças justas, o espírito preppy são de inspiração italiana, com linhas mais discretas, sóbrios, em tons claros. Encontram-se na Gucci, mas também na Tiger, na Tommy Hilfigher, na Lion of Porches ou, com mais juvenília, na nova coleção da Vans x Marvel cheia de super-heróis da infância.

Stock Ex, a bolsa de valores para ténis e os seus viciados

A paixão por ténis de modelos icónicos e raros sejam eles de marcas desportivas ou de marcas de luxo inflama diariamente novos corações, fazendo com que o valor de um par de sapatilhas se multiplique dependendo do hype que cada modelo gera. Esta febre já deu origem ao aparecimento da Stock Ex, uma bolsa de valores para ténis. É por aqui que se orientam os viciados neste tipo de calçado para fazerem as suas compras e para revenderem os artigos que depois de usados algumas vezes são postos de lado e ainda permitem obter lucros para o comprar o par de ténis seguinte. Recentemente a revista brasileira Veja, publicou uma reportagem sobre este mercado de luxo que chocou o país, que desconhecia o volume de dinheiro despendido pelos “sapatilho-dependentes”. Um dos entrevistados, Felipe Escudeiro, 27 anos, advogado e fundador do canal de Youtube “Hyped Content” declara:

(…) me apaixonei quando conquistei o Air Force 1, primeiro tênis lançado pelo cantor Travis Scott. Fiquei quarenta horas na fila em uma loja no Rio de Janeiro. Paguei 600 reais e hoje ele vale 2 000 reais porque só saíram 48 pares no país todo. Esse eu não revendi. Me tornei um grande admirador de design, sobretudo do Virgil Abloh, fundador da marca Off-White. Eu tenho 25 tênis e entre eles oito são exclusivos. O que eu mais gosto é o Converse Off-White, o mais raro que saiu no país. Peguei três dele. Deu um total de 4 450 reais. Eu faço revenda, busco lucro de 50 a 60% em cima(…)Beira a ostentação, mas é mais o orgulho de ter conseguido aquela peça rara do que o valor dela em si. Como a gente trabalha com isso, todo mundo sabe mais ou menos o valor que custa. Existe uma bolsa de valores dos ténis na internet, Stock Ex, é nisso que me baseio para fazer as revendas. O item pode estar valendo 1 000 dólares hoje e amanhã, 900 dólares, e depois de amanhã 1 200, depende de qual artista o usou naquele momento. O meu negócio é ter acesso. Compro esse ténis, que acho maravilhoso, aí chego em casa e agora eu posso vender. Já não ligo mais.”

Segundo a Stock Ex os modelos mais valorizados no momento em que escrevemos este artigo  os Nike Air Jordan Retro Travis Scott, os Adidas Yeezi são os mais procurados, mas os mais caros são os Balenciaga SS2018 cujo preço começa nos 1000 dólares.

Modelo mais popular da bolsa de valores para ténis: Nike Air Jordan Retro desenhado em colaboração com o rapper Travis Scott