Nos Mundiais de natação de 2017, realizados em Budapeste, a canadiana Kylie Masse foi a mais rápida a percorrer os 100 metros costas e colocou o recorde do mundo em 58.10 segundos, ultrapassando um registo com oito anos (58.12 de Gemma Spofforth em 2009). Atrás da canadiana ficou Kathleen Baker, nadadora americana, que realizou o circuito em 58.58, mais 48 milésimos de segundo do que a medalha de ouro, arrecadando assim a prata. Nesse dia, Kathleen colocou um lembrete no telémovel: todos os dias, às oito da noite, receberia uma mensagem com o tempo 58.10. Foram 367 dias a olhar para o registo de Kylie Masse e a trabalhar para o superar. 367 dias de treino, motivação e superação. Muita superação: no passado domingo, nos Campeonatos Nacionais dos Estados Unidos, Kathleen Baker reclamou para si o recorde do mundo de 100 metros costas, com o tempo de 58 segundos exatos. A americana tirou dez milésimos de segundo ao anterior registo e, aos 21 anos, mostrou que os limites do corpo andam de mão dada com a capacidade de motivação interior.

Comecemos pelo fim, os resultados: com pouco mais de uma década vivida, Kathleen Baker é a atual recordista americana dos 50 metros costas (27.48, conseguido nos Mundiais de Budapeste), recordista mundial dos 4×100 metros estilos com Lilly King, Kelsi Worrell, e Simone Manuel (3:51.55, também nos Mundiais de Budapeste) e, o mais recente título, recordista mundial de 100 metros costas, com os 58 segundos registados no domingo. Pelo meio, a jovem americana conta uma medalha de ouro nos 4×100 metros estilos e uma medalha de prata nos 100 metros costas, nos Jogos Olímpicos de 2016, e uma medalha de ouro nos 4×100 estilos, uma de prata nos 100 metros costas e uma de bronze nos 200 metros costas, nos Mundiais da Hungria.

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Recuemos agora, até ao início: desde cedo Kathleen Baker quis ser nadadora profissional, com o sonho de estar presente nos Jogos Olímpicos a ser um objetivo bem vincado. Muito nova, começou a treinar e a viver para as piscinas. Treinava todos os dias, duas vezes por dia — três, quando conseguia.

Antes de seguir para a Universidade da Califórnia, onde atualmente estuda Saúde Pública, frequentava a escola em casa, de modo a estar mais perto do seu treinador, David Marsh — Miracle Marsh, como é conhecido no mundo da natação –, que era também o técnico de uma equipa de elite, a SwimMac. Dessa equipa faziam parte, entre outros grandes atletas, o campeão olímpico Ryan Lochte.

Aí, no centro de treinos, Kathleen era a primeira a chegar e a última a sair. Horas antes do seu treino começar, a jovem já estava equipada, sentada nas bancadas a assistir ao treino da SwimMac. A esperança, conta David Marsh, era a de poder um dia entrar na água com os campeões. Toda a vida de Kathleen girava em torno do sonho de ser, não só nadadora profissional, como uma das melhores. Para estar mais perto de Marsh, os pais de Kathleen não só a colocaram a estudar em casa como mudaram a própria habitação, quase 100 quilómetros mais para sul, em Charlotte. Até que um dia, em 2010, o mundo da família Baker parou: a jovem tinha sido diagnosticada com a Doença de Crohn. 

E o que é a Doença de Crohn? É uma doença crónica (ou seja, nunca desaparece) que ataca os intestinos. Traduzido por miúdos, toda a gente tem uma bactéria inofensiva no seu intestino que ajuda a digestão, sendo que o nosso sistema imunitário reconhece e deixa essa bactéria atuar sem problemas. Num paciente de Crohn, o sistema imunitário ataca essa mesma bactéria, criando úlceras e outros problemas no interior do organismo. O corpo é afetado de várias formas, desde dores de estômago que se prolongam por horas, a falta de apetite constante, fraqueza regular, falta de sono, entre outras adversidades. Esta é a parte técnica e física da doença; a outra, a psicológica, é, por ventura, mais devastadora do que a anterior.

A Doença de Crohn alimenta-se da tensão, da ansiedade, do stress. Quanto mais importante for o momento, maior será a ansiedade, maior a probabilidade de a doença atacar. Nada bom para uma atleta de alta competição sujeita a provas decisivas e uma vida de constante pressão, certo? O problema é que, a juntar-se a tudo isto, são vários os casos de perda de motivação. A dor e o mau estar físicos são de tal tamanho que nada mais importa. Nem o que mais se deseja na vida.

Kathleen Baker focou-se nos 100 metros costas e, na passada terça feira, tornou-se recordista mundial da especialidade, com o tempo de 58.00 segundos (Créditos: Getty Images)

Para Kathleen, nadar já não importava. Hamilton, o seu musical favorito, já não tinha o mesmo significado. As bandas desenhadas da DC, os álbuns de música, ler, a série Friends, a vida social, o cinema, a forma de vestir. Nada mais tinha espaço na cabeça de Kathleen para além da dor e do sofrimento que sentia. No lugar da adolescente cheia de energia e com um sonho a seguira, existia uma rapariga revoltada e sem a força de vontade interior necessária para vencer. Parecia que nada fazia efeito. Na realidade, outro dos problemas da Doença de Crohn passa pelas formas de o controlar, diferentes de paciente para paciente. Kathleen tomava comprimidos para combater a doença, mas não faziam efeitos. Há pacientes que necessitam de transfusões mensais de sangue; Kathleen precisava de injeções regulares.

Para além das alterações na alimentação, com tudo o que é laticínio e fibra a ser posto fora da ementa, o tratamento parecia começar a ajudar Kathleen. A jovem ia recuperando alguma da motivação, controlava o mau estar e começava a ganhar esperança. Uma esperança cega, com base única e exclusivamente na força interior. Nada garantia que Kathleen conseguisse superar a doença, quanto mais atingir o seu sonho. Mas a americana não desistia e começava a recuperar as força que outrora teve. Ouviu Marsh e adaptou o seu plano de treinos: os bidiários tranformaram-se em apenas um treino por dia, sendo que, até esse, por vezes tinha de ser interrompido devido ao cansaço que Kathleen sentia. Habituada a treinar várias disciplinas, a versátil nadadora teve de se concentrar em apenas uma especialidade se queria alimentar a esperança de chegar aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Com pouco tempo para treinar, era preciso focar, especializar. E assim o fez, concentrando-se nos 100 metros costas.

Duas semanas antes das provas para o apuramento olímpico, Kathleen não parecia na melhor forma. Com a contagem final a iniciar-se, a americana puxou dos galões e preparou a corrida da sua vida. Treinou, focou-se e, em Omaha, na competição decisiva, fez a melhor prova da sua carreira. Num lote que contava com duas medalhadas olímpicas (Missy Franklin e Natalie Coughlin), Kathleen levou a melhor, fez o percurso mais rápido da sua vida e, com 59.59 segundos, entrou na equipa olímpica americana.

Chegamos aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Aí, Kathleen cumpriria uma meta e traçaria outra: confirmada que estava a primeira presença na maior prova desportiva do mundo, a americana colocaria como objetivo continuar a lutar contra a doença e perseguir o seu sonho. A medalha de prata conquistada no Rio de Janeiro (58.75 segundos, atrás da hungara Katinka Hosszú) já era, só por si, uma grande vitória para a americana, que não só superava as restantes adversárias como também uma doença que quase a impediu de continuar a nadar em alta competição. Mas Kathleen queria mais e parecia estar de volta a nadadora determinada a ser uma das melhores do mundo.

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A partir daí, a americana não mais perdeu a motivação. Os Mundiais de Budapeste, em 2017, foram um marco importante na carreira da jovem, que alcançou três medalhas e dois recordes durante a prova. Ao ouro conquistado nos 4×100 metros estilos com Lilly King, Kelsi Worrell, and Simone Manuel (recorde mundial de 3:52.05) juntou o bronze nos 200 metros costas e, embora não tenha sido medalhada na prova, um recorde americano nos 50 metros costas (27.48). Nos 100 metros costas, ficou a 48 milésimos da canadiana Kylie Masse, que venceu a prova com 58.10 segundos. E é aqui que retomamos o início do texto. Lembra-se do lembrete colocado por Kathleen no seu telemóvel? Pois é, serviu de motivação interior. A tal que é indispensável para ultrapassar as adversidades da doença, que permite transformar em força mental as fragilidades sentidas pelo corpo. Essa que permitiu a Kathleen Baker lutar, treinar e alcançar um objetivo.

Na passada terça feira, a jovem de 21 anos competiu nos Nacionais dos Estados Unidos e não esqueceu o lembrete. Na sua cabeça, tinha um tempo a ultrapassar e nada a faria parar. Para isso, precisava de fazer a corrida mais rápida da sua vida. Na realidade, precisava de fazer a corrida mais rápida de qualquer atleta feminina. E conseguiu: no William Woollett Jr. Aquatics Center, na Califórnia, Kathleen Baker entrou para a história ao colocar o recorde mundial dos 100 metros costas nuns exatos 58 segundos. Menos 10 milésimos do que o anterior registo da canadiana.

E promete não ficar por aqui: às oito horas de terça feira, quando o lembrete tocou pela 368ª vez, Kathleen Baker desligou-o; mas não o apagou, apenas o alterou. De agora em diante, às oito da noite, no telemóvel de Kathleen tocará um lembrete com um novo número: 57.99. Porque a motivação e capacidade de superação da americana não têm limites ou marcas inatingíveis. Nem mesmo as estabelecidas por si.