Segundo dia da 43ª edição do Portugal Fashion, desfiles em dose dupla. Imediatamente a seguir a Cristina Ferreira ter deixado a Alfândega do Porto em estado de sítio, Sara Maia e Nycole, duas mulheres que conquistaram recentemente um lugar no calendário principal, encheram o Salão Nobre e partilharam a passerelle. Sara trouxe à baila, mais uma vez, a nebulosa indiferenciação do género. A jovem designer partiu do guarda-roupa masculino e simplificou-o, deixando neutro o suficiente para poder ser usado por homens e mulheres. Camisas, casacos, blusões, malhas e blazers compuseram coordenados estivais ricos em peças, materiais e texturas. A paleta fixou-se nos brancos, beges, azuis e num amarelo enérgico.

Inês Torcato © Ugo Camera

Nycole está entre as designers que, em junho deste ano, passaram pela Altaroma. No Porto, teve agora oportunidade de mostrar mais coordenados. Tânia Nicole reuniu influências dos equipamentos de basebol, mas também de Led Zeppelin, em particular de uma digressão da banda no Japão. Através da silhueta do guitarrista Jimmy Page, o rock fez-se notar ao de leve, ainda que numa coleção onde o sportswear continuou dominante.

Inês Torcato, especialista em baralhar os géneros, voltou a fazê-lo. Com vista privilegiada para o Douro, a coleção “Alma” foi um aclarar da escala de cores habitualmente trabalhada pela designer. O branco, os nudes e o azul pastel saíram realçados pela luz da tarde portuense, uma serenidade acompanha por um equilíbrio (cada vez mais bem conseguido) entre peças de alfaiataria e a utilização de tecidos técnicos em roupa de base desportiva. Inês Torcato fez tudo isso e ainda fez blazers que nos deixaram a contar os dias para a próxima primavera.

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David Catalán © Ugo Camera

É certo que nem tudo na década de 50 é digno de ser recordado, mas David Catalán, ou o seu natural filtro para aproveitar o que é bom e bonito, ficou com o melhor. Ficou com Elvis Presley e com a personagem do rei no filme King Creole, ficou com os anos dourados de Hollywood e com o início da corrida espacial. Como é que tudo isto chegou à passerelle do Portugal Fashion? Com a mesma pinta com que um boy americano bem comportado passearia pela Ribeira. Com malhas, calções curtos, blazers assertoados, xadrez e camisas de inspiração western que o ex-bloomer pintou de vários tons de bege, de amarelo torrado e azul bebé. Mas a coleção evoluiu, aproximou-se de um vocabulário mais desportivo, das riscas, dos tecidos técnicos, do amarelo ácido e dos acabamentos metalizados. Ficámos na primeira parte, embora a segunda também tenha o seu valor.

Maria Gambina, o regresso

Ausente das passerelles há cinco anos, Maria Gambina regressou com “Construção”. No que à moda diz respeito, poucos construiram tão bem como ela, é um facto. Com uma marca criada em 1993, soma já mais de 40 coleções, vestiu o staff da Expo ’98 e acumula várias gerações de alunos bem-sucedidos, entre eles Katty Xiomara, Nuno Baltazar e Ricardo Andrez, para não falar nos mais novos, como é o caso de Gonçalo Peixoto, Rita Sá e Joana Braga (estas duas últimas apareceram para ajudar a designer nos últimos preparativos do desfile desta sexta-feira). Com a sinalética de obras como referência direta e com a letra de “Stop in the name of love” das Supremes pelo meio, a designer reclamou um lugar no calendário que é seu por direito, depois de ter erguido o seu próprio sinal de paragem obrigatória em 2013, na ModaLisboa. “Não disse a ninguém, mas sabia que aquela era a minha última coleção. Estava desapaixonada. Tinha tudo centrado em mim e não via as coisas crescerem”, conta ao Observador.

Maria Gambina © João Porfírio/Observador

O gosto pelo ensino falou mais alto e Gambina ausentou-se para se dedicar aos alunos. Nos últimos oito anos, foi professora e coordenadora de Projeto na ESAD (Escola Superior de Artes de Design), lugar que deixou vago quando decidiu retomar a carreira de designer de moda. “Durante três anos, simplesmente não consegui entrar no meu atelier e, durante todo este tempo, ninguém, nem família, nem amigos, me pressionou a fazê-lo. A certa altura, a Tânia Nycole e o David Catalán propuseram ajudar-me a arrumar o atelier. Enquanto o fazíamos, apercebi-me de que tinha ali um grande espólio e que fazia sentido mostrá-lo às novas gerações”, recorda. Gambina falou com o MUDE (Museu do Design e da Moda), que demonstrou interesse em ficar com peças de antigas coleções, ainda sem certezas quanto a uma possível exposição retrospetiva. Para a criadora, remexer no baú avivou as memórias de como costumava ser ter uma marca e construir uma coleção a partir de uma diversidade de referências, muitas vezes desconexas. “Vi que havia ali uma identidade forte e coisas que vi designers internacionais fazerem, já depois de eu as ter feito. Aí, voltei a desenhar. Afinal, já tenho uma marca e isso é mesmo o mais difícil de alcançar”, continua.

Ao som de “Construção”, de Chico Buarque, Gambina voltou, mas voltou diferente. A sua linguagem gráfica e altamente visual continua bem aguçada. Se, por um lado, desconstruiu colarinhos e golas, por outro, abriu espaço para técnicas manuais como o crochet e o patchwork. As riscas dos cones de sinalização, e até a sua forma original, foram praticamente decalcadas em roupa e acessórios. “Voltei, mas voltei para vender, não para produzir para museus”, admite. As prioridades afinaram-se. Sem deixar cair os preceitos rígidos de construção e modelagem, nem a atenção ao mais ínfimo pormenor, Gambina voltou para dar cartas no mercado, no português e não só. “Desenhava uma peça e perguntava: ‘Vestia isto?’. O que não vestia ficou de lado. Foi a primeira vez que fiz uma coleção assim”, conclui.

Carlos Gil e Estelita Mendonça: os brilhos não são todos iguais

Ao fim da tarde, foi Carlos Gil, o senhor de todos os brilhos, a chamar para si as atenções. Como não chamar, se a coleção do próximo verão nasceu pura e simplesmente com o intuito da diversão? A um léxico em que lantejoulas e paillettes são já dado adquirido, o criador juntou o movimento das franjas. Nas mais longas, a combinação de cores foi, numa palavra, espampanante. “Um desfile não é só este encanto que se vê de fora, acontece muita coisa até chegarmos aqui e trabalha muita gente nesse processo. Esta coleção é dedicada a toda a gente que dá o litro por mim e só lhes podia agradecer se ela fosse divertida, alegre e uma explosão de cor”, explica o designer ao Observador.

Carlos Gil © Ugo Camera

As peças, como de costume, gritaram festa. Na realidade, o termo é já uma espécie de nome do meio da etiqueta Carlos Gil. Os holofotes da passerelle encarregaram-se de fazê-las brilhar, ora em variações de tons quentes, ora com um efeito holográfico. Na fórmula, que tem feito sucesso junto de uma clientela que vai dos 18 aos 60 anos, Carlos não mexe — o clássico e o desportivo continuam na melhor das relações. “Hoje, é o que as mulheres procuram. O trabalho já é tão árduo que precisam de se vestir de forma divertida. Já as habituei a isso, elas sabem que o Carlos Gil gosta de vesti-las para as festas”, termina.

Uma hora antes, Estelita Mendonça tinha dado por encerrado o segundo dia de Portugal Fashion no Salão Nobre. Mais uma vez, as portas abriram-se para o Douro e a luz, mais dourada com o sol a ameaçar pôr-se, ofereceu uma perspetiva muito própria sobre a coleção “Restricted”. “Tem muito a ver com a ideia de uma censura quase velada e que está a acontecer mundialmente. Cá, mais recentemente, temos o caso de Serralves, claro. No Brasil, com uma censura televisiva e radiofónica gigantesca. É preciso começarmos a ter noção do que está a acontecer no resto do planeta”, começa por explicar ao Observador.

No styling, a mensagem foi facilmente passada. Os modelos desfilaram com fitas que lhes tapavam a boca, alguns com redes que lhes cobriam o rosto. Nas peças, a utilização de fotografias estampadas e de tecidos perfurados foram formas bem mais subtis de chamar a atenção. Ao mesmo tempo, o designer não quis datar o vestuário. Tal como o próprio tema, que ganha pertinência em vários momentos históricos, também a roupa deve manter-se intemporal. “O que está a acontecer agora já aconteceu antes e vai voltar a acontecer no futuro. Ter uma coleção intemporal é perfeito, daí também ter ido buscar o sportswear, mal ou bem, ele também é feito de peças básicas que são reinventadas e reinterpretadas”, afirma.

Estelita Mendonça © João/Porfírio

A opção assenta na perfeição no registo a que Estelita Mendonça já nos habituou, embora, o que à primeira vista parece uma coleção dominada por tecidos técnicos (e o criador é conhecidos pela habilidade em manipulá-los), é na verdade uma invulgar concentração de algodão. “É muito estranho dizer isto, mas 90% da coleção é 100% algodão, das plastificações ao foil. Sobram as napas, que aí não há mesmo hipótese”, explica. Foi precisamente em algodão que obteve os acabamentos metalizados que pontuaram a coleção. Durante o desfile, estas peças refletiram a luz do sol. Se foi por acaso, veio mesmo a calhar. “Gosto de pensar neles como a lanterna que quero acender sobre este assunto, a luz que falta à situação”.

A agenda foi apertada. Pelo calendário deste segundo dia de Portugal Fashion passaram ainda Hugo Costa, que, em junho, já tinha levado o seu culto das imperfeições até Paris, e Diogo Miranda, que, na mesma cidade, apresentou um verão de silhuetas inspiradas na fotografia de Irving Penn. Mas também houve lugar para estreias. Sophia Kah, marca de Ana Teixeira de Sousa, desfilou pela primeira vez em solo português, depois de uma completa estreia durante a Semana da Moda de Londres.

Diogo Miranda © João Porfírio/Observador

O desfile de Micaela Oliveira coincidiu com a hora de jantar. A criadora continua a dividir opiniões — há quem tenha saído de lá mantendo uma fome de leão, há quem, simplesmente, tenha perdido o apetite. Mas o fecho da noite ficou por conta de Miguel Vieira, veterano incontornável da moda portuguesa. Depois de ter passado pela Semana da Moda de Milão (a edição dedicada ao menswear), em junho, o criador revelou, no Porto, o resto da coleção. Inspirada na pop art, com as cores primárias a liderar a paleta e ainda em jeito de comemoração dos 30 anos de carreira, há muito que o designer deixou de se cingir à variação do preto e branco. O homem tem sido, claramente, quem mais ganha com esta evolução. As cores e estampados ganham força a cada estação que passa (o próximo verão não é exceção), cresce a variedade de acessórios, aligeira-se a formalidade de outros tempos. A mulher parece resistir ao fenómeno. Permanece com uma aura snob. Ninguém a julga por isso.

Assim terminou o segundo dia de Portugal Fashion, na Alfândega do Porto. Sábado, terceiro e último dia desta 43ª edição, reserva os desfiles da dupla Marques’Almeida, de Katty Xiomara, Nuno Baltazar, Storytailors, Luís Buchinho, Alves/Gonçalves, Luís Onofre e Júlio Torcato, entre outros.