É um conjunto “muito interessante, histórico e altamente decorativo”, resumiu ao Observador o leiloeiro Sérgio Marques dos Santos, referindo-se a três painéis decorativos provenientes do mítico paquete Santa Maria que vão a praça nesta quarta-feira, a partir das 21h00, na leiloeira portuense Marques dos Santos, especializada em arte e antiguidades. Base de licitação: 1500 euros.

O tríptico consiste em placas de madeira (platex) do início dos anos 1950, polidas a ouro e pintadas a óleo, sobretudo com motivos marinhos, instaladas no bar-restaurante de segunda classe do Santa Maria, lê-se no catálogo da leiloeira. Com dimensões de 112 por 190 centímetros, as três peças de parede estão separadas mas funcionam como um todo, através de cavilhas que permitem a junção.

Mais do que a estética, o que parece engrandecer a obra é o contexto: o facto de ter sido criada para o paquete que em 1961 foi tomado de assalto pelo capitão Henrique Galvão, num célebre episódio de oposição ao regime de Salazar. Em janeiro daquele ano, o Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), liderado por Henrique Galvão e pelo espanhol Jorge de Sotomayor, assaltou o Santa Maria na costa da Venezuela, denominando-o Santa Liberdade. Foi a “Operação Dulcineia”, com o objetivo levar o navio para Angola e iniciar um movimento de revolta contra o Estado Novo. A tomada do paquete correu mal e os assaltantes acabaram exilados no Brasil, com a embarcação a regressar a Lisboa.

Os factos foram relatados na imprensa portuguesa, com pormenores devidamente censurados pelo regime. No “Diário de Lisboa”, por exemplo, vários dias de noticiário sobre este “caso inédito na história marítima deste século” incluíram a explicação da origem do Santa Maria. Era a mais moderna unidade da então Companhia Colonial de Navegação, empresa portuguesa que explorava ligações marítimas entre a metrópole e as colónias em África, mas também o Brasil. Construído na Bélgica, entrou ao serviço em outubro de 1953 e ligava Lisboa ao Rio de Janeiro. “O mais veloz dos paquetes da carreira da América do Sul”, classificou o jornal. “Mede 186 metros de comprimento e tem alojamentos para 1188 passageiros; é, na sua construção, em todos os pontos semelhante ao Vera Cruz, com as mesmas 22 mil toneladas, só dele diferindo na decoração.”

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“Diário de Lisboa” acompanhou durante vários dias a saga do assalto ao paquete Santa Maria em janeiro de 1961

Contactada pelo Observador, a especialista em design de interiores Graça Pedroso – professora na Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva e no Instituto Politécnico de Castelo Branco – esclareceu que o tríptico em causa tem a raridade de ser feito em madeira, quando nos anos 50 a decoração de interiores consistia sobretudo em tapeçaria, vitral e cerâmica, o que se verificou em espaços icónicos como o Hotel Ritz e a Pastelaria Mexicana, em Lisboa, ou o Grande Hotel da Figueira da Foz.

“Naquela época, quando ainda não se falava em design de interiores, mas em decoração, quer os edifícios quer os paquetes eram sempre alvo de projetos de artes decorativas. Os artistas e decoradores eram chamados pelos arquitetos”, explicou Graça Pedroso. “Não era só uma questão de conforto, pretendiam dar mais dignidade aos espaços, torná-los mais luxuosos, mesmo que a ideia de luxo não fosse a exclusividade, como hoje. A decoração envolvia artistas de renome, como forma de valorizar o espaço.”

Graça Pedroso considerou o tríptico “muito interessante” e disse que a integração no acervo de um museu não é de excluir dada a história do paquete Santa Maria, mas essa integração “teria de ser muito bem avaliada”. Segundo Sérgio Marques dos Santos, os painéis “talvez não tenham peso museológico, por enquanto”. “Sempre que temos objetos com interesse patrimonial ou de grande peso museológico, tomamos a iniciativa de avisar os museus, mas não o fizemos neste caso.”

A base de licitação é relativamente baixa. Por comparação, a obra mais cara na hasta pública desta quarta-feira é uma tela de 2017 da islandesa Katrin Fridriks, “Waving Force of Nature”, com preço-base de 12.500 euros. “Nem tudo se resume à importância económica da peça, há fatores culturais e históricos que muitas vezes se sobrepõem ao valor de mercado”, acrescentou o leiloeiro.

Se o tríptico atingirá um valor de martelo muito superior ao preço inicial, ou se será sequer vendido, é uma incógnita, mas segundo Sérgio Marques Santos é de ponderar um horizonte de cinco ou seis mil euros. “Não cabe em qualquer casa, tem de ter um enquadramento específico”, disse. A sessão no Porto será transmitida via internet, através das plataformas invaluable.com e liveauctioneers.com.

[Leiloeira Marques dos Santos tem publicitado os painéis através das redes sociais]

É a segunda vez em anos recentes que os painéis vão a praça. Pertencem neste momento a um colecionador do Porto que o adquiriu “por razões meramente decorativas”, disse Sérgio Marques dos Santos, sem entrar em pormenores ou identificar o colecionador, como é habitual nestes casos. Antes de chegarem à leiloeira portuense estiveram, há seis anos, na leiloeira Aqueduto, de Lisboa. Nessa ocasião, o catálogo da Aqueduto – cujos responsáveis técnicos foram José Pereira Alves, Rui Aurélio, José Lopes e João Pedro Duarte – atribuía o painel a Manuel Rodrigues (1906-1965). Uma vez que não estão assinados, a Marques dos Santos optou agora por não identificar o autor no catálogo.

Hoje esquecido, Manuel Rodrigues foi um artista plástico, decorador e figurinista que chegou a participar na conceção da Exposição do Mundo Português, em 1940, além de ter criado campanhas publicitárias para os Cafés Tofa e realizado para a Fundação Gulbenkian, em parceria com o arquiteto Conceição e Silva, a “Exposição da Rainha D. Leonor”, no Convento da Madre de Deus, em Lisboa, em 1959.

Ainda naquela venda da Aqueduto, em 2012, estavam outros objetos do Santa Maria, como bancos de jardim em ferro forjado e duas portas em alumínio, acrílico e ferro. De resto, o recheio do navio também foi a praça na leiloeira lisboeta Palácio do Correio Velho: em 2005, um painel em terracota, de Jorge Barradas, que esteve na capela do Santa Maria (base de licitação de 80 mil euros); e em 2006, dois pares de apliques em bronze da sala de jantar de primeira classe do paquete (base de licitação de mil euros).