Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, está na primeira fila daquela que é a primeira gala do Guia Michelin, edição de 2019, a acontecer em Portugal. O local escolhido para a estreia nacional é o Pavilhão Carlos Lopes, voltado para o Parque Eduardo VII, no coração de Lisboa. Avançando uma hora no relógio, agora a passar das 20h, Fernando Medina está no palco, de jaleca branca vestida, entre os muitos chefs distinguidos, quatro deles portugueses — Sá Pessoa, com duas estrelas para o Alma, em pleno Chiado, e Pedro Almeida (Midori, Sintra), Óscar Gonçalves (G Pousada, Bragança) e António Loureiro (A Cozinha, Guimarães) com uma estrela cada. A noite é de festa, mais espanhola do que portuguesa, mas Lisboa está no centro da constelação.

Sá Pessoa ganha segunda estrela e Guia Michelin já inclui Bragança e Guimarães

Às 19h, hora prevista do começo da gala de atribuição das estrelas em Portugal e Espanha, a sala do pavilhão ainda está por compor. Focos de luz projetam um vermelho intenso nas cortinas que envolvem o ambiente. Centenas de cadeiras pretas, algumas ainda vazias, desfilam ao encontro do palco vermelho, vermelhão, com proliferantes “macarons” desenhados a branco — mais comummente conhecidos como “estrelas”. A sala está longe de ocupar a dimensão total do pavilhão, já habituado a receber eventos gastronómicos como o Peixe em Lisboa: atrás das cortinas estão dezenas de cozinheiros em preparos para, finda a entrega, começarem o serviço de jantar onde todos os chefs estrelados de Lisboa vão apresentar vários pratos, sob orientação de José Avillez, que, nesta edição, não chegou às três estrelas  — mas já lá vamos.

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Discursos formais, em português, castelhano e inglês, dão finalmente começo formal à cerimónia. O diretor da Michelin em Portugal, Nuno Ferreira, passa a palavra a Mayte Carreño, diretora comercial da marca, que num português esforçado e ligeiramente arrastado passa a palavra a Ana Godinho, secretária de Estado do Turismo, que, por sua vez, passa a palavra a Fernando Medina, cuja apresentação já é dispensável. Quase todos os intervenientes se repetem e reforçam os “dois anos de namoro” para que a gala chegasse a Portugal, depois de nove anos consecutivos no vizinho ibérico.

19h34. Cabe a Mayte Carreño começar a desvendar as novas estrelas para 2019 e Gwendal Poullennec, o homem que gere 32 guias pelo mundo fora, apertar a mão aos premiados, entregar-lhes um guia vermelho — certificando-se que o seguram junto ao peito — e tirar uma fotografia na sua companhia. Se houver chef repetente, como é o caso de Martín Berasategui, que recebeu duas novas estrelas Michelin (passa a somar, no total, 10 distinções), também o retrato é repetido. Cerca de 30 chefs são chamados ao palco ao longo da noite, num espetáculo contínuo de tira casaco, veste jaleca, segura guia, posa para fotografia e espera em pé pelo final.

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Entre as muitas distinções atribuídas, destaca-se a vez em que Henrique Sá Pessoa é chamado ao palco — confirmando as especulações de muitos, incluindo as do Observador –, sendo aplaudido de pé por grande parte dos presentes, com gritos de apoio e abraços repetidos — sobretudo ao chef Sergi Arola. Sá Pessoa não pode despir o casaco. Chega, ao invés, de jaleca própria colada ao peito, sem nada por baixo, como faz questão de evidenciar num gesto descontraído que quebra o ritmo rigoroso q.b da entrega de estrelas. Vai a nova jaleca por cima da “velha”.

“‘Es lo que es’, como dizem os espanhóis”

A utilização da palavra “gala” para definir o evento da passada quarta-feira remete, aos mais incautos, para uma ideia de entusiasmo, de expectativa. “Se for como as de Hollywood, vai ser brutal”, comentavam duas jovens no caminho para o Pavilhão Carlos Lopes, antes de tudo começar. Existiam pessoas bem vestidas? Sim, claro. Viam-se luzes coloridas, projeções gigantes e outros adereços? Obviamente. Mas e o “espetáculo” em si? Esse, como já é comum em noites como esta, é tudo menos empolgante. As quase duas horas de apresentação só ganham pujança quando se ouve o nome daqueles por quem se torce mais e, no caso português, então, isso continua a não acontecer muitas vezes.

“Tenho pena que não tivessem havido mais, principalmente três estrelas e duas estrelas. O trabalho do João Rodrigues, do Alexandre Silva, do José Avillez, do Hans, do Koschina… Havia muitos restaurantes que podiam dar um passo para cima, mas o guia é mesmo assim, imprevisível”, disse ao Observador Henrique Sá Pessoa, um dos sortudos da noite — sim, porque ganhar uma estrela em português parece cada vez mais um ato de sorte e não de mérito –, que viu o seu Alma subir mais um patamar na hierarquia do guia, fazendo dessa forma com que a Rua Anchieta, no Chiado, passasse a ser a mais estrelada do país. De um lado estão as traseiras do Belcanto e do outro, mesmo em frente, a porta principal do projeto de Sá Pessoa.

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Lamentações à parte (porque elas existirão sempre), não se deve esquecer que Portugal, a partir desta quarta-feira, ganhou mais três novas entradas no guia. No final do anúncio das estrelas, toda a sala se levantou e, como de costume, a palavra foi dos chefs. Pedro Almeida, do Midori, em Sintra, foi um dos primeiros a cruzar-se com o Observador — ainda nem tinha saído completamente do palco — e, de sorriso rasgadíssimo afirmou que tinha acabado de realizar um sonho. “É muito bom, muito bom estar no meio destas pessoas todas que percebem montanhas de cozinha. Quem começa a trabalhar na cozinha quer sempre ganhar uma estrela Michelin”, atirou o chef que há vários anos tem unido Japão e Portugal num dos conceitos gastronómicos mais criativos e bem pensados do pais. Depois de satisfazer a curiosidade de uma jornalista espanhola que lhe perguntara o nome do seu restaurante, “Baloo”, como é conhecido entre amigos, destacou ainda que, apesar da felicidade de ganhar a sua primeira estrela, isso não é motivo para se deixar deslumbrar. “[A estrela] é só um reconhecimento daquilo que fazemos e do nosso valor. De resto acho que não muda nada, continuamos a ser as mesmas pessoas, a trabalhar com as mesmas paixão e força”, garantiu.

O mesmo Henrique Sá Pessoa que já foi citado há umas linhas atrás foi completamente absorvido pelos jornalistas portugueses — que eram bastantes — no momento pós-vitória. À semelhança do que acontece nos jogos de futebol, quando no final das partidas a comunicação social tenta arrancar declarações aos intervenientes, também aqui o chef do Alma foi requisitado uma e outra vez. Ao fundo da sala, no lado oposto ao palco, parou para explicar que ainda estava “meio na lua” com o que lhe tinha acabado de acontecer. Contudo, isso não o impediu de destacar o trabalho e a importância da sua equipa neste triunfo: “Eu tive a sorte de ser escolhido e muito mérito é devido à minha equipa, tivemos um ano muito duro, de muito trabalho e exigência. Senti que evoluímos muito, principalmente nestes últimos sete meses. Fico muito contente de poder partilhar esta conquista com eles.” Uma das particularidades da sua vitória foi o facto de ter surgido de forma tão célere, quando comparado com a de outros cozinheiros — só o seu vizinho da frente, José Avillez, conseguiu a mesma proeza de em dois anos, ao passar de um para dois “macarons”. Sobre essa ascensão meteórica Sá Pessoa destacou alguns elementos que podem ter feito a diferença: “O Alma tem uma coisa boa. Somos muito consistentes. Ao mesmo tempo, sinto que evoluímos muito em aspetos como o serviço de sala e de vinhos. A equipa de cozinha cresceu, o menu também”. No final, assume que este género de coisas nunca são garantidas. “Acho que fomos dando passos no sentido da segunda estrela, mas acho que é tudo muito imprevisível. Todos os anos há alegrias, tristezas e, mais uma vez, tenho pena que o João Rodrigues, o Alexandre Silva, o Zé Avillez e o Hans não tenham tido mais alegrias hoje, mas pronto. Es lo que es, como dizem os espanhóis.”

A boa disposição reinou entre todos. João Rodrigues, do Feitoria, aparece à esquerda, entre Óscar Gonçalves e Alexandre Silva, que está à direita.

De todos os vencedores da noite, os dois já referidos são os que mais normalmente chamam à atenção do público. Se bem que a visibilidade de Sá Pessoa se destaque mais da de Pedro, nenhuma das duas se compara sequer aos underdogs que viram o seu esforço premiado. “Não sou chef, sou o Óscar!”, atirou o líder da cozinha do G Pousada, o restaurante de Bragança que num instante saltou para as bocas do mundo, quando foi abordado pelo Observador. O clima na sala continuava fervilhante — se bem que alguns já se tinham pirado para a zona dos comes e bebes –, mas Óscar Gonçalves parecia mais efusivo que tudo isso junto. “Ainda estou em êxtase, a viver o momento que não é só meu, atenção! Isto é de uma grande equipa que tenho atrás de mim, do meu irmão, dos meus pais, de toda a minha equipa de cozinha, de sala, de receção. Isto é um trabalho de equipa! Uma pessoa só não consegue! Quero agradecer, deixar o meu obrigado a todas essas pessoas. Vamos continuar a caminhar juntos.” Sempre humilde e com os pés bem assentes na terra, Óscar falou do nervosismo da passada semana, quando muita gente o apontava como vencedor certo da primeira estrela, e terminou falando da sua Bragança, a terra: “Conseguir fazer de Bragança um destino gastronómico era algo de muito bom.”

Foi precisamente sobre a importância desta aparente descentralização do guia em Portugal que falou António Loureiro, o chef d’A Cozinha, em Guimarães, que também foi premiado. No seu jeito meio discreto e contido, o vencedor do Chefe Cozinheiro do Ano 2014 assumiu que não contava receber já a distinção, contudo, sempre trabalharam com esse objetivo em vista. Vencer foi algo de “fantástico, uma sensação espetacular”, mas não era algo com que tivesse “a contar já”, apesar de assumir que sempre teve “a ambição e vontade de lá chegar.” Sobre a descentralização afirmou que “se as cozinhas conseguirem acompanhar a potencialidade dos produtos que existem à sua volta”, faz todo o sentido  “que existam mais estrelas espalhadas pelo país e não só nos grandes centros.”

Comer, beber, adeus e um queijo

Depois da tempestade vem a bonança, costuma-se dizer. No Pavilhão Carlos Lopes, depois de ter acalmado o tufão de entusiasmo e novidade que o anúncio das estrelas trouxe, era preciso celebrar — e foi isso que aconteceu. No átrio e nas alas laterais deste histórico edifício estavam espalhados os tais poisos daquilo que, teoricamente, representa o melhor da gastronomia em Lisboa e arredores. De um lado, a equipa do Fortaleza do Guincho trazia o mar consigo e apresentou-o na forma de uma deliciosa massada de peixe que vinha numa concha crocante. Mais ou lado, ainda na mesma faixa litoral lisboeta, Sergi Arola apresentava alguns clássicos do seu LAB, como a Sardinha viajante, mas também outra iguarias como a estaladiça almofada recheada com creme de peixe e forrada com pele de atum, influências cabo-verdianas trazidas pelo sub-chef Vladimir, que se cimentou como braço direito do cozinheiro espanhol.

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No meio destes dois poisos a multidão parecia multiplicar-se cada vez mais. Fatos e gravatas roçavam constantemente com jalecas e aventais, ora sujos (os dos cozinheiros que estavam a trabalhar) ora resplandecentes (dos vencedores da noite). Portugueses que já tivessem assistido a cerimónias anteriores percebiam claramente que os espanhóis estavam muito mais contidos do que quando a festa é feita em sua casa, de tal forma que até paravam para contemplar paredes de azulejos — “Mira, que bonito!”, disse uma rapariga ao jovem que a acompanhava enquanto olhavam para um mural azul e branco. No geral, o ambiente estava morno, apesar do frio e da chuva que se sentia lá fora.

Numa sala mais afastada da entrada, no topo esquerdo do edifício, Alexandre Silva dava a conhecer as suas criações e teve sempre a sua banca concorrida — claramente valeu a pena fechar o seu Loco estas noites, quanto mais não fosse para que o cozinheiro espanhol Diego Guerrero reencontrasse a equipa com quem trabalhou, num dos jantares a quatro mãos que Silva tem vindo a promover. Mal se viram, desfizeram-se em abraços.

“Tenho tanta pena de só ter chegado hoje e de me ir embora já amanhã… Gostava muito de provar mais coisas por cá!”, comentou uma jornalista espanhola que aguardava para ir à casa de banho. De copo na mão, lamentava já ter acabado a açorda com lavagante que provara no posto de Joachim Koerper, o alemão que há décadas orienta os desígnios do Eleven, em Lisboa. “Está demasiada fila, logo vou lá, se já estiver mais calmo”, rematou.

Os ponteiros do relógio iam andando e o aproximar das 22h foi fazendo com que alguns convidados fossem desmobilizando, quiçá encorajados pelo mau tempo que se fazia sentir. Como é hábito nestes eventos, no final é sempre oferecido a todos os convidados uma lembrança com um produto típico da região onde a gala se desenrola. O chouriço que foi dado em 2016, quando foi Girona o palco do evento, serviu de exemplo inteligente para provar que existe mais do que uma maneira de deixar uma cidade na cabeça de alguém. Já foi várias vezes repetida a importância de ter a gala a acontecer em Lisboa, uma vez que ela é, de facto, uma montra para as potencialidades gastronómicas (e não só) de um país. Quando chegou a altura de abandonar o Pavilhão, portanto, levantou-se a dúvida: o que seria o presente de agradecimento? “Aqui tem, muito obrigado!”, atirou a rapariga jovem que geria a entrega dos “miminhos”. Quando surge um dos presentes abertos e é possível perceber o que vem no saco preto de todos os que abandonam o Parque Eduardo VII, a desilusão.

A já clássica fotografia de família, tirada depois de se anunciarem todas as novidades.

Por um lado, uma das prendas era um queijo amanteigado de ovelha, tudo certo. Acontece que vinha também um saco de café… italiano. “Não tinham nada mais português para oferecer, principalmente aos espanhóis, pois não?”, ouviu-se na fila. O argumento pode parecer débil mas, infelizmente, não deixa de ser verdadeiro. Quando todos falam na importância de um evento desta dimensão acontecer em território luso, não devia haver mais iniciativa em promover o que é nosso? Também existem cafés portugueses…

Se a forma como Portugal é negligenciado já prejudica a visibilidade nacional, atitudes menos criativas como estas acabam por enfraquecer ainda mais o desejo de mostrar o que é nosso. Como se consegue fazer isso quando não há quase nada típico português no saco que é oferecido a todos os jornalistas espanhóis (e não só)? Decisões, decisões… Numa escala maior, essa noite de estrelas serviu para, principalmente, pôr no mapa certas áreas que muitos portugueses poderão não conhecer, como Guimarães, Sintra ou Bragança. Por outro lado, continuam a existir demasiados e aparentes motivos para não termos ganho tudo o que merecíamos. Ao menos deu para no final da noite usar aquela expressão — tão típica de Portugal: “Ora então, adeus e um queijo”.