“Durante muitos anos, vivi no sonho do comunismo”, disse Bernardo Bertolucci — que morreu esta segunda-feira em Roma, com 77 anos, de cancro do pulmão –, numa entrevista ao “The Guardian” em 2013, quando da estreia de “Eu e Tu”, o seu último filme. Esse “sonho do comunismo”, da utopia dos “amanhãs que cantam”, da revolução proletária em Itália e no mundo, transportado pelo seu superior talento cinematográfico e pelo seu sentido lírico, enforma a fatia mais significativa da filmografia de Bertolucci, do início dos anos 60 até ao princípio da década de 80, quando assina, em 1984, o documentário “L’Addio a Enrico Berlinguer”. Este título é tanto uma homenagem ao falecido líder do PCI e expoente do chamado “Eurocomunismo”, como um enterro simbólico do comunismo italiano e das esperanças que o autor de “O Último Tango em Paris” depositou nele.

[o trailer de “O Conformista”:]

Por fitas como “Antes da Revolução” (1964), “Partner” (1968), “O Conformista” (1970), “1900” (1976) ou “A Tragédia de um Homem Ridículo” (1981) passam, não sem maniqueísmo e panfletarismo, a denúncia da burguesia e a descrença na democracia capitalista, a esterilidade da classe média, os dilemas da opção de classe, a esperança da revolução, a memória e a execração do fascismo (em “O Conformista”, a personagem de Jean-Louis Trintignant, encarregue pelo regime mussoliniano de matar um antifascista em Paris, é um homem fraco, sem amor-próprio nem carácter, produto de uma família burguesa decadente) ou ainda os “anos de chumbo” do terrorismo. Que deram origem a um dos melhores filmes de Bertolucci, “A Tragédia de um Homem Ridículo” (1981), com Ugo Tognazzi no papel de um industrial arruinado cujo filho é raptado por um grupo de extrema-esquerda, mas que desconfia que o rapaz simulou o rapto e está feito com os terroristas para ficar com o resgate.

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[o trailer de “1900”:]

[“Tragédia de um Homem Ridículo”:]

Na obra de Bertolucci, filho do poeta, historiador de arte e crítico de cinema Attilio Bertolucci e de uma professora, e que antes de se dedicar ao cinema queria ser poeta como o pai, manifesta-se também uma forte pulsão erótica, que tem a sua expressão mais clara em “O Último Tango em Paris” (1972), à época escandaloso e muito censurado, mas hoje datado na sua pueril pose provocatória e na sua crueza sexual inconsequente, e que recentemente voltou a causar controvérsia, com as revelações de Maria Schneider sobre a cena da violação; bem como o tema das relações complexas entre pais e filhos, dramatizado no excelente “A Estratégia da Aranha” (1970), sobre um conto de Jorge Luis Borges, no muito psicanalítico “La Luna” (era grande adepto da psicanálise), ou nos citados “A Tragédia de um Homem Ridículo” e “Tu e Eu”.

[o trailer de “O Último Tango em Paris:]

[“La Luna”:]

Bernardo Bertolucci “nasceu” para o cinema sob a tutela estética e intelectual de Pier Paolo Pasolini, que era amigo e visita de casa dos seus pais. Foi assistente dele em “Accattone”, e com ele assinou o argumento do seu primeiro filme, “La Commare Secca” (1962), um drama policial muito inspirado por “Nas Portas do Inferno”, de Akira Kurosawa. Pertencente a uma nova geração do cinema do seu país e contemporâneo de nomes como Marco Bellochio, Bertolucci manifesta nos seus filmes influências do grande cinema clássico de Hollywood mas também da Nova Vaga nascente. E apesar do seu peso e militância político-social e de uma sensibilidade de ruptura, muito característica dos agitados anos 60 que inauguram, eles estão de alguma forma na continuidade de uma certa tradição dramática e narrativa do cinema italiano.

[“La Commare Secca”:]

O Bertolucci que surge em finais dos anos 80, associado ao produtor inglês Jeremy Thomas, virando costas a Itália e com vontade de fazer filmes para um “público mais vasto”, é o de superproduções de prestígio e “grandes temas”, como o majestoso “O Último Imperador” (1987), sobre Pu Yi, o derradeiro imperador da China, que ganhou nove Óscares, o bonito mas inerte “Um Chá no Deserto” (1990), adaptando Paul Bowles, ou o embaraçoso “O Pequeno Buda” (1993). O cineasta da revolução social e do sonho comunista tinha-se transformado num realizador “mundial” estetizante, decorativo e conformista. Fez ainda os indiferentes “Beleza Roubada” (1996) e “L’Assedio” (1998), “Os Sonhadores” (2003), amargamente nostálgico do Maio de 68 e com algum erotismo pelo meio. e “Eu e Tu”” (2012), um “huis clos” sobre dois meios-irmãos refugiados numa cave, bem como duas curtas para as antologias “Ten Minutes Older: The Cello” (2002) e “Venice 70: Future Reloaded” (2013). Nesta, Bernardo Bertolucci filmou-se circulando por Roma na cadeira de rodas a que estava confinado, depois de uma operação a uma hérnia discal.

[“O Último Imperador”:]

[“Eu e Tu”:]

Casado com a argumentista e realizadora Clare Peploe, Bernardo Bertolucci recebeu o Leão de Ouro de Carreira do Festival de Veneza em 2007 e uma Palma de Ouro Honorária do Festival de Cannes em 2011. Entre os projetos que não conseguiu concretizar contam-se uma adaptação de “A Condição Humana”, de André Malraux, e outra de “Colheita Sangrenta”, de Dashiell Hammett, que seria rodado em Hollywood com actores como Clint Eastwood, Warren Beatty ou Jack Nicholson. Foi tema de um documentário, “Bertolucci on Bertolucci” (2013), de Luca Guadagnino e Walter Fasano.

[“Venice 70-Future Reloaded”:]