Começa tudo no Cais de Gaia. Este é um dos locais de eleição dos turistas que procuram a paisagem ideal do Porto antigo, para levar a selfie e a foto-postal para casa, mas também para conhecer a história do vinho que deu fama à cidade nas muitas casas que se estendem pela margem do rio. Entre novidades que se sucedem com relativo dinamismo, o 17.56 Museu e Enoteca da Real Companhia Velha é certamente uma das mais curiosas.

Entrando no número 44 da Rua Serpa Pinto, não é o aroma do vinho que nos dá as boas vindas, mas sim um outro bem distinto. “É o nosso mais recente espaço”, apresenta Pedro O. Silva Reis referindo-se à Bloom de Margarida Botelho Rodrigues — de há poucas semanas para cá este espaço vem enchendo o ar de notas florais e o rés-do-chão de arranjos bem integrados nas paredes de madeira. Mais do que uma florista, a Bloom reclama para si o epíteto de “flower design”, levando muito a sério os cheiros, as cores e as texturas das flores. “Na Bloom, vemos os arranjos florais como uma expressão de arte, sofisticação e bom gosto”, assume Margarida na nota de apresentação enviada à imprensa. E por se tratar de um ofício de arte, uma das novidades que esta quarta loja do grupo traz é a organização de workshops e eventos de charme, além das habituais soluções de decoração para fora.

O museu

“Vamos passar ao Museu?”, lança Pedro com prontidão, abrindo-nos o torniquete que dá acesso a mais de 260 anos de história do Douro. O filho do atual proprietário é enérgico na apresentação, tem datas e factos na ponta da língua, fala do ano de 1756 como se tivesse vivido no século XVIII e presenciado a fundação da Real Companhia Velha por Alvará Régio do Rei D. José I e com o patrocínio do Marquês de Pombal. “É a primeira região demarcada e regulamentada do mundo”, porque somente demarcada “já existiam a Toscana IGP e a Tokaji na Hungria”, completa.

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O Museu da Real Companhia Velha

No Museu, inaugurado no final do Verão, é possível ver esse mesmo Alvará, folheá-lo numa plataforma digital e consultar a primeira ação da empresa. São esses os documentos mais antigos em exposição, juntamente com o marco de feitoria de 1758. A seu lado há outros objetos de antanho, como garrafas comemorativas que atravessam vários séculos, materiais agrícolas que entraram em desuso, como o pulverizador manual, stencils que gravavam o nome das empresas exportadoras nas caixas de Vinho do Porto, uma liteira real do séc. XVIII ou uma majestosa cepa arrancada do Douro, de um castanho terra carregado e com nós que humanizam os seus ramos.

“A Real Companhia Velha era uma empresa essencialmente exportadora e engarrafadora, até que o meu avô tomou conta dela e apostou na produção própria”, diz Pedro O. Silva Reis ao passar para uma sala com duas cronologias contíguas. Uma revisita os vários presidentes da empresa até a este último ciclo inaugurado em 1960 por Manuel da Silva Reis, o avô que trouxe para a RCV as suas atuais quintas “a primeira a ser adquirida foi a das Carvalhas”, nota Pedro; a outra cronologia encadeia os marcos mais importantes dos 260 anos de empresa em paralelo com acontecimentos curiosos da História mundial, “para contextualizar os factos”. Ficámos a saber, por exemplo, que quando Manuel da Silva Reis tomou conta da RCV, Portugal tornou-se membro da EFTA, a OPEP foi criada e Jimmi Hendrix deu a sua primeira atuação pública. Ou que no ano de 1888, enquanto estava a ser inaugurada no Porto a Real Companhia do Norte de Portugal, com funções de agente intermediário entre a produção e o comércio, em Inglaterra surgia a Liga Inglesa de Futebol e nos Estados Unidos a National Geographic Society.

Uma companhia real(mente) velha. São mais de dois séculos de vinho do Porto

Nos registos de vídeo há também alguns materiais interessantes, a começar pelos documentários que davam conta da vida dos operários no antigo complexo da Real Vinícola, as atuais caves da RCV, e outros que mostram os homens a carregar pipas nos barcos rabelos, rio abaixo desde a Régua até ao Porto. “Ali”, aponta Pedro, “é o Cachão da Valeira”, um dos troços mais difíceis de navegar. “Foi lá que morreu o Barão de Forrester. Afundou-se com os bolsos cheios de ouro, era um homem bastante avarento. Já Dona Antónia, que também ia na embarcação, salvou-se porque as abas do seu vestido fizeram de boia e ela flutuou”, conta.

A terminar a visita, com fotografias do início do século XX de Domingos Alvão, que impressionam pela sua nitidez, está uma sala de provas e uma loja com cerca de 76 referências da Real Companhia Velha. Uma pequena amostra a abrir o apetite para o piso de cima.

A enoteca

“A Enoteca foi uma ideia que evoluiu da festa dos 250 anos.” Na altura, recorda Pedro, a Real Companhia Velha celebrou a data com um jantar descontraído, onde se sucederam várias especialidades gastronómicas degustadas em paralelo com diferentes vinhos da empresa. “Correu muito bem e aquilo ficou-nos na cabeça”, na de Pedro filho e na de Pedro pai, o atual presidente. A fórmula ganhou expressão pública com a abertura da Enoteca. Aqui convivem, sem paredes ou divisões fechadas, a cozinha do mar, com peixes e mariscos a desfilarem nas mãos da equipa do chef José Mendonça, as especialidades nipónicas do restaurante Shiko, as carnes maturadas e focaccias do Reitoria, as mais de 500 referências de vinhos nacionais e internacionais do wine bar e a seleção de queijos da fromagerie portuguesa.

A enoteca

Informalmente elegante, com mesas altas e outras convencionais, espelhos estrategicamente colocados para dar profundidade, uma esplanada com vista para o rio, um wine bar e um balcão japonês ao meio, a Enoteca caracteriza-se pela sua versatilidade. Quem lá chega não precisa de escolher o lugar em função do que vai comer ou beber. A lista é compartilhada e inclui todas as sugestões dos diferentes espaços.

Da fromagerie saltam à vista as tábuas de queijo de 100 (€12), 200 (€19) e 400 gramas (€38) e que são compostas por queijos nacionais e internacionais, todos feitos artesanalmente e a partir de leite cru. Serra da Estrela, Senras, Azeitão, cabra e ovelha de cura normal e prolongada destacam-se nos nacionais, stilton nos ingleses e camembert, époisses e chèvre nos franceses, com assinatura da afinadora Marie-Anne Cantin. Todos os queijos podem ser levados para casa, ao peso, e para jantares especiais, a fromagerie elabora e entrega tábuas por encomenda.

No lado oposto, estão duas cozinhas envidraçadas que dão serviços bem distintos. Uma pertence ao Reitoria, o restaurante que apareceu há cinco anos no Porto e que conquistou fãs com as suas carnes maturadas e focaccias. Para a Enoteca, esta steakhouse levou alguns dos seus mais belos exemplares, exibidos e conservados numa câmara de maturação que vai dos “30 aos cento e poucos dias”, com o wagyu escocês (€22/100gr), o black angus irlandês, a rubia gallega ou o costeletão premium nacional (€7/100gr). Para além das traicionais focaccias, há também algumas especialidades conhecidas da casa, como os ovos rotos (€11) ou a selecção de enchidos Joselito (€18).

Ao comando dos peixes e mariscos está José Mendonça, de 30 anos, o chef que conduz a outra cozinha da Enoteca. “É uma cozinha muito tradicional”, com açorda, bacalhau, polvo e peixe sempre fresco. “90% do peixe é grelhado”, mas se o cliente preferir outro tipo de confeção, José não descarta o pedido. Entre as especialidades destacam-se os filetes de polvo com arroz do mesmo (€18), o rodovalho no carvão (€24) ou a açorda de camarão e bacalhau (€10). Tanto a grelha como o forno funcionam a lenha, garante José, e isso nota-se no paladar. Já nos mariscos há lavagante, ameijoas, berbigão, lingueirão, sapateira, caranguejo real, de tudo um pouco para satisfazer o verdadeiro apreciador destes crustáceos do mar.

Passando para a tasca japonesa de Ruy Leão, aqui rearranjada numa cozinha aberta, de formato retangular e com lugares a toda a volta do balcão, todos os produtos são trabalhados da forma mais pura possível. “Nada de fusão, de queijos ou de frutas”, diz o sub-chef Bernardo sobre o sushi, enquanto lamina uma corvina com a destreza de um samurai. Nos peixes privilegia-se a sazonalidade e as espécies da costa portuguesa, “trabalhámos com cavala, sardinha, carapau, pargo, sarrajão, salmonete”, e a lista contínua mar adentro. Uma das raras exceções é o salmão, estrela indispensável da cozinha nipónica e que está presente no sushi (€9 – €20) ou no tataki de salmão (€14), um prato de tons alaranjados inspirado nas planícies alentejanas. Outras especialidades são a cavala marinada regada com molho miso (€12), o tori nanbam (€8), pedacinhos de frango frito com molho agridoce, ou o ceviche nikkei (€10). Brevemente haverá novidades, “estamos a trabalhar uma carne galega para fazer um nigiri”.

Para acompanhar qualquer uma destas opções, há uma carta de vinhos com 500 referências que abarca diversas regiões portuguesas e estrangeiras. “Demorei uma semana a estruturá-la”, confessa Pedro que diz nunca se esquecer de nenhum vinho que provou. O Romanée Conti de 1999, da Borgonha, está no topo dos inesquecíveis, dá como exemplo, “e está também na carta.” Dos 500, cerca de 250 vinhos provêm das 40 castas espalhadas pelos 555 hectares de vinha das quintas da Real Companhia Velha, os restantes estão distribuídos por outras casas nacionais e por regiões demarcadas internacionais. Com marcação prévia, é possível fazer provas personalidades, à medida da exigência de cada cliente.

A finalizar a visita, ainda fomos conhecer uma última divisão nobre da Enoteca, a sala de charutos. “Os aficionados trazem os seus charutos de casa para os degustarem aqui, mas nós também temos uma selecção de charutos disponíveis”, aponta Pedro para os cubanos Bolivar, José L. Piedra ou os Romeo y Julieta. Organizados numa monta de vidro e dispostos como se fossem joias, cada variante de charutos está conservada a uma temperatura e humidade controladas, para manter as suas propriedades. É neste “espaço de culto” que terminam muitos dos almoços e jantares da Enoteca. “Eu não sou um apreciador de charutos”, confessa Pedro com descontração, mas para quem o é, garante, ficar horas sentado entre o fumo e os sofás com vista para a ribeira é um prazer tão grande como degustar uma boa garrafa de vinho.

INFORMAÇÕES

17•56 Museu & Enoteca da Real Companhia Velha
Alameda da Rua Serpa Pinto, 44B (entrada principal)
Telefone: 222 448 500

Museu
Horário: 10h30 às 19h00
Preço: €15 por pessoa (com prova de vinhos)

Enoteca
Horário: 11h00 às 23h00