A 44ª edição do Portugal Fashion arrancou esta quinta-feira, na Alfândega do Porto, e com ela a moda portuguesa tomou nota das suas novas promessas. O Modatex, nome simplificado para Centro de Formação Profissional da Indústria Têxtil, Vestuário, Confecção e Lanifícios, inaugurou o calendário. Nove jovens criadoras — sim, o desfile coletivo fez-se só com mulheres — apresentaram pequenas coleções de final de curso. Da permeabilidade a todo o tipo de expressões artísticas às próprias memórias de família, através da roupa, as estreantes Ana Carvalho de Sousa, Cláudia Tavares, Daniela Antunes, Inês Bompastor, Inês Cesariny, Inês Oliveira, Joana Aranha, Lara Gorgulho e Maria Bouçanova pisaram a passerelle como gente grande ou, pelo menos, estrearam a sala que,horas mais tarde, viria a receber o desfile de um dos grandes veteranos da moda nacional.

Seguiu-se o fandango dos desfiles emparelhados, com Sofia Silva e Ashma Karki. De uma assentada, evocações de laços familiares, por parte da primeira, e uma reflexão sobre o materialismo crónico e, até ver, incurável de que sofremos enquanto sociedade, do lado da segunda, ambas estreantes no espaço Bloom, plataforma dedicada aos novos talentos da área e responsável por fazer as honras do evento. Sofia não retratou só a sua relação com a sua irmã gémea, através da aplicação de argolas e da utilização de tons pastel — sobretudo o amarelo, por ser a cor que mais associa à irmã. Foi mais fundo e transportou para o vestuário, através de formas circulares, a divisão celular na origem do fenómeno biológico.

Coleção “Trashma”, da designer nepalesa Ashma Karki © Ugo Camera

Já a designer nepalesa Ashma Karki foi direta à missão das consciencialização, ponto que viria a motivar outros designers na mesma noite. O Nepal pode ser uma casa de partida improvável para um designer de moda à procura de construir carreira no ocidente, mas nada é impossível — vamos só recordar o sucesso de Prabal Gurung, sobretudo nos Estados Unidos. Refletir sobre questões como a poluição, a natureza e o estilo de vida do ser humano já é prática comum para Ashma. Daí que as semelhanças entre os seus coordenados e sacos de lixo não sejam mera coincidência. Feitas a partir de resíduos da Tintex, fábrica têxtil de Vila Nova de Cerveira, mas não só, as peças surgiram como volumes disformes e desconformes. Mais do que a usabilidade, a designer pensou na mensagem que queria passar. Conseguiu.

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Carolina Sobral, Arieiv, João Sousa e 0.9 Virus — um upload no Bloom

Ainda durante a tarde, o Bloom desdobrou-se numa segunda e nova versão: o Bloom Upload. Chamemos-lhe apresentação coletiva para não estreantes. Quatro nomes foram convidados a mostrar coleções cápsula para a próxima estação fria num formato alternativo ao desfile convencional e com apenas cinco coordenados cada um. Houve de tudo, a começar pela 0.9 Virus, marca criada por Filipe Ferreira, dada a conhecer ao mundo há precisamente um ano, na 42ª edição do Portugal Fashion. O amarelo refletor, essa espécie de linguagem universal, tanto no trânsito como na moda, foi o caminho seguido pelo jovem designer, que optou ainda por explorar volumes e a rigidez de alguns materiais.

Carolina Sobral © Ugo Camera

O referencial estético de Carolina Sobral foi outro. Os longos vestidos de cetim e os sobretudos overzised, em visuais quase sempre monocromáticos, marcaram a silhueta mais feminina desta leva de quatro designers. Clássica e minimal, com fluidez e conforto combinados, Carolina, que concluiu o curso na ESAD Matosinhos em 2014, levou mais realidade (e menos experimentalismo) para a sala de desfiles.

Bem mais dramáticas foram as volumetrias apresentadas por José Pinto, designer por detrás da marca Arieiv (que, de propósito ou não, é Vieira ao contrário). Na base da coleção “Rage” está a ideia de um banco de embriões sem género, traduzida, por sua vez, em volumes, folhos, mangas balão, bocas de sino e pelo cor-de-rosa. O quarteto ficou completo com João Sousa, ele que se estreou no espaço Bloom na edição passada. Com apenas 18 anos, trouxe crueza para a passerelle. As sarjas e linhos ficaram por tingir, tendo sido o seu “branco” natural a sobressair, bem como o aspeto artesanal das peças.

Esta vida de (jovem) designer de moda

O Bloom não estaria completo sem a suas atuais apostas mais risonhas. Há algo que une Rita Sá, Mara Flora, Maria Meira e Daniela Pereira, que, por esta ordem, apresentaram as suas coleções na tarde de quinta-feira — uma aproximação a uma linguagem mais comercial, na tentativa de consolidarem as suas marcas e de porem a engrenagem (vendas) a funcionar. Rita Sá foi a primeira. Depois de uma primeira apresentação na ModaLisboa e de uma segunda já no calendário Portugal Fashion, continuou fiel a si mesma — monocromática, como já habituou o público, deixando o caminho livre para explorar a construção e as texturas das suas peças. O provérbio “Em casa de ferreiro, espeto de pau” deu o mote àquela que, ainda assim, é uma viragem substancial na direção criativa da marca. É como se a própria criadora seguisse a máxima que a inspirou e contrapusesse o perfecionismo de peças impecavelmente construídas com coordenados que, por obra do desleixo, se compõem de encaixes e fragmentos de outras peças. Tudo isto pintado a bege, cor bem mais consensual do que o azul e o amarelo vivos utilizados anteriormente.

Rita Sá © Ugo Camera

Mara Flora trouxe um workwear minimal. Um guarda-roupa de transição, aos olhos da criadora. O fato, elemento central da coleção, vem em força com a idade adulta, mas há uma parte da adolescência que continua a latejar e que fez Mara exagerar no comprimentos das mangas e na largura dos ombros, utilizar ganga e ainda completar o quadro com folhos. A paleta manteve-se sóbria do princípio ao fim, uma fórmula usada, mais uma vez, para tornar o produto comercialmente mais atrativo. Maria Meira trabalhou para o mesmo objetivo, mas noutro nível. Sem comprometer o seu ADN, desde o início marcado pelo sportswear, fez cedências. Retrabalhou as silhuetas. Os volumes estiveram lá na mesma, através de derivações de puffer jackets, ao mesmo tempo que os materiais técnicos foram postos ao serviço de clássicos do guarda-roupa feminino. No limite, poderíamos imaginar uma manequim a percorrer a passerelle com um fato de treino numa versão vestido de baile. Aconteceu.

Daniela Pereira © Ugo Camera

Enquanto isso, o menswear de Daniela Pereira está cada vez mais consistente. A designer apresentou 15 coordenados, todos eles interligados pela inspiração no hip hop dos anos 90. A construção das peças tornou-se mais linear, pelo menos em comparação com a coleção anterior. Com Basotho (tribo do sul de África onde também recolheu referências) aproximou-se do streetwear e afastou-se dos pormenores delicados com que tem vindo a florear o guarda-roupa masculino.

A noite foi de Maria Gambina… e da Nancy

Júlio Torcato não abriu a noite por acaso. Na última edição, o designer encerrou o calendário em clima de festa — afinal, eram 30 anos de carreira e o anunciado último desfile –, daí que o regresso, seis meses depois, fizesse sentido na forma de uma abertura. Pois bem, Júlio Torcato não mentiu quando disse, em outubro do ano passado, que aquele seria o seu último desfile, pelo menos no formato convencional. Para o segundo andar da Alfândega do Porto, levou apenas nove coordenados, dez se contarmos com o de Raquel Prates, musa e amiga a quem coube fechar o desfile — perdão, a performance. Numa chamada de atenção para as espécies animais em sério risco de extinção, os manequins percorreram metade da sala com passadas maquinais, para depois depois formarem um quadro junto a três ecrãs com imagens de vida selvagem. A intervenção não ficou por aí. O criador procurou, no próprio vestuário, reduzir o impacto ambiental, nomeadamente utilizando poliéster reciclado.

A apresentação de Júlio Torcato © Ugo Camera

Depois de Paris, em janeiro, Hugo Costa trouxe a sua “Maybe We’ll Be Together Again” para o Porto. A coleção evoca muros e a necessidade de demoli-los — mote que levou o criador a perpetuar aquela que já é a sua silhueta, porém a colori-la com laivos de rebeldia. Resta-nos concluir que a ganga a desfiar e as mensagens de intervenção lhe assentam como uma luva.

A nova coleção de Hugo Costa quer deitar muros abaixo, em Paris e no Mundo

Coube a Maria Gambina fechar o primeiro dia de desfiles na Alfândega do Porto. Já na sala das colunas, no piso térreo, a criadora, que regressou ao calendário do Portugal Fashion na edição passada, mostrou “Nancy”, ou seja, o inverno de 2019 desenhado à imagem e semelhança da sua boneca esquiadora dos anos 70. De Aspen a Saint Moritz, a viagem percorre o imaginário das grandes estâncias de neve e da estética que celebrizaram na segunda metade do século passado. As peças em tricot, o corta-vento e os materiais técnicos dos fatos de esqui aplicados a vestidos rodados e blusas com plissados — tudo neste universo foi reatualizado para um guarda-roupa urbano e fiel aos trejeitos da criadora.

“Comecei a desenhar esta coleção antes da que apresentei na estação passada”, confessa Maria Gambina, à conversa com o Observador. Quando se apercebeu que precisava de uma coleção de verão, e não de inverno, Gambina deixou “Nancy” em standby. Acabou por conclui-la e por dar mais um passo rumo à sustentabilidade. Além dos materiais reciclados que usa, a designer está determinada a pôr fim aos stocks. De agora em diante, as suas peças, à venda online, serão produzidas apenas mediante encomendas, incluindo as que desfilaram esta quinta-feira à noite, também elas já disponíveis no site. Terminar com os excedentes e com o desperdício no ramo têxtil é um dos propósitos da marca, responsabilidade que Gambina considera ser transversal a todos os designers. “Como designers temos de pensar que, acima de tudo, o design também serve para passar uma mensagem”, remata.

Este foi só o primeiro dia do Portugal Fashion. Na sexta-feira, os criadores portugueses continuam a antecipar o outono-inverno 2019/20, com desfiles de Katty Xiomara, Diogo Miranda, Luís Buchinho e Miguel Vieira, entre outros. Até lá, veja as imagens dos desfiles do primeiro dia na fotogaleria.