Estava na reserva desde 2014 quando foi convidado pelo primeiro-ministro, António Costa, para seu assessor militar. E eram essas as suas funções quando, em junho de 2017, o vice-almirante José Montenegro soube do furto de material de guerra do paiol de Tancos. Ainda assim, garantiu esta terça-feira na comissão parlamentar de inquérito ao caso, o militar nunca falou com o chefe de Governo sobre o tema, nunca o aconselhou nem teve qualquer informação privilegiada. Tudo o que soube foi pela comunicação social.

O relato feito ao longo de cerca de uma hora pelo assessor militar, que se reformou em maio de 2018, revela que, em dois anos de trabalho, raramente teve acesso a informação privilegiada, apenas o relatório do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (e nunca do SIS), e que nem todos os documentos que o gabinete recebia sobre as suas matérias lhe chegavam às mãos. Revelou ainda que raramente falava diretamente com o primeiro-ministro. “As reuniões que tinha eram com a chefe de gabinete, a não ser num caso ou outro…”, respondeu, evasivo, ao deputado social democrata, José Matos Rosa, que estranhou que um assessor militar como ele nunca tenha feito qualquer relatório sobre o tema Tancos ao primeiro-ministro.

Em sua defesa, o vice-almirante explicou que, como cidadão, sentiu que o furto a Tancos foi uma “injustiça terrível para o Exército”. Já na pele de “militar”, descreveu a notícia do furto como um “choque”. “Qualquer cidadão português ficou afetadíssimo por isto, porque a imagem do país externamente também ficou”, explicando depois que “a dimensão do roubo e a perigosidade do material roubado” eram por si só motivos de preocupação. Explicação esta que motivou mais ainda estupefação por parte dos partidos à direita.

Os deputados insistiram. Mas nunca nada foi dito ao primeiro-ministro? “Fiquei na expectativa de alguma démarche, de algum pedido do primeiro-ministro, mas tal não aconteceu”, acabou por dizer. “Não fazia relatórios dos meus estados de alma”, justificou. Mais à frente, numa outra ronda de respostas, desta vez ao CDS, voltou a mostrar como assessorava passivamente o primeiro-ministro, esperando que este lhe pedisse informações que nunca pediu. “Não tomei ação alguma, fiquei na expectativa de qualquer coisa que o primeiro-ministro pretendesse de mim”.

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O deputado do CDS, António Carlos Monteiro, lembrou o assessor que, logo após o furto, o primeiro-ministro foi de férias. E perguntou se, por acaso, o assessor militar não lhe tinha recomendado adiar o período de descanso, dada a gravidade do que acontecera paro País. “Não o fiz, nem me passaria pela cabeça fazer alguma recomendação ao primeiro-ministro sobre as férias”, respondeu.

Em suma, o assessor militar explicou, logo de início, que os únicos contactos com o tema Tancos foram tidos numa reunião a 11 de julho, em que participaram António Costa, o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, e os chefes militares. Uma reunião que, segundo se recorda, não precisou de preparação, e na qual apenas encaminhou os participantes para a sala. “Não me recordo se fiz a convocatória”, disse. No final dessa reunião, quem acabou a falar à comunicação social foi Pina Monteiro, o então Comandante do Estado Maior General das Forças Armadas — que classificou o caso como um “murro no estômago”. Os ministros deram a cara, mas ficaram atrás a ouvir.

De resto, disse o vice-almirante José Alfredo Monteiro Montenegro, os contactos com este processo foram por via das audições da comissão de defesa e pelo relatório de Tancos feito em 2018 pelo ministro da tutela. Durante todo este período, só teve um contacto com a o diretor da PJM, Luís Vieira, que não se recorda se foi por email ou por telefone, e sobre a lei orgânica, nada mais. E com o tenente-general Martins Pereira, que à data era chefe de gabinete do ministro da Defesa? Apenas “conversas informais”.

Se o contacto com Luís Vieira corroborou a versão por ele apresentada, o memorando que ele terá enviado a 4 de agosto não colheu versão idêntica. O diretor da PJM, Luís Vieira, garantiu aos deputados que, a 4 de agosto de 2017, fez um memorando a tecer considerações legais sobre as razões para a investigação ao furto a Tancos ficar na PJM e não na PJ civil. Na comissão de inquérito, o responsável garantiu que fez chegar esse documento ao gabinete do ministro da Defesa, ao chefe da Casa Civil do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e até ao gabinete do primeiro-ministro António Costa. O vice-almirante, assessor militar de António Costa, no entanto, desconhece a existência de tal documento. E nem pela comunicação social a informação lhe chegou. “Só soube do memorando por esta comissão parlamentar de inquérito”, disse.

Já no final, o deputado do CDS voltou à carga com uma pergunta, em jeito de resumo das declarações prestadas e manifestando grande “estranheza”. “Primeiro-ministro e assessor militar que é que estiveram aqui a fazer? Pelos vistos até de férias se vai e nem se deixa uma instrução sobre assunto?”, disse o deputado que considerou que, a avaliar pela audição, ministro e assessor ficaram alheios ao caso.

“Isso foi uma pergunta bem grande”, ironizou o militar, para depois responder.

“Parece-me uma expressão exagerada dizer que o primeiro-ministro não se preocupava com o assunto, mas, como referi, aquilo que foi importante foi salvaguardar que idêntica ocorrência não acontecesse. O Exército também decidiu colocar o material de Tancos noutros paióis e a grande preocupação na área da Defesa foi que essa salvaguarda do material fosse o mais eficaz possível. E esta foi a ação tomada pelo senhor ministro da Defesa Nacional. A partir daí, foi deixado para as autoridades judiciárias… Acho natural que o primeiro-ministro não quisesse interferir, confiando na sua ação”, disse.

No final da audiência, a deputada social democrata, Fátima Ramos, também quis deixar claro o seu “estado de alma” — seu e não do partido, como sublinhou. “Devo manifestar uma desilusão pelas suas declarações e até dou razão a muitos portugueses que dizem que o Governo tem assessores a mais, porque efetivamente a conclusão que eu tiro é: ou o senhor não ouvia ou não cumpria o seu papel. O senhor primeiro-ministro nomeou três assessores para esta área e não um, como o seu antecessor, e pagou pela sua assessoria. Não consigo perceber como existe um afastamento em relação a um assunto tão complexo”.

O vice-almirante não deixou a deputada sem resposta e acabou por informar quem, afinal, é o verdadeiro assessor da Defesa de um primeiro-ministro. “O conselheiro privilegiado do primeiro-ministro em matéria de Defesa é o ministro da Defesa e o assunto é de tal maneira relevante que a sua principal tarefa é estar na expectativa que ele precise dele”, concluiu.

Comandante de Santa Margarida não barrou PJ, apenas “cumpriu ordens”

Antes de ouvir o assessor militar de António Costa, a comissão de inquérito ouviu também o brigadeiro-general Mendes Ferrão, comandante da Brigada Mecanizada em Santa Margarida, para onde foi levado o material de guerra furtado em Tancos.

Numa breve introdução, o militar explicou aos deputados que teve conhecimento da recuperação do armamento a 18 de outubro de 2017, pelas 10h00, quando chegou ao quartel de Santa Margarida pela boca do então diretor da Polícia Judiciária Militar, coronel Luís Vieira.

Mendes Ferrão diz que se limitou a dar ordens aos seus homens para que providenciassem um paiol seguro para armazenar as armas que tinham sido furtadas nos paióis nacionais de Tancos — um local onde, aliás, garante nunca ter estado. Afirmou, também, que desconhecia completamente em que mãos estava a investigação. “Não fui notificado nem tinha conhecimento do despacho da senhora procuradora”, disse em resposta ao PSD, causando alguma estranheza.

Pelas 11h00, porém, foi informado de que estariam à porta inspetores da Polícia Judiciária civil a quem tinha sido entregue a investigação do furto de armas. “Perguntei ao diretor da PJM e ele disse que eles só entravam com mandado judicial”, conta. Telefonou de seguida ao Comandante do Estado Maior do Exército (CEME), general Rovisco Duarte, e ele concordou.

“Não barrámos a entrada”, ressalvou. “O que acontece é que o mandado foi assinado as 11h e só chegou mais de cinco horas depois. Tive conhecimento que o mandado estava assinado e deixei-os entrar quando voltaram a segunda vez”, recorda, explicando que se limitou a cumprir as regras que definem os acessos a uma unidade militar.

Quando o deputado do CDS-PP, Telmo Correia, lhe perguntou se tinha consciência que impedir a polícia de entrar e fazer o seu trabalho tinha acabado por ser uma “ilegalidade”, tanto dele como do próprio CEME, a resposta foi curta e direta: “Foi isso que aconteceu, eu propus uma ação e ele aprovou-a”.