Isto começa invariavelmente assim: um neto que rouba discos à estante dos avós. A partir do momento em que lhes deita a mão, que lhes atira os ouvidos, os discos tornam-se seus. Bom, aqui há uns desvios, uns apontamentos noutro tom. Francisco Salvação Barreto passava parte das férias de verão no Porto, com os seus irmãos, cidade onde nasceu a mãe. Devia ter uns 14 anos quando teve altura – ou vontade, perspetiva, talvez – para se encantar com a coleção de discos do avô materno que repousava na cómoda.

“O meu avô materno tinha, e tem, uma coleção muito eclética de música clássica, jazz, brasileira, fado. Numa tarde qualquer lá me pus a espreitar os discos. Comecei a achar graça até que ouvi o João Ferreira-Rosa. Percebi nessa altura que queria fazer parte daquilo… Fui claramente interpelado pelo João. Nesse verão obriguei a minha avó a calcorrear o Porto à procura de discos do João. Ofereceu-me o Ontem e Hoje, que continua a ser um dos marcos desta arte”, conta Francisco.

Um salto e duas cambalhotas devolvem-nos ao presente, onde Francisco Salvação Barreto tem um disco editado, Horas da Vida, cujo lançamento esgotou o Jardim de Inverno do São Luiz, em Novembro de 2018. Esta sexta-feira leva-o ao CCB e ao “Há Fado No Cais”, parceria com o Museu do Fado, que é, de resto, responsável pela edição do disco. Estará acompanhado por Pedro Amendoeira na guitarra portuguesa, Rogério Ferreira na viola e Francisco Gaspar na viola baixo.

A capa de “Horas da Vida”, de Francisco Salvação Barreto

Horas da Vida, convém dizer, é um disco com direção de voz de Camané, um trajeto de treze canções onde manda, quase num jeito de grande líder, de quem se impõe com veemência, o tradicional, o fado clássico, os temas recorrentes do amor, do ir, do ficar. As letras são de ilustres como João Monge, Maria do Rosário Pedreira, José Luís Gordo, Aldina Duarte, Manuel Andrade, João Mário Veiga. Uma sorte, diz Francisco:

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“Tive a sorte de ter amigos a escrever para mim e de estar rodeado de talento. A Aldina Duarte, a Maria do Rosário Pedreira, o José Luís Gordo, que me conhecem e me descrevem como eu gostaria mas não tenho, nem lata, nem qualidade para isso.”

Quanto ao tradicional que invariavelmente se encontra em cada tema do seu disco, admite que é essa a sua zona, é aí que gosta de estar: “Continuo a entusiasmar-me com a sua aparente simplicidade. É nela que os estilos, as nuances, as marcas de cada intérprete se tornam singularmente radiantes.”

Felizmente que no texto sempre houve viagens no tempo. Regressemos à adolescência de Francisco Salvação Barreto, onde, pois claro, começou por cantar em contextos mais íntimos, isto é, jantares de família, encontros com amigos, copos e iguarias que nos fazem chegar a cadeira para trás, respirar fundo e ir com tudo. Depois, já se sabe, o caminho faz-se caminhando, o caminho leva-nos sempre às casas de fado.

Hoje trabalha no Sr. Vinho de segunda a quinta, mas foi por volta dos 17 anos que começou a frequentar estes espaços: “Comecei a ir quando entrei para a faculdade. Ia com um ou dois amigos. Éramos sempre os mais novos. Há 20 anos não era muito normal, miúdos daquela idade irem aos fados. Agora mudou. Ainda bem. Mas sim, admito que as casas de fado são essenciais para mim, porque são mesmo a nossa escola. Todos os grandes passaram por elas. O fado é uma tradição oral, tem que se estar, ouvir cantar, ouvir as histórias, sentir o ambiente. É preciso tempo. É nas casas de fado que o fado o é, por excelência. É uma coisa de pele e de respiração”, explica.

[“Horas da Vida”:]

E agora um plot-twist, coisa que tanto agrada aos fanáticos de séries e filmes. É que Francisco Salvação Barreto, hoje com 37 anos, é, além de fadista, arquiteto paisagista. Pois é. E sim, faz fado e arquitetura em simultâneo, e não há problema nenhum com isso. “Sim, acumulo funções. Na verdade nós não somos só uma coisa. Eu sou marido, pai, filho, neto, arquiteto paisagista… e fadista. A setorização aflige-me, o arquiteto paisagista também não é exceção, trabalha em várias frentes. Desde o projeto do pequeno jardim privado até aos planos de Ordenamento do Território, a Estudos de Impacto Ambiental. É uma profissão extraordinária e cheia de beleza. O belo é evidente quando se respeita e realça a vocação de alguma coisa”, enquadra.

É mais uma certeza de que somos fruto da transmissão de ideias e hábitos, é daí também que lhe vem o gosto por História de Arte, dos seus pais e avós: “O estar atento à beleza. O comover-se com o belo. Sempre nos levaram a museus, ouvíamos música em casa e nas viagens de carro, havia livros por todo o lado. A minha mulher e eu tentamos fazer o mesmo com os nossos filhos. Promover, dar acesso e deixar andar serenamente. Se ficar alguma coisa, óptimo”, avisa. E isso é também o que esperemos que faça o fado de Francisco Salvação Barreto: que nos fique. Serenamente.