Em 2015, Daniel J. Siegel, coautor do livro e bestseller do The New York Times “Disciplina sem Dramas”, explicava ao Observador como acabar com as birras dos miúdos, aliando a neurociência à educação dos mais novos. Quase quatro anos depois, volta a dar-nos uma entrevista para apresentar o novo livro que, desta vez, pretende ajudar os pais a trabalhar a capacidade inata de resiliência, autonomia e criatividade das crianças.

O psiquiatra Daniel J. Siegel e a psicoterapeuta Tina Payne juntaram-se uma vez mais e assinam em conjunto a obra “Crianças Sim”, da editora Lua de Papel. No livro explicam como as crianças podem ser recetivas (“cérebro sim”) ou reativas (“cérebro não”) a determinadas situações: “Sempre que há um conflito potencial — desligar o telemóvel, fazer os trabalhos de casa, comer os ‘verdes’, ir para a cama — muitas crianças tendem a fechar-se ou a responder negativamente. É uma canseira, para pais e filhos. E é também aquilo a que Daniel J. Siegel e Tia Payne Bryson chamam uma resposta de ‘cérebro não'”, lê-se na contracapa.

Se até aos três anos é de esperar atitudes reativas por parte das crianças, a verdade é que os autores defendem que ainda antes desta idade os pais podem começar a ensinar os filhos a ter uma postura mais aberta e curiosa. Defendem eles que quando as crianças trabalham o “cérebro sim”, estão mais abertas a arriscar e a explorar, são mais curiosas e imaginativas. Ao Observador, Daniel J. Siegel diz mesmo:

Não conseguimos exercer a parentalidade com eficiência se o fizermos a partir do estado reativo. Este livro, “Crianças Sim”, ensina os pais a diferença entre um “cérebro não” e um “cérebro sim”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Este livro é um complemento ao anterior, “Disciplina sem dramas”? O que é que traz de novo?
O livro “Disciplina Sem Dramas” tem por base a ideia de que as pessoas pensam que disciplina é castigo, mas no livro tentamos explicar que disciplina significa ensinar e não castigar — em causa estão discípulos ou estudantes, não prisioneiros. O livro “Crianças Sim” olha para o facto de o nosso cérebro ter dois estados: o estado reativo e o estado recetivo. No primeiro, partes do cérebro que são muito velhas e que estão relacionadas com a nossa sobrevivência são ativadas e deixam-nos prontos para lutar, fugir, congelar ou desmaiar — estas quatro fases são formas de nos adaptarmos à sobrevivência. Podemos criar isto em alguém quando essa pessoa ouve continuamente “não, não, não” de uma forma áspera. Isto cria o estado reativo. O que acontece com o estado recetivo é o contrário: quando dizemos a palavra “sim” com muita calma estamos, basicamente, levar a pessoa do estado reativo para o recetivo, em que há conexão, saber receber e aceitar… É tendo em conta este estado que devemos exercer a parentalidade. Não conseguimos exercer a parentalidade com eficiência se o fizermos a partir do estado reativo. Este livro, “Crianças Sim”, ensina os pais a diferença entre um “cérebro não” e um “cérebro sim”.

Quer acabar com as birras dos miúdos? Leia este artigo

O que é um “cérebro sim” e o que é um “cérebro não”? Pode dar exemplos concretos?
Um “cérebro não” será, por exemplo, quando a criança está no parque infantil e não quer ir embora, pelo que grita e foge de nós… Isso será um estado reativo. O “cérebro sim”… imaginamos que nos sentamos com o nosso filho no parque e dizemos, ao seu nível e a olhá-lo nos olhos, “Brincar é tão divertido, é normal que não te queiras ir embora, eu também quero ficar aqui” — nesta fase ele olha para nós porque estamos a compreendê-lo e a conectar com ele. Continuamos: “Podemos ligar ao teu tio e dizer que, apesar de ele ter bilhetes para aquele filme que queremos muito ir ver, vamos ficar a brincar e ele que dê os bilhetes a outra pessoa”. Ao dizer isto estamos a explicar à criança que ela tem uma escolha — a maior parte das crianças escolheria o cinema. Esta é uma forma de comunicar com as crianças, em vez de gritar com elas ou tirá-las à força do parque.

Agir de acordo com um ‘cérebro sim’ não é dizer sempre que sim aos seus filhos. Não se trata de ser permissivo, de desistir, de os proteger das desilusões ou de os resgatar de situações difíceis. E também não se trata de educar uma criança submissa, que obedece automaticamente aos pais sem pensar por si própria. Pelo contrário, trata-se de ajudar as crianças a perceberem quem são, quem podem vir a ser, fazendo com que sejam capazes de ultrapassar as desilusões e os fracassos e escolher uma vida plena de relacionamentos e de significado.” Pág. 19

Porque é que é tão importante que os pais estejam a par do desenvolvimento do cérebro infantil? De que maneira é que esse conhecimento pode impactar a educação das crianças?
É importante porque, em última análise, a interação que os pais têm com as crianças cria alterações na estrutura dos seus cérebros. Quando os pais sabem disto conseguem agir no sentido de contribuir para que o cérebro da criança se desenvolva num sentido produtivo.

As crianças podem ser todas divididas em “cérebro sim” e “cérebro não”?
Isto não é sobre uma criança ser melhor do que a outra, tem que ver com determinados momentos de interação. O cérebro tem um modo recetivo e reativo. Se pensarmos nisso… imaginemos que estamos a andar na praia, que tudo é bonito e, de repente, somos assaltados — vamos de um estado recetivo, em que estamos tão contentes, para o reativo, em que vamos congelar, ou lutar ou fugir… Basicamente temos estes dois estados, é extraordinário.

As crianças que enfrentam o mundo com um ‘cérebro não’ ficam dependentes da sua sorte e dos seus sentimentos. Ficam presas às suas emoções, incapazes de as alterar, queixando-se da sua realidade em vez de encontrar formas saudáveis de lidar com ela. Ficam preocupadas, muitas vezes de forma obsessiva, por enfrentarem algo novo ou cometerem um erro, em vez de tomarem decisões com a abertura de espírito e curiosidade de um ‘cérebro sim’. A teimosia comanda o quotidiano de um ‘cérebro não’.” Página 17

O que está a dizer é que somos “cérebro sim” e “cérebro não” muitas vezes durante o dia, e que o livro sugere ferramentas para que as crianças sejam mais vezes “cérebro sim” ao invés de “cérebro não”?
Isso mesmo. O livro também oferece ferramentas para que as crianças consigam fazer essa transição entre estados. Enquanto pais não conseguimos exercer a parentalidade com um “cérebro não”. A ideia é aprender sobre estes dois estados que a maior parte das pessoas desconhece. Assim que aprendemos sobre eles ficamos numa posição de fazer alguma coisa.

O cérebro é realmente mais plástico na infância? É mesmo possível programar o cérebro?
Sim, é mais plástico na infância. A criança é mais aberta a aprender e também é mais dependente dos adultos. Nós não usamos a palavra “programar” porque em inglês vai mais no sentido de “controlo da mente”… Nós chamamos a isso aprender. Culturalmente, “programar” é como programar um robô. Olhamos para isto como uma ferramenta de aprendizagem.

Mas até que ponto não estamos a condicionar a personalidade da criança?
Nós somos capazes de melhorar a personalidade das crianças. A personalidade é uma combinação de temperamentos e de experiências.

No livro escreve que “um ‘cérebro não’ aparentemente omnipresente é típico e normal no desenvolvimento de uma criança de três anos”. Como assim?
É verdade. Vemos mais isso numa criança de três anos, que tem uma tendência para ser reativa. Não é uma coisa patológica, é mais uma questão de desenvolvimento. Durante estes primeiros anos eles estão a aprender a regular o cérebro.

Então, deveríamos ser mais compreensivos com as crianças até esta idade?
Exatamente. Não é preciso pensar nisso enquanto uma patologia, podemos antes encarar como uma oportunidade ao nível da parentalidade.

Um “cérebro sim” implica capacidade de alcançar estabilidade emocional e controlar o corpo e a mente. Isto não será pedir demais às crianças?
Não, estamos a falar de ferramentas que as ajudam. Não estamos à espera que as coisas aconteçam da noite para o dia, mas ao longo dos anos podemos ajudar as crianças a desenvolver estas competências.

Há uma razão para o equilíbrio ser o primeiro dos quatro fundamentos de um ‘cérebro sim’. De uma forma muito real, os outros três fundamentos — resiliência, discernimento e empatia — dependem todos da capacidade que a criança tem de apresentar algum equilíbrio emocional e controlo.” Pág. 39

Como se fosse uma semente?
Isso, como uma semente que cresce. Bonita analogia.

As crianças parecem brincar cada vez menos. Isso pode refletir-se negativamente no cérebro, dado que a brincadeira permite adquirir conhecimentos a vários níveis?
Brincar é essencial para um conjunto de coisas. É essencial para o desenvolvimento dos pensamentos, para o desenvolvimento emocional e também para o desenvolvimento social. A diminuição das brincadeiras não é bom a todos os níveis, incluindo o desenvolvimento físico. Sentar as crianças à frente de ecrãs e deixá-las fazer coisas sozinhas num ecrã não é brincar. Competir numa equipa também não é o que nós queremos dizer com brincar. Brincar é uma interação espontânea e autêntica, livre de julgamentos.

Mas como é que isto afeta o desenvolvimento do cérebro dos mais novos?
Há muitos estudos que mostram que se não brincarmos podemos ter menos competências emocionais e sociais, bem como criativas.

Isso são coisas importantes que necessitamos também na nossa vida adulta…
Isso mesmo. Acho que infelizmente os ecrãs ocupam muito do nosso tempo com jogos, redes sociais, vídeos… Isso aumenta o nosso sentimento de inadequação.

Quais as principais dificuldades que um adulto com um “cérebro não” enfrenta na vida?
São pessoas que estão constantemente a entrar em lutas, estão constantemente a atacar as pessoas, criam medo nos outros. Se são pais, criam dor nos filhos…Se estão numa equipa, criam terror na equipa… Se são presidentes de um país, criam uma sensação incrível de medo.

Refere-se ao atual presidente dos Estados Unidos da América?
Não vou comentar sobre isso, mas pode deduzir o que quiser dessa afirmação. Mas isto dá para explicar muito da polarização que existe no mundo e dá para perceber que políticos estão a fazer o seu trabalho numa perspetiva de “cérebro não” e os que estão a fazê-lo com base num “cérebro sim”. Se conseguirmos perceber o ponto de vista de um “cérebro não”, conseguimos perceber o que se passa no mundo.