Estávamos em 1999, o BE fazia a sua primeira campanha para as eleições legislativas. No Porto, Miguel Portas era cabeça de lista e para fugir ao modelo tradicional de comícios, o antigo dirigente do BE teve a ideia de recuperar a velha tradição de tertúlias e abrir um espaço de discussão informal à mesa de um café. O Café Piolho foi o local escolhido, uma morada conhecida por ser palco de conspirações políticas antes do 25 de abril, encontros, debates e o ponto de encontro de muitos estudantes da cidade. Hoje são ainda visíveis pedaços de história nas paredes espelhadas e perde-se a conta aos quadros, murais e homenagens de universidades, associações e tunas ao café que completa por esta altura 110 anos de vida.

Nas tertúlias originais, as conversas foram conduzidas por Miguel Portas e pelo mandatário, jornalista e poeta Manuel António Pina, contaram com vários convidados, entre eles a antiga primeira-ministra, Maria de Lurdes Pintasilgo. Este ano o partido regressa ao Café Piolho para retomar as tertúlias com vários temas e painéis. “Não é campanha, mas acompanha”, lê-se no convite.

“Procuramos promover uma conversa livre, em formato aberto, para a qual convidamos pessoas que não são necessariamente do Bloco, não têm uma relação orgânica com o partido, mas que se sentem confortáveis em construir connosco um pensamento e uma discussão”, começou por explicar José Soeiro ao Observador.

Para o deputado e candidato do BE, este é um esforço do partido de fazer da política “não apenas a propaganda das ideias”, mas um espaço de diálogo, já que “frequentemente as campanhas são longos monólogos de partidos com os eleitores”.

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No arranque desta terça-feira, a casa estava cheia, o barulho da máquina de café, o som dos talhares de quem ainda estava a jantar e as conversas que cruzavam o português e outras línguas soavam a alto e bom som. Pedro Lamares, ator e mandatário do BE no Porto, introduziu a conversa e pediu ao painel, composto pelo D. Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas, o jornalista e comentador – e antigo dirigente do Bloco – Daniel Oliveira e Sara Barros Leitão, atriz e encenadora, para fazer um balanço da “geringonça”.

“A geringonça não é um muro, mas uma ponte”

Sara Barros Leitão foi a primeira a pegar no microfone. “Em 1999 quando estas conversas se iniciaram eu tinha nove anos. Não estava de certeza nas conversas no Café Piolho, também não sabia quem era o Miguel Portas, lia muito mal a literatura para a infância de Manuel António Pina e com certeza não votei nessas eleições”, começou por recordar.

A atriz falou da sua chegada ao mercado de trabalho aos 16 anos, em regime precário, altura em que pagava a renda de um quarto e trabalhava 12 horas por dia, seis dias por semana. Em 2011 mais de 80% dos seus recibos verdes eram passados à mesma empresa, sindicalizou-se e tentou convencer os seus colegas a fazerem o mesmo. “Criei motins para melhorar as nossas condições de trabalho, cheguei a ser despedida de uma novela, mas quando olhava para trás estava sozinha. Até sugeri criar uma creche no estúdio para os profissionais com filhos, mas nem consegui convencê-los a separar as garrafas de água de plástico”.

Seguiu-se D. Januário Torgal Ferreira, que começou por enaltecer “a universidade ambulante” que é o Café Piolho e que, tal como a “geringonça”, “não é um muro, mas uma ponte”. O bispo emérito das Forças Armadas lembrou a reposição dos feriados, o aumento do emprego e do espírito solidariedade. “Sempre achei que a geringonça foi um limpar de um passado de submissão, de pobreza e de austeridade”, disse, acrescentando que “felizmente esta estrutura parlamentar foi possível”, tendo sido  “uma oportunidade única”.

Para D. Januário, a vitória à esquerda nas eleições passadas representou uma mudança para quem nunca teve lugar na sociedade e considerou que o BE teve “uma força percursora” nessa transformação. “O círculo da democracia superou a pirâmide”, concluiu.

“É preciso que o PS não tenha maioria absoluta”

O cronista Daniel Oliveira considera que a “geringonça dependeu da correlação das forças políticas e voltará a depender”, e acredita que quem derrubou o muro “foram os eleitores e as três forças políticas”, pois neste tango foram precisos três para que a dança acontecesse. Depois de enumerar alguns feitos conseguidos pelo atual Governo, destacou “passos históricos” como o aumento do salário mínimo nacional ou a redução “drástica” nos passes sociais, medidas que afirma “terem efeitos na vida concreta das pessoas” e significado “na mudança no debate político em Portugal”. “São poucos os governos em que podemos chegar ao fim de quatro anos e fazer uma lista igual a esta.” Daniel Oliveira valorizou ainda o romper da “lógica de utilizador-pagador” nas propinas ou nos serviços públicos e o recuo nas privatizações.

“Estes últimos quatro anos foram passos atrás para a caminhada para o precipício, acho que ganhamos tempo e, quando olhamos para o resto da Europa, ganhar tempo é importante. Não sei se a geringonça se vai repetir, não chega a vontade de vários intervenientes, é preciso que o PS não tenha maioria absoluta.”

Para o comentador, que foi fundador do Bloco mas que abandonou a sua militância em 2013, BE e PCP têm tradições e histórias diferentes, embora tenham ambos cumprido uma função “absolutamente essencial para agarrar este Governo”. “A política não serve para sujarmos as mãos e não corrermos o risco de sermos mal vistos, serve para mudar a vida das pessoas e isso implica impureza”, afirmou, adiantando que a “geringonça” tentou concertar o que foram os quatro anos anteriores. “Agora falta construir o futuro”, concluiu.

As conversas do BE no Café Piolho continuam, todas as terças-feiras às 21h30, até dia 1 de outubro. O próximo encontro terá como mote “Visto de perto, ninguém é normal”, as intervenções serão feitas pelo escritor Afonso Cruz, pela activista Joana Cottim e pelo professor de psicologia Luís Fernandes.