As células imunitárias do intestino precisam de um relógio e um GPS para protegerem aquele órgão e controlarem a absorção de lípidos. Se algum destes aparelhos celulares ficar descontrolado, como pode acontecer a quem faz trabalho noturno, aumenta a probabilidade de a pessoa sofrer de obesidade e de inflamações intestinais. A conclusão é da equipa de Henrique Veiga-Fernandes, investigador no Centro Champalimaud em Lisboa, com base numa experiência feita em ratos de laboratório, e foi publicada esta quarta-feira na revista Nature.

Quase todas as células do corpo têm de ter os relógios certos e sincronizados uns com os outros, o que não é tarefa fácil para aquelas que não recebem nenhum pista de luz do exterior e que, portanto, não sabem, à partida, a quantas anda o relógio biológico. Para isso, existe o mestre relojoeiro, o cérebro, que recebe e interpreta os sinais de luz solar e os transmite a todas as células do corpo.

“A noção de que o sistema nervoso é capaz de coordenar a função do sistema imunitário é totalmente nova. Tem sido um percurso muito inspirador; quanto mais aprendemos acerca desta relação, melhor percebemos o quão importante ela é para o nosso bem-estar”, diz Henrique Veiga-Fernandes, em comunicado da instituição.

Mas este relógio biológico (ou ciclo circadiano) é mais complexo, não se limita a orientar pela luz do sol, mas também pelas horas das refeições — daí que uma das melhores formas de resolver o jet lag é adotar rapidamente o horário das refeições do local de destino. Com luz e refeições fora da norma é fácil antever que quem trabalha à noite, por turnos rotativos ou tem horários pessoais e profissionais desregrados tenha mais dificuldade em manter o relógios com os ponteiros alinhados.

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Entre as células que são controladas pelo cérebro estão as células imunitárias, incluindo as do intestino, como as células linfóides inatas de tipo 3 (ILC3). Mas o cérebro não controla apenas o relógio biológico celular, controla também o GPS. E um sistema de navegação avariado significa que as ILC3 não sabem para onde se devem dirigir.

“Estas células [as ILC3] desempenham funções importantes no intestino: lutam contra as infeções, controlam a integridade da parede intestinal e regulam a absorção de lípidos”, explica Henrique Veiga-Fernandes. “Ora, quando perturbámos os seus relógios, constatámos que o número de ILC3 no intestino diminuía de forma significativa, o que conduzia a inflamações severas, falhas da barreira intestinal e à acumulação acrescida de gordura.” Ou seja, as condições necessárias para se desenvolverem inflamações do intestino e obesidade, pelo menos nos ratos que foram alvo da experiência. A equipa acredita, no entanto, que outros mamíferos, como os humanos, podem ter um sistema equivalente.

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O que acontece é que o grande mestre relojoeiro diz, durante o dia, às ILC3 para se afastarem do intestino durante as refeições, para que os lípidos possam ser absorvidos corretamente, e depois manda-as de volta para regenerarem as paredes do órgão. O cérebro e o organismo em geral não prevê refeições à noite — não evoluímos nesse sentido — e é por isso que o relógio biológico não consegue coordenar os relógios das células e o GPS convenientemente.

“De forma notável, a regulação da atividade da ILC3 por circuitos circadianos sistémicos pode ter evoluído para maximizar a homeostase metabólica [equilíbrio metabólico do organismo], a defesa intestinal e a simbiose eficiente com organismos comensais que têm sido parceiros evolutivos de mamíferos”, escrevem os autores no artigo. “Por fim, os dados atuais também podem contribuir para uma melhor compreensão de como as perturbações [no ciclo] circadiano nos seres humanos estão associadas a doenças metabólicas, condições inflamatórias intestinais e cancro.”

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Atualizado com entrevista áudio ao investigador
Atualizado, no dia 25 de setembro, com indicação de que a experiência foi feita com ratos