O dia de reflexão não é consensual. Há quem defenda que deve existir para que os eleitores consigam descansar do ritmo frenético da campanha que o antecede e há quem insista que se trata de um ato meramente simbólico que na prática não cumpre o seu propósito. Na teoria, o dia serve para que os eleitores possam ter um dia sem campanha ou influências e o aproveitem para, como o próprio nome indica, refletir sobre o seu sentido de voto. No fundo, para dar alguma distância no dia que antecede as eleições para que cada eleitor possa fazer um balanço e decidir o seu voto.

Em Portugal, há várias limitações impostas por lei para forçar a criação de condições para essa reflexão. A Comissão Nacional de Eleições (CNE) proíbe qualquer atividade que possa toldar o sentido de voto ou de reflexão. Nas palavras da própria CNE, esta limitação abrange “toda a atividade passível de influenciar, ainda que indiretamente, os eleitores quanto ao sentido de voto, bem como a exibição, junto das mesas de voto, de símbolos, siglas, sinais, distintivos ou autocolantes de quaisquer listas”.

Na comunicação social, é proibida a publicação de qualquer artigo que possa conter um fator de influência. Na prática, qualquer artigo sobre política pode entrar nesta definição e, por conseguinte, os jornais de sábado vão para as brancas com um apagão sobre o mundo político. Nos digitais, os textos ficam disponíveis na internet, mas desaparecem das homepages. Os semanários que saem ao sábado antecipam a data da publicação um dia para evitar o cutelo da CNE e poderem sair com artigos na secção de política.

Em 1982, quando foi pedido um esclarecimento sobre o que se podia ou não fazer na comunicação social no dia de reflexão, a CNE especificou que  “não podem ser transmitidas notícias, reportagens ou entrevistas que de qualquer modo possam ser entendidas como favorecendo ou prejudicando um concorrente às eleições em detrimento ou vantagem de outro”. Se dúvidas houver, a CNE remete para esta posição, que fez jurisprudência até hoje.

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A classe política, por seu lado, fica impedida de fazer campanha ou de tecer qualquer comentário político em público sob pena de incorrerem numa “multa não inferior a 100 dias, caso seja na véspera da eleição, ou com pena de prisão até 6 meses ou pena de multa não inferior a 60 dias caso seja no dia da eleição”, explica a CNE no seu site oficial. Na verdade, esta proibição não é específica para os políticos mas sim para todos os cidadãos.

Uma regra que fará com que este ano, nas cerimónias do 5 de outubro — que é o dia de reflexão das legislativas de domingo —, não haja qualquer intervenção política. Ou que, por exemplo, não haja desenvolvimentos noticiosos ou reações partidárias ao incidente que envolveu António Costa e um eleitor que um autarca do PS acusa de ter ligações ao CDS. Nas últimas horas antes da meia-noite desta sexta-feira houve declarações de socialistas e de centristas, mas tudo teve que parar no primeiro minuto de sábado.

Numa era em que o acesso às notícias ou às publicações nas redes sociais não depende diretamente da data da sua publicação, foi necessário que a CNE, em 2014, prestasse um outro esclarecimento sobre o comportamento de responsáveis políticos e da comunicação social — e também dos cidadãos em geral — nas redes sociais. Para a entidade que regula as eleições,  todas as publicações com teor passível de influenciar o voto ou perturbar a reflexão em que mergulha o país e que não seja dirigida apenas a “amigos” ou “amigos dos amigos” fica igualmente abrangida pelo mesmo regime.

Exército “anti-dia de reflexão” cresce

É precisamente por a era digital ter tomado definitivamente conta da comunicação social e da política que se têm ouvido muitas vozes contra a existência deste dia. Ou pelo menos que esta corrente tem vindo a ganhar peso. Um dos mais recentes reforços é o constitucionalista Jorge Miranda, que, na Rádio Renascença, defendeu a ideia de que “o mais simples era acabar com o dia de reflexão”. E justificou: “Já existe suficiente experiência eleitoral em Portugal para já não se justificar. Ainda por cima havendo agora a possibilidade do voto antecipado. É contraditório haver pessoas que votam em plena campanha eleitoral e outras que só votam depois do tal dia de reflexão”.

Curiosamente, o mesmo Jorge Miranda, que ajudou a elaborar a lei eleitoral para a Assembleia Constituinte, tinha afirmado em maio, na época das europeias, precisamente o oposto. “O voto antecipado é excepcional, não é regra geral. Para milhões de eleitores, faz bem. É para as pessoas descansarem um pouco, pensarem por si, verem programas de candidaturas”, disse então, em declarações ao Público. Em quatro meses, a opinião do constitucionalista alterou-se drasticamente.

O também constitucionalista Bacelar de Vasconcelos entende que hoje em dia esta data “é perfeitamente dispensável”. E explica: “A ideia de impor uma pausa era uma preocupação que, em 1976, parecia adequada, atendendo a que estávamos a sair de um período agitado. A experiência mostra que isso já não ocorre e, por isso, penso que numa futura oportunidade haverá toda a conveniência em refletir sobre a necessidade de manter essa pausa”, disse à Renascença.

A ideia de que o dia de reflexão parece ultrapassado é defendida também por politólogos e colunistas. Mas o tema nunca chegou a ser alvo de uma discussão no Parlamento para que a lei eleitoral fosse alterada.

Argumentos que ganham peso numa altura em que o sistema eleitoral se alterou para flexibilizar o voto por antecipação ou em mobilidade, que se tornou menos burocrático precisamente nas eleições europeias de maio. Para os cidadãos que optem por esta modalidade o dia de reflexão não existe.

Na Argentina nem concertos; nos Estados Unidos vale tudo

O dia de reflexão não é um exclusivo português. Há países que não o têm mas também existe um pouco por todo o mundo. Embora em muitos Estados haja particularidades próprias.

Na Europa, a maior parte dos países tem dia de reflexão. Na Irlanda, por exemplo, as regras são praticamente as mesmas que existem em Portugal. Mas nem todos os Estados europeus obedecem a esta lógica: na Bélgica, na República Checa, na Áustria e na Holanda o dia anterior ao das eleições é só mais um dia de campanha. Assim como o próprio dia das eleições. A única restrição existente nestes países prende-se com o local onde se faz — ou não — a campanha: ao pé das assembleias de voto está expressamente proibido.

Na Hungria há uma espécie de sistema misto: a comunicação social pode funcionar normalmente enquanto as ações de campanha são obrigadas a entrar em blackout, mas só no dia das eleições. Já na Lituânia não há um dia de reflexão mas sim 30 horas de silêncio. Se as eleições forem no domingo a campanha lituana tem de parar às 18h00 de sexta-feira.

Um sistema misto é também aquele que existe no Reino Unido, onde as regras chegam a ser díspares para os diferentes meios de comunicação social: o dia que antecede o das eleições é de silêncio mas só as televisões e as rádios estão proibidas de publicar notícias políticas — os jornais diários podem ir para as bancas como se fosse um dia normal.

Mas é quando se sai da Europa que se encontram os casos mais extremos. Nos Estados Unidos não existe dia de reflexão e a campanha pode ir até às urnas de voto no dia das eleições. No lado oposto está a Argentina, onde a campanha deve parar dois dias antes das eleições e onde a proibição chega à cultura. Qualquer ato público está proibido por lei: desde as peças de teatro aos concertos, o silêncio é total.