Mary, Haley, Paul, Randy, Lorraine, Jodi, Caroline, Violet, Betsy e Jenni entram num celeiro – parece o início de uma piada mas é uma espécie de sinopse para o que, durante três discos, uniu a obra dos Big Thief: no centro de canções que vão da folk marginal a um indie-rock de propensão rural estavam pessoas que davam nomes a canções, fossem histórias de amores impossíveis (“Paul”, “Mary”), de uma proximidade tão grande que às vezes se tornava dolorosa (“Jenni”), e cada canção percorria a distância entre quem narra e quem é nomeado, por vezes à procura da personagem que dava nome à canção, por vezes a fugir dela, já que no mundo dos Big Thief há mais famílias disfuncionais e amores pecaminosos que lindas histórias de amor e fraternidade.
Mas agora não há ninguém a entrar num celeiro, ninguém à porta de casa da amante, esperando convencê-la a visitar o banco de trás do seu carro, agora não há mais irmãos desavindos que procuram, no intervalo de uma canção, perdoar não se sabe bem o quê que aconteceu no passado: ao quarto disco dos Big Thief, Two Hands, não há mais personagens da América profunda, não há mais nomes de pessoas nas canções, há apenas o “eu” da canção e o “tu” a quem ela se dirige.
Quando numa letra ou num poema encontramos um “eu” e um “tu” isso por norma significa que alguém declara o seu amor por outra pessoa; mas isto são os Big Thief e nos Big Thief o amor não se assemelha a contos de fada, antes a acórdãos de tribunal em casos de violência doméstica:
“You cut the flesh of your left thumb
Using your boyfriend’s knife
Seventeen, you took his cum”
Assim cantava Adrianne Lenker em “Mythological Beauty”, uma das mais extraordinárias canções de Capacity, o segundo disco da banda. Não, aqui não há amor no sentido de conforto – o amor, nos Big Thief, significa muitas vezes auto-mutilação, adultério; em suma, simboliza toda a dor que daí advém.
Agora, na tremenda “Shoulders”, Lenker canta “Please wake up / touch my skin”, antes de chegar ao crescendo, altura em que somos abalroados pela sua imensa voz a cantar:
“And the blood of the man who killed my mother is in my veins”
O eu e o tu, em “Shoulders”, são a narradora e a sua mãe assassinada – e este talvez seja o momento ideal para contar que os Big Thief dizem que este é o seu disco político. Não no sentido tradicional, de direita e esquerda, ou de mais ou menos impostos, acrescento eu; mas talvez no sentido de boletim metereológico emocional: vivemos num mundo polarizado, excessivo, em que dois lados bradam sem que seja possível estar no meio.
[“Shoulders” ao vivo:]
Há canções que abordam o porte de armas (“The Toy”), a violência (“Shoulders”), a fluidez de género (“Cut My Hair”), mas talvez a notícia não seja que os Big Thief fizeram um disco político ou que acabaram de lançar o seu segundo disco em 2019 (depois de U.F.O.F, que saiu no início do ano), mas que abandonaram as estruturas tradicionais – seja a narrativa convencional, com personagens que têm um nome e se situam num momento e num lugar; mas também a estrutura de canção, que, em U.F.O.F., foi substituída por uma espécie de fluidez improvável, que agora se confirma em Two Hands.
É como se fossem duas bandas, o que é simbolizado pelas capas dos discos: em Masterpiece (de 2016) e Capacity (2017) as fotos das capas eram de membros da família de Adrianne Lenker; as histórias eram inevitavelmente histórias de família; as canções, apesar da sua estranheza, eram canções. Mas as fotos das capas U.F.O.F. e Two Hands são dos Big Thief – não a família genética de Adrianne, mas a família que ela escolheu. Os quatro passam quase todo o tempo juntos desde há anos, em digressões intermináveis que antes eram feitas numa carripana minúscula, que parava em qualquer terreola, à procura de um lugar onde pudessem tocar para quem quer que fosse.
[ouça “Two Hands” na íntegra através do Spotify:]
Em maio deste ano, o baixista Max Oleartchik dizia ao LA que os membros dos Big Thief dissolveram-se uns nos outros, como se agora fossem uma unidade, mesmo após o divórcio entre Buck Meek (o guitarrista) e Adrianne Lenker; Meek vive no meio do mato, Lenker nem casa tem: quando não está em digressão fica em sofás alheios. A música tornou-se mais livre, mais solta, mais imprevisível, mais distante das convenções – que é o que acontece quando nos sentimos bem na família que escolhemos.
Não era assim que esperávamos que esta história se desenrolasse – o mundo da música acreditava que eventualmente os Big Thief iriam “urbanizar” a sua música e tornar-se os National desta geração, aquele tipo de banda indie capaz de encher não digo que o Estádio do Dragão mas metade de um daqueles estádios criados para o Euro 2004 e de quem já ninguém se recorda.
[“Forgotten Eyes”:]
Vão ao YouTube e ouçam “Shark Smile”, o primeiro single de Capacity: estão lá as raízes da música americana, as guitarras indie-rock imaculadas, um refrão enorme e uma história tremenda; não sonhámos isto, ainda há dois anos era claro que eles iam dar um salto em número de ouvintes, assim que universalizassem um pouco as histórias, polissem ligeiramente o som, descobrissem como tornar um refrão numa desculpa para os ouvintes berrarem, numa espécie de purga interior.
Mas não é isso que os Big Thief são, ou que quiseram ser – eles são (e isto é cada vez mais raro) músicos, quase no sentido jazzístico do termo: vivem para tocar e, mais especificamente, vivem para tocar uns com os outros. As canções de U.F.O.F. e de Two Hands não são bem canções, são trechos que quase não se distinguem, em que por vezes não há ponte nem refrão – começam num ponto, e não só não se colocam em bicos de pés, como nunca se sabe bem onde vão acabar.
U.F.O.F. é um pouco mais psicadélico, aéreo; Two Hands mais seco, duro, próximo do som que a banda produz ao vivo – mas são irmãos gémeos falsos, o primeiro o irmão aluado que fuma ganzas e o segundo o irmão magoado que nunca ultrapassou não se sabe muito bem o quê. Mas ambos são o som de uma banda a deixar o mundo das convenções e a descobrir a sua própria linguagem – fazem lembrar a The Band isolada em Woodstock a compor sem pressões de editoras ou tempo, os discos avariados de Captain Beefheart, o On the Beach de Neil Young: são o tipo de álbum que encontramos no sótão daquele nosso tio de quem nunca se fala e que só aparece pelo Natal e tem olheiras de quem comeu poucos vegetais (bom, pelo menos dos legais).
[“Not” ao vivo:]
Isto não significa que a beleza se tenha despedido: “Shoulders” e “Not” são canções espantosas e em particular a segunda tem aquela tensão que habita os Big Thief ao vivo, o que não é de admirar, porque já fazem parte do set de palco há anos; “Rock and sing” é uma daquelas canções que surge quando um episódio de uma série está quase a acabar e vem aí um pouco de apaziguamento; a lindíssima “Forgotten Eyes” parte de uma abertura magnífica e é sempre a subir; lá para o fim há “Replaced”, o mais próximo de canção tradicional que aqui encontramos, duas vozes que se cruzam por cima de harmonias de guitarra que realçam uma melodia lindíssima.
Em “Cut my hair”, a última canção e a mais difícil do disco, Lenker canta “Talk to the boy in me / he’s there” e de seguida o disco acaba. Tal como a/o personagem da canção não quer ser aquilo que parece, os Big Thief recusaram o caminho óbvio que se apresentava à sua frente e resolveram criar um alfabeto só seu – o mais provável é que nunca venham a encher estádios (apenas corações).