Chegamos ao pé de Jane e John Smith, nomes fictícios, e John fecha rapidamente a mala de onde tirava um pequeno saco de plástico. Lá dentro estava uma seringa e uma colher. São 11 horas da manhã de uma quinta-feira no bairro de Tenderloin, onde fica a sede do Twitter, e por onde o Observador passou na semana passada. Na mesma rua caminham pessoas com os últimos gadgets nos ouvidos, a caminho dos respetivos trabalhos que têm em São Francisco, cidade epicentro do mundo tecnológico ocidental. É lá que estão sediadas empresas como a Uber, Dropbox, Airbnb ou Visa. Mesmo ao lado, em Silicon Valley, estão os escritórios de outros gigantes tecnológicos como o Facebook, a Google (Alphabet Inc.) ou a Apple.

Para Jane e John — que dizem ter 30 anos, mas têm uma aparência envelhecida para a idade — é irrelevante que os escritórios destas empresas fiquem dois quarteirões de distância do sítio onde estão sentados. Num discurso incoerente, e pedindo para não serem gravados, referem apenas que não era ali que queriam estar, a viver na rua, mas que a vida “é assim”. Três metros ao lado de um carrinho de bebé que contém um monte de roupas, está um homem a dormir num cartão rodeado de garrafas. Por mais voltas que demos aos quarteirões que seguem, o cenário de pessoas que estão em situação de sem-abrigo mantém-se em Tenderloine e SoMa. Há inclusive tendas montadas nas ruas.

Nas ruas dos bairro de Tenderloin e SoMa é comum ver-se várias tendas montadas nas ruas onde dormem pessoas

Como muitas outras empresas tecnológicas na cidade, a sede do Twitter é a casa profissional de inúmeros trabalhadores que recebem ordenados que lhes permitem viver naquela que é uma das cidades mais caras dos EUA. Segundo a CNBC, para se viver como “classe média” em São Francisco, é preciso ganhar no mínimo 350 mil dólares anuais (em Portugal, equivale a um ordenado de cerca de 23 mil euros mensais brutos). A título de exemplo da dicotomia que se observa na cidade, basta pensar no facto de o Twitter ter tido receitas líquidas de mais de mil milhões de dólares em 2019, dando emprego a mais de 4.500 pessoas.

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[Um vídeo partilhado no Twitter das tendas e sujidades que se vê nas ruas de São Francisco]

A discrepância entre os que ganham muito e os que não têm sequer um sítio para viver sobressai ainda mais quando em causa está uma cidade que é epicentro da inovação tecnológica, mas que não fez acompanhar este progresso para todos. Como escreve o The New York Times, em São Francisco, chega a haver um casal de pessoas sem-abrigo que tem como trabalho entregar notificações a arrendatários que estão em situações de incumprimento, para que estes possam ser depois despejados. “Acredite, vemos a ironia”, disseram ao mesmo jornal.

Uma pessoa sem abrigo passa em frente à sede do Twitter, em Market Street

Quem vive na cidade e subúrbios vai apontado culpados: os preços crescentes das casas, aumento da disponibilidade de drogas, falta de correta intervenção estatal, entre outros. Um estudo feito pela cidade de São Francisco, citado também no The New York Times, refere que 26% dos casos de sem-abrigo da cidade se devem à perda de empregos, 18% devem-se à adição a drogas e álcool, 13% devem-se a despejos e 8% referem-se a doenças mentais.

Depois de falarmos com Jane e John Smith, andamos mais uns quarteirões, passando por mais pessoas sem abrigo e a viver em tendas. É aí que encontramos Jair, também nome fictício. Apesar de o discurso ser mais coerente, não nos conta muito. Aceita falar e pede uma cerveja. A beber um café e a comer snacks num restaurante, conta-nos que sempre viveu na rua naquela cidade. Fala que a cidade lhe “dá comida” e, por vezes, abrigo. Contudo, nos últimos anos tem sido mais difícil arranjar, diz também — dos 8.011 pessoas sem abrigo identificadas, a cidade divulga que, destas, não tem acolhido 5.180 (um número que tem crescido todos os anos desde 2005).

Quando os escritórios do Twitter passaram para o bairro de Tenderloin — em 2011, a empresa quis sair da cidade, mas um incentivo fiscal de milhões de dólares levou-a a mudar apenas de local –, a zona já era conhecida por ter pessoas a viver nas ruas. Contudo, apesar de os negócios terem melhorado na área, há cada vez mais pessoas nesta situação.

“Vamos chamar as coisas pelo que são: é uma vergonha”, diz Governador da Califórnia e antigo presidente da Câmara de São Francisco

“Vamos chamar as coisas pelo que são: é uma vergonha que o estado [Califórnia] mais rico da nação mais rica, com sucesso em tantos setores, esteja a ficar tão atrasado em abrigar, curar e tratar humanamente tantas pessoas.” A frase foi dita esta quarta-feira por Gavin Newsom, atual governador da Califórnia, onde fica São Francisco, e antigo presidente da Câmara da cidade (entre 2004 e 2011). “A verdade dura é que, por muito tempo, ignorámos este problema” continua.

Numa rua normal é comum nos bairros de Tenderloin e SoMa é comum ver-se tendas nos passeios

A cidade é cada vez mais um retrato das desigualdades e leva atualmente meios de comunicação como a Fortune a fazerem a pergunta: “Can San Francisco be saved?” [“Pode São Francisco ser salva?”]. Como escreve a revista, a situação que já é uma crise de pessoas pode afastar as mesmas tecnológicas que têm feito com que os preços das rendas subam (um quarto, em média, custa mais de quatro mil dólares mensais, cerca de 3700 euros e o comum é custarem 1900 dólares).

De acordo com o Business Insider, também um jornal norte-americano especializado em notícias de economia e tecnologia, a falta de limites à construção de apartamentos de luxo e (falta) de taxação das empresas na cidade está entre os problemas para melhorar a cidade. Jack Dorsey, fundador do Twitter, já referiu que queria que a empresa tivesse uma presença maior noutras cidades. Contudo, e após algumas críticas por ter dito que queria sair da cidade, Dorsey manteve a sede da empresa em São Francisco, tal como outras das grandes tecnológicas mundiais.