A nova música portuguesa ganhou a independência, com a trouxa atrás das costas — um laptop e boas intenções — despediu-se das grandes editoras e fez-se à estrada. Mas e quando não houver estrada para andar, ao contrário do que Jorge Palma prometeu, quando a gente tiver que parar? Hoje, o músico independente português que lançar um álbum não tem a sala de concertos à disposição, tampouco o bar, quanto mais o rodízio de festivais. E este é só o primeiro entrave. Em “A Gente Vai Continuar”, Jorge Palma ainda canta que “somos todos escravos do que precisamos”. Em tempos de comunicação massiva, pelos jornais e rádio, televisão e redes sociais, a nova música portuguesa estão a dissipar-se pelo ruído, poucos conseguem sequer uma citação diante desta constante divulgação de atualidade epidemiológica. Por outro lado, o isolamento distante das pressões sociais, das tribos urbanas, é a oportunidade ideal para explorarmos o espaço infinito das plataforma de streaming, onde diariamente músicos independentes arriscam um salto para fora da sua ilha criativa e lançam canções originais. Estes são alguns dos novos álbuns de música portuguesa que merecem ter pernas para andar, estrada para correr, nem que seja em nossa casa. Vamos continuar?

Chega de saudade

Era inevitável que a massa de gente brasileira a desembarcar na nossa terra, cheia de sol e boa vontade, a programar festas por todo lado, a distribuir canções de Marcos Valle e Tim Maia para esta gente pálida, começasse a influenciar a nova música portuguesa. A começar pela dupla Spicy Noodles, daquelas coisas que fazem falta a Portugal, um pop reluzente com uma dose equilibrada de lisura e deboche. Não por acaso, é concebido entre uma brasileira (Érika Machado) e uma portuguesa (Filipa Bastos) e comprova que basta meia hora de sincera e descontraída parvoíce para ficarmos bem dispostos. Sem exageros, Sensacional é o álbum, com frases que devemos guardar como papel higiénico — no bom sentido, do açambarcamento:

“Quantos planos na gaveta
Esperando a gente para sair
Vai tudo melhorar
Depois de amanhã”

A segunda paragem deste “Chega de Saudade” em Portugal é a banda Marvel Lima, decididamente influenciados pelo groove dos cariocas Azymuth, que não fazem aqui a primeira aparição no Observador, pelo menos na anterior encarnação de banda alentejana de psicadelismo desenfreado. Uma mudança para Lisboa, terra da labuta brava e do pop-rock certeiro, do vai ou racha, resfriou certos devaneios e condensou em menos de meia hora um passo de dança repleto de cor e movimento que é melhor descrito pelo título do single: “Tass Bem”.

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O sintetizador gingado é marca também de Iguana Garcia, que parte de batidas para uma exploração sonora anti-tédio no álbum Vagas, em prol do exercício da massa cinzenta. Por outro lado, sobretudo agora, as “Horas Vagas” multiplicam-se e a resolução deste jovem músico é especialmente pertinente: “Abre a tequila e traz-me o sal”

Um quebra-cabeças de batidas

Quem considera que a quarentena não é um desafio mental suficiente, existe uma panóplia de álbuns que são um quebra-cabeças de conceitos e composição, prontos a expandir a nossa mente além das quatro paredes que estamos confinados. A liderar está Cátia Sá, da banda Guta Naki, que em condições normais seria agora a nova obsessão da cena alternativa lisboeta, a ecoar pelos salões de Arroios, apinhados de jovens vestidos dos pés a cabeça pela feira da associação Anjos70, a cantar versos certeiros como: “Tu vais vê-la/ No Jardim da Estrela”.

O álbum DA BARRIGA, gravado na Galeria Zé dos Bois, é a selva performática ideal para perder-nos neste vagaroso desenrolar dos dias, que pode ser intercalado, com contenção, por doses de Luar Domatrix, a nova encarnação do músico Rodolfo Brito. Olho da Rua é uma experiência imersiva feita a pensar na população que outrora reunia-se nas penumbras das caves de olhos cerrados, que pode agora, de forma mais rigorosa, com fones na cabeça, simplesmente fechar-se na arrecadação de casa.

É também dentro de casa que está a ser concebido o nosso hip hop mais exploratório. VULTO é um dos produtores insaciáveis de Portugal na plataforma Bandcamp, mentor do coletivo Colónia Calúnia, a divulgar beats de forma regular há uma série de anos. O álbum VELHO está com manhas de beatmaker sábio, numa desenvoltura que cria um negrume estranhamente despretensioso, que se inclui, em “TAMBOR”, uma descrição hilariante de todos os truques do cão do rapper Nofake, desde apanhar aranhas a desenterrar gatos no quintal.

Entre os parceiros recorrentes de VULTO estão o produtor ELOÍ e o rapper Caronte, dupla que assina outro novo álbum de hip hop exploratório. ORGÂNICO URBANO é um cenário desolador de batidas claustrofóbicas que se estende da musique concrète ao blues e termina numa mágoa bastante presente: “Encontra-me à tona de uma poça em pleno Abril”.

Brandos costumes

Na terra dos brandos costumes, o sucesso pode estar à distância de um instrumento acústico e sentimentos. É tiro e queda. Felizmente ainda ninguém reparou no cantoautor Miguel Marôco, motivo para continuar a gravar canções sozinho e dormir descansado. Enquanto assistimos impassíveis ao desdobrar do tempo, num rodopio infernal, diante da janela, o EP Noite de Miguel Marôco poder ser a nossa companhia até à “Aurora”, conseguindo ainda ver vantagens neste nosso estado atual: “Sozinho não te arriscas/ A desgostos de amor”. Miguel Ferreiro é outro que está de tal forma sozinho em casa que certamente nunca imaginou um público. Não sabemos quem é este músico do Porto, e porquê que ele prefere “comer o que comi ontem”, somente que o álbum chama-se Sopa e que está naquela fase preciosa entre a ingenuidade e inexperiência. Ele desafina, é verdade, mas nós também, quase todos os dias.

E a música tradicional portuguesa? À vista desarmada, “Xograr” parece enquadrar-se no certame, até tem os nossos ritmos acamados pelos adufes e bandolins. No entanto, o compositor Fernando Barroso nasceu na Galiza, apesar destas odes aos navegantes e às cantadeiras de Belém não esconderem uma inegável portugalidade. A pertinência deste álbum é precisamente essa, fazer-nos ouvir o que sempre soubemos, que a fronteira entre a canção portuguesa e galega é estreita. Algures, a cumprir o seu isolamento social, rodeado de braguesas e cavaquinhos, Júlio Pereira agradece que alguém ande a partilhar o fardo.

Para dançar sozinho

Estes últimos dias, mais depressa que a própria sombra, surgem álbuns compostos e gravados durante o isolamento, sobretudo entre os hedonistas das eletrónicas, que outrora refugiavam-se entre os feixes de luz dos espaços noturnos de serviço. Ramboiage, ex-residente do Lux, presença recorrente nas últimas celebrações diurnas que até nos fazem sentir saudades das raves à luz do dia — Brunch Electronik, estou a olhar para ti — gravou seis faixas que montam sozinhas a festa. Não é para levar a sério, ou ao pé da letra, mas She’s Maluca chega para acalmar os saudosos da bola de espelhos.

E para quem só está bem ao balcão do bar, ou rodeado de amigos à galhofa, o quarteto Grand Sun chega para provar que a neo-psicadelia dançante ainda tem cartas para dar. Sal Y Amore é uma panóplia de refrões garage bem esgalhados, com piscar de olhos aos suspeitos do costume, dos Beatles aos King Gizzard, que pode ser consumido com os amigos na sua plataforma de videoconferência de eleição, provavelmente a fumar substâncias que continuam ilegais, apesar do estado de Emergência.

[“Circles”, dos Grand Sun:]

E para rematar no quesito das guitarras esvoaçantes, com pé pesado no pedal dos efeitos, está o primeiro álbum dos Cri the Coeur, de Vila de Conde, mais uma confirmação que o rock ainda esperneia, que nenhuma garagem está a salvo de miúdos impertinentes com instrumentos. Graças a Deus.

E agora para uma coisa completamente diferente

Ninguém sobrevive sem uma boa gargalhada. Porém, os melómanos precisam de bem mais que canções paródia, ou o Bruno Nogueira à conversa com os amigos, para sequer esboçar um sorriso. Esta malta estranha que sempre viveu essencialmente em isolamento social requer um certo tipo de brejeirice sofisticada que somente um ouvido treinado identifica, por exemplo, uma canção gravada num quarto escuro com sintetizadores de tal forma anacrónicos que são hilariantes, e um narrador desgovernado que anuncia que Deus “está a vir-se, está a vir-se, a pensar no apocalipse.” Sim, a banda portuense Conferência Inferno é um fartote. E os Unsafe Space Garden, de Guimarães, o primeiro lançamento da editora Discos de Platão, que parece a consequência bem-humorada da melhor — e pior — trip que alguém teve depois de um mês preso em casa. Estas e tantas outras maravilhosas malhas made in Portugal é o que comprovam que, como dizia Camilo de Oliveira, lá fora tá-se pior. Ai tá-se, tá-se.