O final da história é este: Rui Pinto abriu os seus discos rígidos encriptados, fornecendo o seu conteúdo à Polícia Judiciária (PJ). Mas pelo meio há um capítulo que mostra como, apesar desta cedência, o alegado hacker foi quem decidiu quando e como fazê-lo. Determinou ele próprio as condições para abrir os discos e optou pela forma que o faria continuar a ter o controlo sobre eles para sempre, mesmo estando sentado no banco dos réus.

Esta parte da história foi contada esta quinta-feira, naquela que é a sétima sessão do julgamento do Football Leaks. O narrador foi o inspetor da PJ que está a ser ouvido como testemunha há quatro sessões consecutivas, José Amador — que “de amador não tem nada”, como viria a apontar o procurador jubilado Manuel Pereira que está a representar o filho, um dos advogados queixosos, neste processo.

E o que revelou foi que, apesar de abertos, a PJ continua sem saber as passwords de acesso aos discos rígidos. Isto porque o arguido só aceitou colaborar se fosse ele a introduzir as credenciais de acesso.

A opção foi ser o arguido a controlar esse momento e a introduzir as credenciais”, disse.

Questionado pela juíza-adjunta Ana Paula Conceição sobre se Rui Pinto continua “no controlo” desses discos, José Amador respondeu admitindo que, se as autoridades francesas quiserem aceder aos discos, a PJ não pode ajudar porque não sabe as passwords. O que, para ele, pouco vale: foram feitas “cópias integralmente iguais” aos ficheiros que estavam no disco. E garante: não ficou nenhum por copiar. Agora, afirmou, os discos rígidos não passam, para a PJ, de “pisa-papéis”.

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No entanto, já na sessão da tarde, a advogada da Doyen, Sofia Ribeiro Branco, lembrou o inspetor de que Rui Pinto tinha revelado à PJ que tinha fornecido as passwords dos seus discos rígidos a um “pessoa da sua confiança”. A advogada perguntou-lhe depois se o auto denominado denunciante alguma vez chegou a revelar quem era essa pessoa. “Não faço ideia se é uma pessoa ou duas. Se deu todas as passwords ou só uma”, disse, detalhando que Rui Pinto revelou esse facto numa declaração feita por escrito entregue à PJ já em março deste ano.

O momento em que decidiu colaborar também foi decidido por Rui Pinto. Até porque, numa fase inicial, “foi tentada essa colaboração”, mas o arguido não acedeu. “Até ao encerrar destes autos não houve contexto para colaboração”, disse. Só com a abertura dos discos, em abril deste ano, é que houve “uma alteração” na postura de Rui Pinto: “O paradigma mudou no contexto de outros inquéritos e outros timings“.

Rui Pinto terá atacado a Vieira de Almeida. Este e outros ataques não foram já investigados por falta de tempo

Foi com pezinhos de lã que o inspetor da PJ fez parte do seu depoimento. É que para responder a algumas das perguntas que lhe foram feitas acabaria, de uma forma ou de outra, por falar nos ficheiros encontrados nos discos rígidos de Rui Pinto — que não os dois relacionados com este processo. De mãos e pés atados, José Amador chegou mesmo a pedir ao tribunal que o orientasse entre o que podia ou não “declarar”.

Sem poder adiantar muito mais, o inspetor da PJ revelou no entanto que Rui Pinto terá também acedido à sociedade de advogados Vieira de Almeida — um alegado ataque que se encontra agora em investigação. Outras entidades terão também sido acedidas pelo arguido só que a PJ já não teve tempo de investigar todos os ataques dentro dos prazos deste processo. “Teríamos de ser dez vezes mais”, disse.

Apesar de ter sido feito um pedido de mais seis meses adicionais para se fazer a investigação, por se tratar de um processo de especial complexidade, esse pedido acabou indeferido e a PJ teve de cumprir os prazos. “Ficámos presos à data de um ano desde a detenção“, disse. José Amador admite mesmo que houve uma “seleção das entidades” atacadas que “constariam na acusação”. Ainda assim, foi extraída certidão desses alegados ataques — entre eles, o da Vieira de Almeida — e decorrem agora investigações isoladas.

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Rui Pinto acedeu a documentos do canal criptografado da Europol de “nível de segurança muito elevado”

Logo no início da sessão, o inspetor revelou que, no âmbito do alegado ataque à Procuradoria-Geral da República (PGR), Rui Pinto terá consultado vários processos judiciais, incluindo aquele em que está envolvido e pelo qual está agora a ser julgado. O inspetor disse que o alegado hacker tinha “bastante” informação nos seus discos relacionada com o processo: digitalizações “muito vastas”, mas também peças processuais “específicas”.

Entre esses documentos, estavam alguns que na altura “criaram alguma dúvida” e deixaram os inspetores “baralhados”. Isto porque eram documentos que teriam sido extraviados do SIENA (Secure Information Exchange Network Application) — um canal “interno, privado e criptografado” com um “nível de segurança muito elevado”. É no fundo uma plataforma utilizada pelas polícias europeias para comunicar entre si. A investigação percebeu também que Rui Pinto tinha acesso a esses documentos quase em tempo real e “conseguiu monitorizar o que era feito”.

Eram elementos que permitiram perceber que tinha havido contacto com os documentos com pouco tempo de diferença de ter sido enviado”, explicou.

O inspetor garantiu no entanto ao tribunal que este acesso não foi feito nem através desse canal, nem através da PJ. “Não havia compromisso da parte da Europol nem da PJ”, assegurou. Disse também que esses documentos não estavam no processo. Então, de onde vieram? A pergunta foi feita e refeita pela procuradora Marta Viegas, mas também pelos juízes que insistiram em saber. Só que dar a resposta implicava revelar informações sobre processos que decorrem e que estão em segredo de justiça. José Amador começou por dizer apenas que esse acesso podia ter sido feito por “qualquer outra área da justiça ou no âmbito de escritórios de advogados”.

Um desses documentos, com o qual foi confrontado em tribunal, dizia respeito a uma reunião feita na Europol entre as autoridades portuguesas, espanholas e húngaras relacionada com “questões operacionais” sobre o processo — o teor era tão operacional que o documento nem foi acrescentado ao processo. Por isso, a hipótese de Rui Pinto ter tido acesso a esse documento através do alegado ataque à PGR estava descartada. “De onde veio?”, voltou a perguntar a procuradora. A insistência levou até o advogado Teixeira da Mota a olhar para o seu cliente, trocando um sorriso. A resposta continuou sem ser dada.

— Não chegaram assim a nenhuma conclusão? — voltou a perguntar a juíza.

A resposta voltou a não ser nova. “A PJ não foi comprometida”, repetiu apenas o inspetor, lembrando novamente que havia “mais lados” por onde podia ter sido feito o acesso.

Um canal em Espanha? — insistiu a juíza.

Não sei muito bem como responder a isso — disse o inspetor.

Mas depois de tanta insistência acabou por dizer “com elevado grau de probabilidade” que esse documento da Europol terá sido obtido na sequência do alegado ataque à sociedade Vieira de Almeida — que está agora a ser alvo de outra investigação.

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PJ contaria própria acusação: não há provas de que Rui Pinto é autor de duas páginas nas redes sociais

Depois de responder a todas as perguntas do MP e dos advogados assistentes, chegou a vez da equipa de advogados de Rui Pinto fazer as suas perguntas: Francisco e Luísa Teixeira da Mota, pai e filha. Desta vez, ao contrário de todas as outras, foi a filha que deu voz à equipa e fez as perguntas. Uma delas estava relacionada com uma página de Facebook e outra de Twitter cuja autoria foi associada a Rui Pinto, pela própria acusação: nela, o MP afirmava que Rui Pinto era não só o autor do Football Leaks, mas também de duas páginas nas redes sociais onde eram publicitadas as publicações.

Mas José Amador admitiu que não há provas de que isso seja verdade. Luísa Teixeira da Mota perguntou ao inspetor como associaram a Rui Pinto o e-mail (sportingcomedia@gmail.com) que estava ligado à página de Facebook. “Não consigo ligar a ninguém”, admitiu. José Amador explicou que tentou obter junto do Facebook e do Twitter mais informação, mas ela nunca chegou.

O inspetor revelou também que a PJ não verificou se as caixas de e-mail encontradas nos discos apreendidos foram ou não abertas por Rui Pinto. Isto significa que a investigação descobriu essas caixas, mas não foi verificar o último acesso feito pelo alegado hacker. “Não era uma prioridade nossa”, afirmou, acrescentando: “Correio é correio”.

Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

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O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.