Afinal, Rui Pinto podia ter começado a colaborar com a Polícia Judiciária (PJ) há mais tempo. Foi uma hipótese que os seus advogados colocaram logo numa fase inicial do processo, mas acabou por ser excluída. É que o alegado hacker queria algo em troca: a garantia de que, abrindo os discos, não iria ser prejudicado com o seu conteúdo. Só que essa garantia não lhe foi dada — pelo menos, naquela altura.

No fundo, Rui Pinto não queria autoincriminar-se ao fornecer a informação que tinha. Quem o revelou foi o inspetor PJ, que acabou de ser ouvido esta quinta-feira — depois de estar a ser ouvido durante cinco sessões do julgamento do Football Leaks. José Amador explicou que o arguido queria uma “salvaguarda” de que não seria prejudicado. O inspetor acredita que houve um “bloqueio” e um “entrave” para a colaboração acontecer:

Não era dada a garantia de que a informação não fosse usada para incriminar o arguido. Os pontos-chave das conversas andavam sempre à volta disso: a existência de uma cláusula de salvaguarda.

Certo é que Rui Pinto acabaria por colaborar em abril de 2020 e abrir os discos rígidos que estavam encriptados. Não fica assim claro se o alegado pirata informático aceitou a colaboração porque a PJ lhe deu a garantia de não haver autoincriminação ou porque ele próprio deixou de a pedir.

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Mas para o inspetor esta colaboração de Rui Pinto não chega e “terá de ir além” da abertura dos discos rígidos. Questionado pela advogada do alegado hacker, Luísa Teixeira da Mota, sobre se a colaboração se “esgotou na abertura dos discos”, o inspetor negou. “Temos condições para ir além disso”, garantiu sem poder adiantar como é que essa colaboração poderá ser feita.

Ouvido na qualidade de testemunha, o inspetor admitiu ainda que, se o arguido não tivesse aberto os discos, não haveria “grandes avanços” na investigação, nem conseguiu fazer uma estimativa de quanto tempo a PJ demoraria a abri-los: “Podíamos ficar aqui mais uma centúria. Era capaz de ser uma coisa complicada”.

Um tribunal que “é mais de homicídios” e as 300 páginas de internet falsas criadas por Rui Pinto

José Amador terminou na manhã desta quinta-feira o depoimento que se arrastou durante cinco sessões. Durante a tarde, começou a ser ouvido o especialista da PJ, José de São Bento, o responsável pela análise a um dos discos apreendidos a Rui Pinto, o RP3 — um depoimento que levou a juíza a bater com a cabeça na mesa. Fê-lo literalmente e intencionalmente para demonstrar que não estava a perceber o que o especialista lhe estava a dizer.

É que José de São Bento passou a tarde a falar sobre as dezenas de programas encontrados no disco e as técnicas usadas para entrar em sistemas, capturar de credenciais de acesso e aceder as ficheiros — uma verdadeira aula de informática. A tarde já ia longa e a juíza presidente Margarida Alves não conteve o riso quando o especialista assumiu que “de certeza que toda a gente já ouviu falar em bitly“. Nem a juíza tinha ouvido falar nem a maioria da sala de audiências que soltou uma gargalhada coletiva.

Sabe? Nós é mais homicídios”, explicou a juíza-adjunta Ana Paula Conceição.

Entre as explicações mais técnicas, o especialista contou que Rui Pinto tinha mais de 300 páginas que seriam cópias de sites como os da sociedade de advogados PLMJ que permitiam que o alegado hacker roubasse as credenciais de acesso dos utilizadores sem que eles notassem.

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“Se aquele era a fonte de rendimentos do arguido, devia viver muito mal”

Ainda na sessão da manhã, o inspetor José Amador explicou que “não foram recolhidos elementos que permitissem encontrar indícios de atividade ilícita com proventos económicos” levadas a cabo por Rui Pinto. Também as autoridades húngaras informaram a PJ de que “não eram conhecidas instituições de crédito” no país. Assim, a única fonte de rendimento do arguido detetada foi a proveniente do negócio de livros antigos que tinha com o pai. No entanto, José Amador considerou que, “se aquela era a fonte do arguido, devia viver muito mal”.

Quanto ao bairro onde Rui Pinto vivia na capital húngara, o inspetor explicou que “não era o mais fino de Budapeste” e que tinha “zonas menos recomendadas”. “É modesto, é”, acrescentou ainda, quando questionado pela advogada de Rui Pinto.

O inspetor explicou ainda que “em determinados momentos” houve pessoas ligadas ao “mundo do futebol” que indicaram à PJ ter havido “abordagens diretas ou indiretas” com tentativas de extorsão. Após terem sido feitas inquirições e outras diligências, a PJ não encontrou “nada que permitisse seguir uma linha de investigação”, nem sequer ligar Rui Pinto a estas alegadas tentativas de extorsão.

Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

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O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.