A antiga Manutenção Militar de Lisboa, hoje conhecida como Hub Criativo do Beato, vai receber algures no primeiro semestre de 2021 “Praça“, 1700 metros quadrados daquilo que pretende ser o maior mercado alimentar português. Apesar da distância temporal, o projeto — que em tempo de confinamento foi lançado enquanto loja online — foi apresentado esta sexta-feira. À margem dessa cerimónia onde o ambicioso projeto foi apresentado, o Observador falou com Cláudia Almeida e Silva, responsável principal desta Praça, para conhecer um pouco melhor o conceito e funcionamento deste mercado onde se compra e prova tudo o que estiver à venda e o produto português, sazonal e de produção biológica será rei.

Algures em 2018, a vida profissional de Cláudia (sempre dedicada à grande distribuição e retalho) fê-la tomar especial atenção ao comportamento dos estrangeiros que conhecia lá fora e, mais ainda, que recebia em sua casa. “A minha profissão obrigava-me a visitar frequentemente Espanha, França e Brasil e sempre que andava por esses destinos tentava dar a conhecer a nossa gastronomia”, explica. Quando o cenário mudava e eram os estrangeiros desses e outros destinos que lhe batiam à porta para um jantar ou almoço, finamente dava a conhecer os produtos que apregoava e a resposta, do outro lado, nunca desiludia:

Todos ficavam maravilhados com os nossos produtos e isso começou a intrigar-me: se temos um produto tão bom, porque é que ele não nos chega mais facilmente?” 

Aos poucos a resposta a essa questão tornou-se mais clara: era tudo exportado antes sequer de se conseguir guardar alguma coisa para distribuir por cá. “Muito pouco do nosso melhor produto chegava às nossas mesas, a maioria ia para fora. Tudo isto fez-me querer pesquisar um pouco mais sobre aquilo que é a terra, e os produtores mais pequenos e especializados. Fui à procura deles, conhecê-los melhor. Uma das primeiras visitas que fizemos foi às ostras em Alvor e lembro-me perfeitamente de me explicarem que elas nasciam em França, eram encubadas aqui e depois seguiam diretas para França novamente.”, conta.

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Cláudia Almeida e Silva, a responsável por esta Praça, na apresentação oficial do projeto. Diogo Lopes/Observador

Tudo isto foi começando a borbulhar na cabeça de Cláudia. A partilha desta estupefação com amigos e conhecidos habituados “a ver o que se fazia lá fora” ajudou a tornar claro que estava aqui uma oportunidade de negócio interessante. “Havia espaço para juntar dois universos: o inovar e humanizar do setor do retalho alimentar e a sua associação mais profunda com o mundo da restauração”, conta. Na prática refere-se a uma espécie de espaços híbridos, onde a venda de produtos e o consumo dos mesmos é normal e lógica — “Acredito muito que os espaços no futuro serão assim, mais híbridos.” Juntando a tudo isto a “nova tendência de consumo” onde quem compra está “muito mais informado e muito mais preocupado com o que come”, a criação desta Praça tornou-se óbvia.

Espaços como este, na antiga Manutenção Militar de Lisboa (atual Hub Criativo do Beato), vão ser remodelados e transformados na Praça. D.R.

Foi então a partir de 2018 que tudo se começou a reunir para aquilo que a Praça já é mas será ainda mais. Cláudia e o grupo de pessoas que se juntaram à sua volta (entre eles chefs, agricultores, outras pessoas da área do retalho, etc…) definiram então que a Praça assentaria em três pilares essenciais: o produto como protagonista, a portugalidade do mesmo e a promoção de quem os cria de forma sustentável e consciente. Tudo isto são chavões mas Cláudia dá exemplos práticos sobre a importância de os aplicar a sério na vida real. “Acho mesmo que se está a perder o paladar de alguns produtos, eu mesma senti-me uma ignorante ao longo desta jornada porque pensava que o meu paladar e o meu cérebro tinham registados determinados tipos de sabores mas afinal descobria outros”, refere. Para garantir o trilho do sabor, então, além de assegurar-se uma produção o mais biológica possível é imperativo respeitar-se as épocas dos produtos, isso, defende Cláudia, ajudará a que reencontremos sabores que se têm vindo a perder e que, claro, eles no cheguem a preços não proibitivo. É por tudo isto que na Praça não haverá qualquer prurido em dizer-se “não há” quando alguém perguntar por uma fruta ou legume que esteja fora de temporada.

Não queremos vender coisas fora da sua época, em vez disso pretendemos explicar que vendendo coisas na sua altura não só elas vão saber muito melhor como não vão ser tão caras. Um alimento de produção biológica, se for vendido na sua altura de maior esplendor, não tem de ter um preço proibitivo, três ou quatro vezes superior a um de produção ‘convencional’.

Como já fazia São Tomé, o original defensor do “ver para crer”, também na Praça se vai optar por uma filosofia semelhante: “estou 100% convencida de que nós precisamos de dar às pessoas algo para provar para que depois possam confiar e consumir. É por isso mesmo que quando estávamos a idealizar isto decidimos que não devia haver fronteiras entre o que se consome e o que se compra.” Na prática isto significa que se der por si numa das 10 zonas distintas que existirão na Praça — da queijaria à padaria, passando pelo talho, a mercearia ou a garrafeira, etc. — a pedir uma tábua de queijos, por exemplo, pode no final levar consigo o que mais lhe tiver enchido as medidas.

As partes desta Praça

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A Praça que no espaço de uns meses abrirá ao público será composta por várias “secções”, são elas:

Refeitório: uma reconstituição do antigo refeitório da Manutenção Militar que terá  uma cozinha aberta dedicada ao produto;

Talho: totalmente especializado em raças autóctones portuguesas;

Peixaria: só terá peixe e marisco nacional que será apresentado de forma transparente, com a garantia de rastreabilidade e que poderá ser provado num espaço de grelha;

Padaria e Pastelaria: confeções com base de fermentação natural;

Mercado de Frescos: terá tudo o que estiver na estação e seja produzido de forma biológica em solo português. Incluirá ainda uma zona de restauração dedicada a ofertas vegetarianas;

Adega: essencialmente composta por referências de produção biológica ou orgânica e com uma vasta oferta dos chamados vinhos naturais;

Azeite: área de promoção e divulgação dos vários tipos e origens de azwite português;

Queijaria e Charcutaria: tudo de base artesanal e regional;

Mercearia: venda de produtos a granel;

Fórum: espécie de palco que será utilizado para ajudar à promoção dos produtos e produtores parceiros da Praça;

Escola: uma parceria com a Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa que se dedicará ao ensino e partilha de conhecimentos sobre alimentação, sustentabilidade e cozinha
portuguesa;

Zona de Start Ups: espaço dedicado à promoção e apresentação de pequenos e inovadores negócios ligados à área da hotelaria e restauração.

A escolha do Hub Criativo do Beato foi lógica para os criadores desta Praça, dado o cariz inovador que queriam dar àquilo que normalmente conhecemos como supermercado. Isso traduz-se num sistema de hortas urbanas que vão ter disponível numa zona exterior de esplanada, de onde virão muitos produtos que serão vendidos e utilizados in situ, mas também na forte aposta no digital, algo que foi sempre ponto de partida não só como forma de facilitar a experiência e interação com os produtos e produtores mas também por causa do e-commerce. É por isso que neste momento, apesar de a Praça física ainda ser uma enorme zona de obra na parte oriental de Lisboa, a Praça digital já existe há uns meses, valência que a pandemia obrigou a antecipar e acelerar — “em dois meses montámos a Praça digital com cerca de 700 produtos de 140 pequeno/médios produtores. Como se escolheu então todo este manancial de ingredientes e alimentos? “De forma totalmente orgânica”, afirma Cláudia.

“É um caminho que não termina”, começa por explicar. Na fase em que estão neste momento, com algum trabalho de pesquisa feito, já podem aproveitar uma cadeia que se vai formando com o passa palavra — “Vamos a um produtor que nos diz que temos de falar com outro qualquer que têm ao pé dele e assim sucessivamente”. No início, porém, Cláudia diz que se mantiveram sempre o mais humilde possível ao assumir que desconheciam muita coisa e por isso decidiram ir falar com quem percebia do assunto. Foi dessa forma que surgiram nomes como o de Edgardo Pacheco, especialista em azeite e tomate português, o chef Francisco Sousa Magalhães (que juntamente, com Bernardo Agrela formam a dupla de chefs residentes da Praça), o crítico e jornalista Duarte Calvão, o chef e connaisseur de fumeiro nacional Nuno Diniz… “Foi sempre assim, em tertúlias, uma coisa quase em cadeia”, descreve. No capitulo do peixe beberam do saber e experiência de Pedro Bastos da Nutrifresco e do projeto Lota Digital, em Peniche.

Projeção de como será a fachada desta Praça, que abrirá no final do primeiro semestre de 2021. D.R.

Que se desengane quem achar que este será apenas mais um “espaço gourmet”, é a própria Cláudia que o afirma.

“Não vamos querer ser um espaço ‘gourmet’ ou só para a elite. De todo. É nosso propósito tornar este tipo de alimentação [de base biológica e sazonal] em algo mais acessível e isso é um trabalho conjunto que teremos de fazer também com o produtor. Vai ser mais caro? Sim, mas não tem de ser proibitivo.”

Cláudia defende que apesar da fase muito complicada que o país irá atravessar, “as pessoas estão mais conscientes daquilo que compram” e isso não deverá mudar. É com confiança que segue em frente, então, segura de que o trabalho desta Praça terá de passar pelo trabalho de proximidade com os fornecedores, só assim se conseguirá garantir que aquilo que vendem é sustentável para o planeta e para as carteiras dos portugueses. Uma coisa é certa: projetos deste género e com esta envergadura não surgem todos os dias.