Décadas de música popular de massas permitem-nos identificar, com escassa margem de erro, como decorre a carreira de um músico de sucesso: o músico faz uma banda, edita um par de discos, ninguém liga nenhuma, a primeira banda é encerrada, surge uma segunda – e do nada chovem boas críticas, os concertos acumulam-se, o número de pessoas nos concertos aumentam, a conta bancária enche bem como as obrigações do músico – e dentro de três meses tem que lançar novo disco.

Enquanto anónimo, o músico acumulou frustrações e sonhos, viveu com pouco dinheiro e, fosse porque observava os humanos com atenção ou por puro instinto, descobriu como criar canções com as quais as pessoas comuns se identificavam; mas de súbito há groupies e gente que lhe diz que é um génio e drogas e contratos para cumprir – e apesar de haver ali talento, o músico dá por si sem assunto ou, pior ainda, a achar que ele próprio é um assunto infinito e interessante.

Gradualmente, a banda vai-se tornando melhor musicalmente e o que antes era inovação torna-se uma maleta de ferramentas à qual se recorre quando não há inspiração; ao terceiro disco ninguém, exceto os fãs mais empedernidos, quer saber da banda. Os media, esses, há muito partiram, elegeram outros génios que posteriormente abandonarão, por norma quando as massas reconhecem o génio que a nós, críticos de música, já não nos interessa minimamente.

Com sorte, pode haver uma digressão a comemorar os 10 anos do disco de estreia; talvez algum dos discos posteriores ao primeiro seja recuperado vinte anos depois e segue-se uma digressão cujo público é composto de gente com mais de 40 anos, filhos e uma hipoteca, gente que deixou de ouvir discos novos desde, bom, desde o terceiro disco da banda. Com variações específicas esta teoria aplica-se a todos os músicos, de Bob Dylan a Nick Cave, passando por Jeff Tweedy, que será o protagonista desta história.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Photo of WILCO

Jay Bennett e Jeff Tweedy: os Wilco em 2000

Teorizar é o que os críticos fazem: temos teorias sobre a importância de um disco ou de um autor; temos teorias gerais sobre como a pop evoluiu desde 1950 até hoje e, possivelmente, temos teorias sobre a evolução dos beats do sul dos EUA e conseguimos justificar porque é que a Goody Mob e os primeiros discos dos Outkast são mais importantes que os National ou porque é que J Balvin é hoje mais fundamental que um novo disco de Stephen Malkmus. Além disso, continuamos a vestir-nos bem e ter mais pinta que o resto das pessoas da nossa idade.

Em geral, estas teorias, debitadas em jantares de amigos, levam a uma de duas situações: ou paramos de citar as nossas próprias teorias, que já ninguém consegue ouvir, ou arranjamos novos amigos. Eu arranjo novos amigos, que as minhas teorias deram muito trabalho a compor. Além disso, fazer com que o universo descubra novas bandas não é o último fito de um crítico – ele quer que as pessoas descubram o que ele acabou de descobrir, claro, mas acima de tudo quer lembrar às pessoas que há uma pessoa que sabe o que é bom e até tem de uma teoria sobre isso: ele próprio. Quando mais de cem pessoas paparam a teoria, a banda, o músico, o crítico descarta-a e passa para a próxima descoberta.

Uma das minhas teorias é a de que Jeff Tweedy esteve no seu melhor quando teve ao seu lado Jay Bennett, falecido companheiro dos Wilco, com quem entrou em desavença – Bennett morreu na miséria, sem dinheiro para se tratar, e os Wilco (a segunda banda de Jeff Tweedy, mas a primeira que alcançou verdadeiro sucesso) ainda cresceram em público uns anos, na exata proporção em que os seus discos se tornavam tão desinteressantes quanto um jantar em que os intervenientes não tenham sensibilidade para ouvir o melhor dos críticos de música teorizar sobre um músico e, concomitantemente, a humanidade toda.

[ouça o álbum “Summerteeth” dos Wilco na íntegra através do YouTube:]

O primeiro grande disco dos Wilco não é um disco dos Wilco: Mermaid Avenue foi feito a meias com Billy Bragg, e é um disco em que banda e músico inglês musicam letras que Woody Guthrie nunca chegou a transformar em canção. Sempre que os Wilco tomam a dianteira do disco, tudo o que de bom e folk se ouve é Tweedy; e tudo o que for mais pop é Bennett. No melhor disco dos Wilco, Summerteeh, uma obra-prima absoluta de folk-pop avant-garde, a combinação entre os dois é perfeita, com maior pendor para Bennett.

E talvez a raiz do problema da relação estivesse aí: Tweedy é um melodista folk tradicional, Bennett um arranjador e explorador sónico divino. No disco seguinte, Yankee Hotel Foxtrot, erradamente considerado a obra-prima dos Wilco por gente que não me lê com atenção (e depois o país e o mundo estão no estado em que estão), essa tensão foi levada ao extremo, como se pode ver no muito explícito documentário “I Am Trying To Break Your Heart”, que acompanha a feitura do disco e onde vemos um nada carismático e extremamente needy Jay Bennett a azamboar um Tweedy constantemente drogado de comprimidos para as enxaquecas.

[o trailer de “I Am Trying To Break Your Heart”:]

Bennett seria despedido e morreria sem nada, Yankee Hotel Foxtrot (que deve o seu génio aos arranjos de Bennett) tornou-se um êxito, os Wilco cresceram, tornaram-se chatos e gordos e a história ficaria por aqui. Mas eis que chega nova teoria: se um músico for suficientemente bom e tiver um nico de sorte, de X em X tempo volta a ser relevante, porque passaram 20 anos desde Summerteeth; porque um novo crítico ou uma nova geração de músicos ou de ouvintes resolveram recuperá-lo; ou porque, após a travessia no deserto, os discos a solo do músico encontraram um lugar e o tornaram, mais que respeitável, sábio.

É este o ponto em que Jeff Tweedy se encontra em 2020: Love Is The King, o seu disco mais recente (foi lançado em outubro) é um bom disco de folk solitária, com a ocasional faixa extraordinária mas o que torna Tweedy relevante é mais que isso: é a sequência de bons discos a solo consecutivos (Together at Last, de 2017, Warm, de 2018, Warmer, de 2019) mas também os seus livros.

[ouça “Love is the King” na íntegra através do YouTube:]

Let’s Go (So We Can Get Back), de 2018, foi o primeiro livro saído da pena de Tweedy. Era suposto ser uma memória dos tempos dos Wilco e uma memória dos tempos dos Wilco tem muito drama: muitas zangas entre músicos, despedimentos, mortes, dependências, a tentativa de criar um som vanguardista, a tentativa de largar o som vanguardista e criar um som clássico, documentários escandalosos – isto entre as eternas enxaquecas, tão fortes e constantes que o levavam a tomar comprimidos como um miúdo que descobriu que o distraído do pai comprou Maltesers e nunca irá reparar se a embalagem ficar vazia nos próximos dez minutos.

Em Let’s Go (So We Can Get Back) ficávamos a saber que o pai de Tweedy era alcoólico e o filho, aos 23, jurou para sempre nunca mais beber, de modo a nunca se tornar um viciado (uma ironia triste que atravessa o livro, tendo em conta os seus subsequentes problemas com fármacos). Descobrimos que muito cedo se apaixonou pelos Clash e pelos Sex Pistols e que, tal como todas as outras estrelas, não quis seguir as pisadas dos seus antecessores: o pai e os seus dois irmãos trabalhavam nos caminhos de ferro, mas a pequenez do futuro que aí antevinha não servia Tweedy.

A capa de “Let’s Go (So We Can Get Back)”, de Jeff Tweedy

O livro abordava o tema da sua dependência e da sua batalha para se livrar dela e era, em suma, caloroso, melancólico, algo púdico (com muito cuidado ao tocar em assuntos como a morte de um irmão e o cancro da sua mulher) e inesperadamente bem escrito, tendo em conta que a maior parte dos músicos são analfabetos musicais, um tormento para os críticos, que por norma são literatos altamente incapazes socialmente (como já terão notado).

How to Write One Song, o segundo livro de Tweedy, foi editado uma semana antes de Love Is King e versa um assunto diferente do livro anterior, apesar de manter semelhanças de tom: nele Tweedy pretende ensinar-nos a escrever canções, o que levou a algumas entrevistas divertidas em que jornalistas in awe com Tweedy davam por si exasperados com Tweedy, que insistia que iam escrever uma canção juntos ali, quando os jornalistas só queriam fazer as perguntas e ir para casa. (A sério, jornalista sofre. Muito mais que os críticos. Eu nunca sofri, nem uma vez a vida inteira, só fiz sofrer, porque só tenho de dizer mal. O trabalho duro fica para os jornalistas e editores – e para os músicos, esmagados quando destrato os seus discos. Jeff Tweedy, por exemplo, não sei se voltará a sair da cama, depois de ler este texto.)

O que aprendemos em How to Write One Song é que podemos tirar um homem de uma terra mas um pedaço dessa terra persegui-lo-á para sempre: Tweedy fugiu ao mundo blue-collar do trabalho braçal mas abraçou a mesma ética na sua vida musical: acorda todos os dias à mesma hora e põe-se a trabalhar porque nunca se sabe quando a sacana da inspiração virá juntar-se.

Em How to Write One Song, Tweedy recorda como escreveu canções em lobbies de hotel enquanto esperava pelo resto da banda; nas entrevistas confessou que os Wilco têm uma série de discos por editar, discos de improvisação feitos por altura de A Ghost Is Born (o último bom disco dos Wilco), em que punham a fita a rodar e só paravam quando ela acabasse. Ele ainda não teve tempo de ouvir tudo e descobrir o que dali pode ser usado.

A capa de “How to Write One Song”, de Jeff Tweedy

Tudo isto fez com que Tweedy emergisse como o novo padrão de comportamento para uma estrela de indie-rock a envelhecer: alguém que atirou para trás o seu mau feitio, que procurou ajuda para as suas enxaquecas e o seu problema com opiáceos e que continua a tentar escrever canções – e que admite tudo isto, em conversas civilizadas, em vez das antigas entrevistas em que ou dizia sim ou não ou simplesmente virava costas aos jornalistas que, como já sabemos, sofrem imenso e não têm teorias.

Como esta, que já escrevi e vou voltar a repetir: se um músico tiver talento e um pouco de sorte, se souber aceitar que nem sempre os media irão prestar-lhe atenção e continuar a trabalhar, então conseguirá envelhecer em dignidade e, mesmo que não ascenda ao panteão de Dylan e Cave, ser um exemplo para as novas gerações que, inevitavelmente, o irão recuperar.