O significado religioso do Natal foi de tal forma suplantado, na maioria dos espíritos, pelo consumismo infrene, que ultimamente se têm ouvido apelos a que se festeje a quadra de forma mais comedida, “sustentável” e “ambientalmente consciente”, prescindindo de abater pinheiros, usando iluminação LED de baixo consumo, reutilizando papel de embrulho, fitas e laços de anos anteriores, fazendo “upcycling” e reaproveitando presentes de anos anteriores em vez de comprar presentes novos (exemplo: a pretexto do sucesso da série da Netflix “Gambito de Dama”, oferecer aos miúdos, não a PlayStation 5, mas o tabuleiro de xadrez que estava a ganhar pó na arrecadação). Compaginar os festejos natalícios com o conceito de reciclagem poderá parecer uma ideia recente, mas Johann Sebastian Bach já a pusera em prática há 286 anos.

Primeira página do manuscrito da Oratória de Natal , de Bach: início do coro “Jauchzet, frohlocket, auf, preiset die Tage”

Se Bach foi prolífico, mesmo para os elevados padrões de produtividade do Barroco, nos seus primeiros anos como Kantor em Leipzig compôs a um ritmo alucinante, sobretudo quando se considera que providenciar música nova era apenas uma das pesadas incumbências inerentes ao cargo (ver Uma vista do Calvário). Perante a pressão de tantas solicitações, é compreensível que Bach tenha reciclado composições de sua lavra para criar algumas obras destinadas a assegurar a componente musical do calendário litúrgico das igrejas de Leipzig.

O reaproveitamento, parcial ou integral, de obras pré-existentes era prática corrente entre os compositores barrocos, uma vez que se esperava deles um caudal constante de composições para diversas ocasiões (por vezes com prazos apertados) e a maior parte destas eram apresentadas apenas uma vez, perante uma audiência de algumas dezenas de pessoas (no máximo, escassas centenas), e não eram publicadas – o que levava a que o fruto do labor de muitas semanas ou meses fosse “consumido” em uma hora ou duas e não mais voltasse a ser tocado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Oratória de Natal: La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, Savall (Alia Vox/Megamúsica)

Como o conceito de direito de autor tinha ainda contornos pouco definidos e a originalidade não era tão valorizada como começou a sê-lo no século XX, muitos compositores não tinham sequer pruridos em adaptar na íntegra obras alheias ou a incorporar melodias e trechos alheios nas suas obras, umas vezes assumindo o empréstimo/homenagem, outras omitindo que nem tudo nascera da sua inspiração. E havia também compositores que reutilizavam trechos de obras e melodias suas simplesmente porque lhes achavam mérito suficiente para assumirem novas formas e roupagens, até porque, no tempo decorrido desde a sua criação, o compositor crescera em maturidade e sabedoria e seria capaz de fazer essas ideias “antigas” desabrochar em todo o seu potencial.

“La lumière du monde”, por François Boucher, 1750

Desde que assumira o posto de Kantor em Leipzig, em 1723, que Bach providenciava cantatas específicas para a celebração da quadra natalícia e não se sabe o que o terá levado, em 1734, a substituir essa prática pela apresentação de uma Oratória de Natal (Weihnachts-Oratorium) em seis partes, escalonada ao longo de seis dias e com um libreto, de autor anónimo, a aludir aos eventos tradicionalmente celebrados em cada um dos dias:

  • I parte (“Jauchzet, frohlocket, auf, preiset die Tage”) a 25 de Dezembro (nascimento de Jesus)
  • II parte (“Und es waren Hirten in derselben Gegend”) a 26 de Dezembro (anunciação aos pastores)
  • III parte (“Herrscher des Himmels, erhöre das Lallen”) a 27 de Dezembro (adoração dos pastores)
  • IV parte (“Fallt mit Danken, fallt mit Loben”) a 1 de Janeiro (circuncisão de Jesus)
  • V parte (“Ehre sei dir, Gott, gesungen”) a 2 de Janeiro (viagem dos Reis Magos)
  • VI parte (“Herr, wenn die stolzen Feinde schnauben”) a 6 de Janeiro (adoração dos Magos)

“A adoração dos Magos”, por Abraham Bloemaert, 1624

Há quem sugira que Bach, um espírito metódico, após ter compostos cinco ciclos de cantatas para todos os domingos do ano e duas Paixões para a Páscoa, terá querido “arrumar” de vez o calendário litúrgico, compondo, em 1734, uma Oratória de Natal (BWV 248), e, em 1735, uma Oratória de Páscoa (BWV 294) e uma Oratória de Ascensão (BWV 11).

Tal como a Oratória de Páscoa, a Oratória de Natal recorre maioritariamente a material pré-existente: a música dos coros e árias provieram, com excepção da ária “Schließe, mein Herze, dies selige Wunder” (parte III), das cantatas profanas BWV 213-215 e da cantata sacra BWV 248a (perdida), sendo os recitativos todos novos.

[Coro de abertura da Cantata profana “Tönet, ihr Pauken! Erschallet, Trompeten!” BWV 214, pelo Coro & Orquestra Barroca de Amesterdão (em instrumentos de época), com direcção de Ton Koopman (Antoine Marchand/Challenge Records)]

À partida, as cantatas BWV 213-215 já possuíam, pelas circunstâncias da sua composição, o espírito jubilante e luminoso e o instrumentário reforçado com trompetes, trompas e timbales indispensáveis a uma obra que festeja o nascimento de Jesus: a BWV 213 (“Laßt uns sorgen, laßt uns Wachen”) destinara-se a celebrar o aniversário de Friedrich Christian, príncipe-herdeiro da Saxónia e estreara a 5 de Setembro de 1733; a BWV 214 (“Tönet, ihr Pauken! Erschallet, Trompeten!”), destinara-se a celebrar o aniversário de Maria Josepha, eleitora da Saxónia, e estreara a 8 de Dezembro de 1733; e a “Cantata congratulatoria” BWV 215 (“Preise dein Glücke, gesegnetes Sachsen”), destinara-se a celebrar o aniversário da ascensão de Augusto III, eleitor da Saxónia, ao trono da Polónia e estreara a 5 de Outubro de 1734, na presença do próprio Augusto III.

Maria Josepha de Áustria, eleitora da Saxónia, retratada por Louis de Silvestre, 1733

Mas, como é usual nas reciclagens levadas a cabo por Bach, os trechos das três cantatas foram criteriosamente encaixados nas suas novas posições e a música foi esmeradamente ajustada aos novos textos (por exemplo: a parte II, relativa à adoração dos pastores, tem cunho inequivocamente pastoril, embora o seu material de origem não o possuísse), pelo que quem ouça a Oratória de Natal sem dispor de mais informação não suspeitará de que a obra não foi composta de raiz.

[Coro de abertura da Parte I (“Jauchzet, frohlocket, auf, preiset die Tage”) da Oratória de Natal, por La Petite Bande (em instrumentos de época), com direcção de Sigiswald Kuijken (Challenge Records)]

Nas suas primeiras décadas de actividade, Jordi Savall (n.1941) concentrou-se na música instrumental de Bach – rubricando versões de referência dos Concertos Brandemburgueses, das Suítes orquestrais, da Oferenda musical e de A arte da fuga –, mas, a partir de 2011, quando surgiu a sua gravação da Missa em si menor, o maestro catalão reorientou o seu foco para a música vocal, com gravações do Magnificat, da Paixão segundo S. Marcos e, agora, da Oratória de Natal.

O registo ao vivo, realizado em Dezembro de 2019 no Palao de la Musica Catalana, em Barcelona, conta com as sólidas e experimentadas equipas de La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations e um quarteto de solistas que, embora sendo pouco conhecidos – Katja Stuber (soprano), Raffaele Pe (contratenor), Martin Platz (tenor, acumulando funções de Evangelista) e Thomas Stimmel (baixo) – têm desempenhos escorreitos.

[Excerto da ária “Großer Herr, o starker König”, da Parte I da Oratória de Natal, por Thomas Stimmel (baixo) e Le Concert des Nations (em instrumentos de época), com direcção de Jordi Savall]

A qualidade de som nem sempre tem o refinamento usual nas gravações “de estúdio” de Savall (quase sempre na colegial do Castelo de Cardona) e ouve-se algum restolhar nos recitativos, mas estes pequenos óbices são mais do que compensados pela pujança, pela naturalidade e pela presença quase palpável de vozes e instrumentos, distribuídos por um palco sonoro amplo. A conjugação da engenharia de som e da interpretação atinge os momentos mais impressionantes nos coros que abrem cada uma das partes da oratória e que, graças a diversas combinações de trompetes, trompas, oboés e flautas, são de uma extraordinária riqueza tímbrica.

É difícil imaginar melhor remédio para atirar para trás das costas este infausto ano de 2020 do que ouvir uma parte por dia, ao longo de seis dias consecutivos, desta oratória efervescente e radiosa, na enérgica e colorida versão de Jordi Savall. Não necessita de receita médica e não se conhecem contra-indicações (pode ser tomada por agnósticos, ateus e crentes de outros credos que não o luterano) nem efeitos secundários indesejáveis.