No número 1619 da 49th Street, na Broadway, em Manhattan, Nova Iorque, encontra-se um edifício conhecido por Brill Building que, por dentro da fachada clássica, alojava várias companhias discográficas, em cujos escritórios se acotovelavam (literal e figurativamente) compositores contratados para escrever canções para outros – a maior parte deles permaneceu no mais perfeito anonimato da linha de montagem de canções, mas alguns, como Lou Reed, atingiram o estrelato.

Foi, igualmente o caso de Carole King, cujo segundo álbum, Tapestry, perfaz agora meio século – na mesma altura em que Carly Simon sopra 50 velinhas para comemora a edição do seu disco de estreia. Juntamo-las não por serem mulheres, mas por serem mulheres que se impuseram com a sua composição numa altura específica, em que por norma esse lugar estava apenas consagrado aos homens – as mulheres por norma cantavam as canções de outros, mas elas não só as criavam como se tornaram estrelas com os seus próprios temas.

Outro dado que não merece que o desmereçamos é a influência que King e Simon têm sobre uma nova geração de compositoras, de Angel Olsen a Weyes Blood, cujo vanguardista scope cinematográfico assenta no corpo de criação inicial muito 70s de King e Simon.

Carole King e a marca do talento extremo

Mesmo quem não sabe quem é Carole King conhece o seu trabalho, e para o demonstrar bastam dois exemplos: ela é a autora da espantosa “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman” que Aretha Franklin imortalizou; e toda a gente que tenha dois ouvidos já escutou pelo menos uma vez na vida a balada clássica ao piano “You’ve got a friend”, sétimo tema de Tapestry, esse extraordinário hino à amizade que atravessa décadas.

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O que impressiona em Tapestry é a maturidade: cada uma destas canções exsuda classe e escrita clássica – o piano como guia, pontes que ascendem para refrões imaculados, arranjos de um bom gosto admirável, coros por todo o lado, subtis idas à soul e aos blues. E uma perfeição melódica apenas ao alcance dos melhores e que nos faz pensar porque é que King, sendo uma estrela, não é vista como uma constelação rara.

Já agora, uma correção: a maturidade que King exibia em Tapestry não é assim tão surpreendente se pensarmos no seu percurso: aos quatro anos os pais descobriram que a sua Carole tinha ouvido perfeito e a mãe começou a dar-lhe aulas particulares de piano, que veio a tornar-se o seu instrumento preferencial.

O nome de família de King é, na realidade, Klein. Porque o mudou só ela sabe, mas King é mais apropriado (e Queen sê-lo-ia ainda mais): desde essa tenra idade que Carole quis ser capaz de tocar todas as peças que ouvia na rádio e rapidamente aprendeu notação e teoria musical, recorrendo ocasionalmente aos ensinamentos da mãe.

[ouça “Tapestry”, de Carole King, na íntegra através do Youtube:]

Ainda mal tinha deixado a adolescência e já passava tempo com Paul Simon, ou a escrever êxitos para Neil Sedaka com a mesma versatilidade com que os compunha para as Shirelles (e julgo que estarão todos de acordo se eu disser que Neil Sedaka e as Shirelles são muito diferentes, bem como o público-alvo de cada um). Essa é a marca dos extremamente talentosos: não conhecem só uma maneira de fazer as coisas, conhecem-nas todas.

King casou com Gerry Goffin,que se tornou o seu letrista, uma parceria que está na base dos 118 êxitos que fez chegar às tabelas da Billboard Hot 100, ou dos 61 que chegaram às tabelas de vendas no Reino Unido – nem sempre em seu nome, claro; só nesse período inicial ela escreveu para os Monkees, para os Chiftons ou para Bobby Vee.

Essa vocação de escrita era tão marcada que King chamou ao seu primeiro disco a solo Writer. O álbum falhou comercialmente, em parte pela recusa de King em tocar ao vivo. Mas quando ela reuniu material e músicos para Tapestry, tendo a seu lado Joni Mitchell e recuperando “You’ve got a friend”, que fora um êxito para James Taylor, o conjunto de canções que criara era imbatível, à prova de falta de publicidade e espectáculos ao vivo.

Tapestry esteve no primeiro lugar da tabela de vendas americana durante 15 semanas consecutivas e aguentou-se nas ditas tabelas durante seis anos. É quase que uma súmula da escrita de canções clássica da década de 70 – só que chamar-lhe súmula é errado, visto o disco ter sido lançado em 1971. É antes a matriz de como compor em registo cantor-compositor na década de 70.

Carly Simon fora-da-lei

Quando chegamos ao final da lindíssima “The Love’s Still Growing”, escrita por Buzzy Linhart e que fecha o disco de estreia de Carly Simon, era certo que se havia descoberto uma extraordinária voz – capaz de ser sombria, mas também de ascender e pairar nas nuvens, de ser ferida e a própria gaze.

Simon não era uma virtuosa total como King, era antes de mais uma garganta com uma sensibilidade incomum para fazer passar ao ouvinte toda a sorte de sentimentos, dos mais etéreos aos mais negros.

Momento exemplar disso é o primeiro tema do disco, “That’s the way I’ve always heard it should be” (que imediatamente nos faz pensar nas Weyes Blood deste mundo), em que uma mulher pondera sobre a instituição casamento, a que se deve resignar porque “That’s the way I’ve always heard it should be”.

A Elektra, a editora por trás do disco, estava preocupada com a escolha da canção para single – acreditavam que a canção era emocionalmente demasiado complexa para um público vasto. Uma das tradições mais apreciadas pelos gatekeepers é a de acharem sempre que as mulheres são demasiado complexas e que o público em geral não as vai perceber. Isto apesar de ser 1971, ter havido o verão de amor, a taxa de divórcio estar a crescer e a percentagem de gente casada diminuir.

[ouça “Carly Simon” na íntegra através do Youtube:]

Acontece que as pessoas se reviram numa canção em que se falava de crescer dentro do mau casamento dos pais, de olhar para o lado e ver os amigos infelizes num casamento, de homens controladores, da falta de vontade de casar de uma fêmea que acaba em casamento por pressão social.

“That’s the way I’ve always heard it should be” é quase uma peça de soft-rock precoce (muitas se seguiriam na década de 1970, hoje revistas em alta mas na altura mal vistas), e uma peça de soft-rock ideologicamente revolucionária na sua ponderação. Mas podia também ser uma receita de sopa de nabiças que saberia (ou ouvir-se-ia) sempre bem.

Um exemplo disto é “The best thing”, uma das minhas canções preferidas desse disco, talvez à conta da slide-guitar que sempre me encantou (porque tenho um valente fraquinho por música country). Não faço ideia do que Simon está a cantar, mas a voz dela nessa canção com múltiplas partes, sempre me deixou boquiaberto, a forma como ela modula as emoções, como provoca ligeiras cambiâncias, aqui sibilando, ali quase falando, depois adocicando.

Tapestry e Carly Simon vêm de outro tempo, um tempo que ecoa hoje com ainda mais força porque foi nessa altura que as mulheres pegaram nas rédeas das suas carreiras e resolveram compor, cantar e falar dos assuntos que bem lhes apetecesse, sem pedir desculpa nem licença a ninguém. Cinquenta anos depois, o prazer e a admiração mantêm-se.