Ponto 1, a questão do futebol. Na época em que o Benfica fez o maior investimento de sempre, gastando mais de 100 milhões de euros não apenas em jogadores para reforçar o plantel mas também no pagamento da cláusula de rescisão e dos ordenados de toda a equipa técnica de Jorge Jesus, os resultados têm sido em alguns parâmetros os piores do mandato de Vieira, com a equipa afastada de forma precoce da fase de grupos da Liga dos Campeões, a perder a Supertaça, a sair da Taça da Liga, a ser afastada da Liga Europa e a ficar reduzida apenas a uma Primeira Liga onde ocupa o quarto lugar a 16 pontos da liderança (com menos um jogo) e à Taça de Portugal.

Ponto 2, as contas. A venda de Rúben Dias ao Manchester City após o falhanço da entrada na fase de grupos da Champions conseguiu dar ainda algum equilíbrio no Relatório e Contas do primeiro semestre da Benfica SAD, que foi fechado com um lucro de 8,2 milhões de euros, mas se é verdade que os rendimentos totais foram os segundos melhores de sempre (134,9 milhões), houve alguns dados fruto da quebra de receitas também pela pandemia que fazem soar alguns alarmes, como o aumento do passivo em 30,4%, a subida da dívida líquida em 25% e a quebra de 89% nos resultados operacionais face ao período homólogo – sendo certo que o aumento do ativo em mais de 107 milhões provocou um reforço de capitais próprios em 5,1%, num total de 169,4 milhões de euros.

Ponto 3, a contestação externa. As últimas semanas foram marcadas não só pelo aumento das vozes críticas em termos públicos à atual realidade dos encarnados mas também por movimentos de contestação à liderança de Luís Filipe Vieira, não só no buzinão marcado para a rotunda Cosme Damião (que voltará daqui a uma semana e meia) mas também nas tarjas e demais placas que têm sido colocadas pelo país e partilhadas nas redes sociais, incluindo ações como ameaças de morte a Vieira ou vandalismo das Casas do clube que levaram os responsáveis a recolher toda a informação para apresentarem queixa junto das autoridades pelo sucedido.

Era neste contexto que, em dia de 117.º aniversário do clube, Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, tomava pela primeira vez uma posição pública sobre o momento que os encarnados atravessam na antecâmara da receção ao Rio Ave para o Campeonato, numa entrevista ao canal do clube muito aguardada pelo universo benfiquista e onde seria feito uma espécie de “Estado da Nação” num dos períodos mais complicados do líder em 18 anos na Luz, com perguntas feitas também por Toni, Carlos Manuel, Bagão Félix e representantes das Casas. Em resumo, o líder dos encarnados assumiu a responsabilidade pelo momento, admitiu que nem tudo se resume ao surto de Covid-19, defendeu sintonia e continuidade de Jesus e foi buscar a obra feita para responder de forma dura aos críticos. Em 12 grandes ideias, assim foi a entrevista de cerca de uma hora e meia de Vieira ao canal do clube.

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Crise: “Só pode haver um responsável, sou eu”

“Hoje é um dia muito especial, são 117 anos de uma história nobre, singular em Portugal e em todo o Mundo, onde todos nós sentimos vaidosos. História de amor a um clube. Quero cumprimentar todos os benfiquistas, hoje era um dia normal para nós celebrarmos neste pavilhão, se não fosse a pandemia. Veremos qual é a oportunidade para estarmos todos juntos. É um dia de simbolismo para o benfiquismo. Momento da época? Neste momento, ninguém baixou os braços. Enquanto for matematicamente possível, vamos lutar pelo título. Se não for possível, o grande objetivo é o segundo lugar e a Taça de Portugal. Temos de acreditar que é possível mas para isso é importante que estejamos todos juntos, todos nós temos de estar unidos. Só pode haver um responsável, sou eu. Não vale a pena andar à procura de fantasmas, sou eu porque fui eu que fui eleito presidente”.

O impacto da Covid: “Os jogadores não corriam mais do que sete quilómetros…”

“Na hora da derrota tem de aparecer sempre quem lidera o clube. Devo ser dos presidentes mais titulados do Benfica, ganhei seis Campeonatos, quando ganhámos o tetra não dei uma entrevista, pois foi uma vitória dos benfiquistas. Não de uma pessoa só. Acho que é importante e que não sirva de desculpa para ninguém. O Jorge falou, emocionou-se, estou sempre no Seixal. Sei o que se passa naquela casa. O mês de janeiro fomos fustigados… Quando tentámos adiar o jogo com o Nacional, nessa semana tivemos uma tempestade perfeita, com 27 casos de Covid, dez eram jogadores. Os benfiquistas não devem minimizar o que se passou. Quando ficamos negativos não está resolvido, tanto para mim como para um atleta. E até houve colegas e amigos que estranhavam, ‘A equipa só corre uma parte…’. Os jogadores corriam entre nove e 11 ou 12 quilómetros e não corriam mais de sete quilómetros. Isto não é desculpa, é realidade. Sou ser humano, os jogadores também, mas a sua profissão é correr”.

“O principal objetivo de um jogador de futebol é correr todos os dias, e não pode. Eu nunca vi, tirando nos lares, 27 casos, tirando os lares, num curto espaço de tempo. O Jorge [Jesus] esteve fora do Benfica cerca de cinco dias, também não treinava. Houve um tempo no Benfica em que nada foi normal. Apesar de isso ter acontecido, não faltou profissionalismo, dedicação e trabalho. Praticamente não tínhamos contacto uns com os outros por causa desta situação. Hoje as coisas já estão a ficar diferentes. As situação pode começar a normalizar, com mais percalço ou menos percalço. Mesmo depois de ter dado negativo, continuo a não conseguir subir um lance de escadas do Seixal sem parar e antes até corria, o médico disse que ia melhorar em dois/três meses mas o meu estado mantém-se igual, dizem-me que vai melhorar e ainda não melhorou, dizem-me que tenho de esperar. Vamos lá ver…”.

Arbitragens: “Temos de dar a volta a isto, as coisas não estão bem”

“A justificação para estes resultados tem uma componente muito forte da Covid mas há outras situações. Em janeiro foi onde fomos fustigados a sério. Arbitragens? Todos vemos com os nossos olhos, não posso dizer nada ou lá vão mais 200 dias [de castigo]… Entregámos uma carta ao presidente da Federação a pedir uma reunião no final da época com todos, secretário de Estado, presidente da Federação, da Liga, da APAF, a Associação de Treinadores etc. Temos de dar a volta a isto, as coisas não estão bem. Pensávamos que com o VAR tinham acabado de vez os problemas da arbitragem mas foi isto. Há lances que tive oportunidade de ir ao VAR e agora estou a falar do Moreirense. Como não viu os penáltis, não viu porquê? Algo está mal. Quando disse para virem os árbitros estrangeiros, ficaram todos ofendidos, mas agora veio um inglês contradizer o que fazem os portugueses. Parece que em Portugal só temos cegos… Tudo o que seja pela verdade desportiva, façam tudo, isto é que não pode ser”.

Atual momento: “Não entendo esta fratura, não percebo a contestação”

“Não entendo esta fratura. Em cada três sócios, dois votaram em mim. Não percebo a contestação. No Benfica, se não houver estabilidade, se não houver unidade, dificilmente ganhamos. Foi por este comportamento que o Benfica demorou vários anos a chegar ao bi, 39 anos até o tri. Os críticos falam sempre do penta, nunca tínhamos feito um tetra. Isto só foi possível porque houve uma estabilidade. O Benfica preparou-se a partir de 2009 para ser um clube vencedor. Independentemente dos percalços, estivemos em duas finais europeias. Se o jogo com o FC Porto terminasse empatado, éramos campeões, nunca mais o Herrera repete esse pontapé [em 2017/18]. Na derrota vê-se os verdadeiros benfiquistas. Ao ganhar todos batem nas costas. Há coisas que marcam na derrota”.

Jesus: “Vai continuar. E se não houver imunidade, não equipamos nos balneários”

“Jesus vai continuar. Mas tem de sair? Não é competente? Toda a gente dizia que o Jesus tinha de vir para o Benfica, que foi quem deu o melhor futebol ao Benfica. Até as outras listas apoiavam. Tem provas dadas neste clube, 12 títulos. Defendo Jorge Jesus mas ele não precisa, tem 12 títulos. É o treinador que mais títulos conquistou. Há uma realidade que as pessoas não estão a entender, o que se passou dentro daquela casa… Se não houver imunidade de grupo no próximo ano, o Benfica nunca mais se equipa em balneário nenhum. Sai do hotel equipado, vai para o estádio, entra em campo, acaba o jogo, tem a palestra ao intervalo dentro de campo, sai direto para o autocarro, vai para o hotel. É impensável para mim ver 27 pessoas infetadas em oito ou nove dias. Pedi ao presidente do Nacional para adiar o jogo, disse que não podia mas se emprestasse o Diogo Gonçalves já adiava. Não há solidariedade nenhuma. Eu já fui muito solidário com o Nacional. Eu não, o Benfica. Já fomos muito solidários. A partir de 2009, só tive três treinadores e lembro-me bem do que disseram do Rui Vitória, que ganhou seis títulos em três anos e meio, do Bruno Lage… Os benfiquistas têm de saber o que querem: experiência ou formação”.

“O Jorge disse que era o responsável, disse é que não podia ser responsável pelo que sucedeu. Se não tinha os jogadores para treinar, foi o que ele disse. Não fugiu a nada até hoje. E eu não preciso de estar a defender a posição dele. Ele já deu mais do que provas do que é a sua qualidade como treinador. É um ganhador, é um extraordinário profissional. Chega cedo, sai tarde. A derrota com o Arsenal está atravessada, ele nessa noite nem dormiu. Aquilo marcou-o tanto, da maneira como foi. Ficou atravessado. Temos de acreditar no que temos em casa”.

Estabilidade: “É revoltante o que fazem às pessoas, ao treinador e ao presidente”

“É revoltante o que fazem às pessoas, ao treinador, ao presidente, é revoltante a pressão que fazem. Este clube não pode ser vivido assim. Este clube vive de vitórias, vive de resultados, mas há alturas em que não podemos ganhar. Não ganhamos, não ganhámos, mas temos de estar unidos na derrota e na vitória. Se não for assim, levam-nos ao passado. Tenho muito orgulho em dizer isto: em março do ano passado éramos dos clubes mais rentáveis da Europa e éramos dos clubes com maior robustez financeira, tudo graças à formação do Benfica. Mas depois vínhamos com aquela falácia que queria era vender. Não há nenhum clube em Portugal que não tenha de vender. Só é possível um clube ter um trajeto vitorioso se estiver equilibrado financeiramente. No dia em que não for assim, vai tudo por aí abaixo porque começam a aparecer as hipotecas, tudo. Comigo não vai ser assim, o pensamento é aquele que trouxe o Benfica até aqui onde estamos e é assim que vai continuar daqui para a frente”.

Planeamento: “Vertonghen não era bem o que queria mas não podíamos ir ao Cabrera”

“Hoje fazíamos igual, tudo igual. Quando contratámos Jorge Jesus, eu, o Rui Costa e o Tiago Pinto tínhamos sempre uma equipa sombra no Benfica, o departamento altamente profissionalizado do scouting do Benfica. Quando o Jorge veio, entregou-me um documento com os jogadores que pretendia e não houve um jogador que o Jorge não dissesse que sim. Ele queria o Cabrera, entendemos que não o devíamos contratar porque pediam-nos 15 milhões e o Espanyol devia-nos isso e queria ajustar contas. Havia outro central, o [Robin] Koch, também queria. O Rui Costa foi com o Tiago Pinto à Alemanha para contratá-lo a ele e ao Waldschmidt mas esse não havia hipótese porque já tinha compromisso com outro clube (…) O Otamendi veio porque o Rúben Dias tinha saído, o Vertonghen foi também contratado com o consentimento dele. Não era bem o que ele queria mas não podíamos comprar o Cabrera. Então entendemos que era um jogador experiente e o Jorge disse para irmos por aí”.

“No caso do Everton, o Jorge fez uma pressão fantástica e disse: ‘Oh Luís, precisamos deste jogador. Este não pode falhar’. Fomos comprá-lo. Toda a gente conhece o Everton, jogador fantástico, internacional brasileiro. O Darwin também foi pedido do Jorge exclusivamente, lá foi o Rui Costa para Almería para o contratar. Curiosamente estava também identificado pelo scouting do Benfica. Quis o Gilberto, contratámos o Gilberto. O Pedrinho era um jogador que não foi contratado quando o Jorge estava cá, ele até disse na altura que se fosse ele a escolher havia outros três ou quatro, mas quando ele já estava a treinar aqui, chegou ao pé de mim e disse: ‘Luís, enganei-me. O Pedrinho é um craque. Tenho é de o preparar bem mas é um craque. Tem um pé esquerdo diabólico’”.

Estrutura: “Há total sintonia, completa. Estamos agarrados uns aos outros”

“O Jorge [Jesus] teve uma voz ativa. Qualquer contratação foi decidida por mim, pelo Jorge, pelo Rui Costa e pelo Tiago Pinto. Há total sintonia, completa. Nós estamos agarrados uns aos outros. Estou lá todos os dias, de manhã até à noite. Agora até tenho dormido lá nos últimos tempos. Há um compromisso entre todos nós. Há muita gente que dizia que o Benfica ia passear neste Campeonato. Sabemos do plantel que temos, dos jogadores que temos. Normalmente desvalorizamos sempre, diziam que o Matic tinha pernas grandes, que o Salvio só metia a cabeça no chão e corria, que o Di María era um trinca espinhas só habilidoso, o David Luiz também. Viu-se…”

Formação: “Não há política de ziguezague, é o nosso caminho”

“Não há nenhuma política de ziguezague. Se alguém quer apostar na formação, está aqui à frente, sou eu. Quando apostámos seriamente na formação, diziam que não podíamos ser campeões com miúdos… Este ano, por causa dessa contestação, tenho de ter a sensibilidade daquilo que os sócios querem. Fizemos uma mescla de experiência. Não houve contratações por avulso, foi o nosso departamento de scouting que visionou estes jogadores. O único presidente na história do Benfica que pensou seriamente na formação fui eu. Quero investir mais no centro de formação e por isso vai haver uma reunião a 1 de março para uma permuta do terreno que pretendemos para termos mais seis campos de futebol e uma unidade hoteleira. Os sócios do Benfica têm de assumir, vamos seguir esse caminho da formação. Aqueles que falam da formação são os mesmos que diziam que não íamos lá com miúdos e que diziam que eu é que fazia a equipa. Vamos ver para o ano o que vai suceder…”.

Mística e história: “A única pessoa que dignificou o nome do Eusébio fui eu”

“As pessoas têm de viver o Benfica a sério. Não tínhamos nada. A história do Benfica hoje existe. Desde o tempo do Sport Lisboa, os jornais estão todos digitalizados. A única pessoa que dignificou o nome do Eusébio fui eu. A única pessoa que tem o cuidado e que se preocupa com os ex-jogadores do Benfica sou eu e nunca faço publicidade. A mística não é o campo de futebol, a mística é mais profunda, é a história. Se calhar voltamos às nossas origens, sou bairrista. O Benfica foi formado com um homem de pé descalço e eu tenho uma grande sensibilidade. Tenho sido vítima de uma falta de respeito, uma pulhice. Eu sou uma rocha. Há coisas que têm dito que me revoltam. Esses não são bem-vindos ao Benfica. É preciso ser profissional, é preciso ser líder. O segredo do Benfica tem sido esse”.

“Se o Benfica fosse meu, seguia o caminho do Seixal. Não abdicava disso, é o caminho certo. Mas é muito difícil presidir um clube como este. Não tomo decisões como adepto, tomo como presidente. Definimos um pouco de juventude com experiência. Foi o que pensámos e foi assim que foi aprovado. Sei ouvir e tomar as decisões enquadradas no espírito de todos nós. O Seixal é a minha menina dos olhos de ouro. É ali que está o futuro do Benfica e é ali que devemos investir. Em 2013 investi num museu cerca de 11 milhões porque a história do Benfica não existia. Andou por baixo de bancadas arruinadas, taças que desapareceram, leiloadas, outras roubadas. Peço por favor a quem tenha essas taças, entreguem dentro de uma caixa na porta 18. Na minha presidência é que se está a recuperar todo o património histórico, já recuperámos 30 taças e galhardetes do Benfica”.

Contestação: “Não vão brincar mais. A mim não me amedrontam”

“Tenho 20 anos de muito sacrifício. A minha família tem sofrido mas não vão brincar mais. Se continuarem, vou denunciar muita gente. Aqui ninguém assalta. Em cada três benfiquistas, dois votaram em mim. Agora chegam ao luxo de dizer ‘morre, ‘a família morre’. A mim já não me amedrontam. Já me chegou assaltarem a casa duas vezes. Aquilo que faço é o caminho certo. Aquele que vier a seguir a mim tem de pensar sempre nisto. Nunca mais a família vai ter descanso, vai passar por ladrão ou por homem das comissões. Não merecemos a atitude que alguns benfiquistas estão a ter. Ou o Benfica está unido ou não vai a lado nenhum. Nunca ataquei nenhum presidente do Benfica nem ninguém. Quatro meses depois de ganhar estas eleições, será possível este caos todo?”.

Contas: “A única antecipação de receitas foi da NOS para liquidar dívida”

“A única antecipação de receitas foi a que prometi, que foi usar parte do dinheiro do contrato da NOS para liquidar a dívida do Benfica. Tenho cumprido escrupulosamente. O Benfica tinha pago tudo ao sistema financeiro. Quando tínhamos uma divida de 380 milhões, o Benfica foi o único a pagar. Tem o empréstimo obrigacionista e vai cumpri-lo. Recuperámos o estádio para nosso nome e liquidámos o Project Finance. Prefiro que o Benfica seja penalizado mas o estádio fica em nosso nome. Não está nada hipotecado. Se eu quiser transformar aquilo em dinheiro, transformo mas isso é tesouraria. Não tenho antecipação de receitas sem ser a situação do estádio. Se houver mais um ano de pandemia, não sabemos. No dia em que normalizar, é o nosso clube que vai recuperar mais depressa”.