A bailarina e coreógrafa Diana Niepce, que em março de 2014, aos 28 anos, sofreu um acidente que a deixou tetraplégica, apresenta esta semana em Lisboa um espetáculo da sua autoria em que é também intérprete e através do qual procura “questionar o que é a norma” e retratar a “reconstrução do eu”.

Anda, Diana, estreia-se esta terça-feira às 19h00 no Teatro do Bairro Alto (antigo Teatro da Cornucópia, no Príncipe Real) e pode ser visto até sábado, 24. Além da criadora, estão em cena o polaco Bartosz Ostrowski e o guineense Joãozinho da Costa.

“Em palco não uso cadeira ou andarilho, por isso, a forma de me deslocar ou de romper com o meu próprio ritmo é através dos outros dois bailarinos, elas são a extensão do meu próprio corpo, é quase como se fosse um solo, em que eles são como próteses”, explicou Diana Niepce ao Observador. “Interessa-me trabalhar corpos forma da norma, tal como o meu, para tirar as pessoas da hierarquia do corpo performativo, para lhe atribuir uma nova visão. Corpo fora da norma pode ser o de uma pessoa tetraplégica, de uma pessoa transgénero ou de uma modelo de passerelle”, contextualizou.

Perante a pandemia da Covid-19, com a recomendação de distanciamento físico entre as pessoas, Anda, Diana parece ganhar uma dimensão política, porque reafirma o contacto dos corpos, a total intimidade entre personagens, que se cheiram, mexem, sentem. “A pandemia apanhou-me num momento de muitas solicitações, felizmente não tive falta de trabalho, afetou-me mais porque as datas estavam sempre a ser alteradas e no sentido em que sou de risco e o meu trabalho depende do contacto com os outros”, disse a criadora.

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[vídeo de promoção de “Anda, Diana”:]

Durante um ensaio aberto à imprensa, há poucos dias no Teatro do Bairro Alto, Diana Niepce apresentou um excerto da peça. O movimento dos intérpretes estava em tensão na maior parte do tempo, o que era sublinhado por sons metálicos e nervosos que envolviam a apresentação, até que se alcançava a uma tranquilidade acompanhada pelo chilrear de pássaros nos confins de uma floresta.

Os dois corpos masculinos, de tronco nu, ora se aproximavam ora se afastavam de um terceiro corpo, o de Diana Nipece, que parecia causar-lhes medo e curiosidade. A interação era como um jogo de toca e foge, sugeria força e fraqueza, amparo e confiança. Todos procuravam entendimento, mas sentia-se um calafrio. O corpo feminino ganhava formas inesperadas e procurava flutuar acima dos outros dois, como se a gravidade estivesse suspensa. Eles esguios, musculados, altos. Ela é mais baixa e frágil.

“Interessa-me também desmistificar o que é isso de um corpo frágil ou forte”, disse a coreógrafa, para quem a diferença de proporções entre corpos cria um jogo de proporções esteticamente relevante para o espetáculo. “Há aqui um lado poético de simplicidade, de parecer que não é difícil o que estamos a fazer, mas é. Tecnicamente é muito pormenorizado, é um trabalho de resistência”, explicou. “Interessava-me demonstrar que a noção do tempo é diferente para cada pessoa. Procuro trazer o espectador para o meu tempo, que é mais lento, é o tempo do meu corpo.”

Experiência de reformulação do corpo

Diana Nipece nasceu em Ovar em 1985 e cresceu em Oliveira de Azeméis e no Porto. O apelido artístico deve-o ao nome que em tempos deu a um gato, então inspirada no inventor da fotografia, o francês Joseph  Niépce. É descrita como uma artista que “investiga a linguagem e o hibridismo enquanto ação política” e que “procura reformular a identidade do corpo performativo através da sua mutação, intimidade e experimentalismo fora da norma”.

Começou a ter aulas de dança clássica em criança, depois formou-se na Escola Superior de Dança, onde foi aluna de Tiago Rodrigues, Amélia Bentes e Teresa Ranieri, entre outros, e fez uma pós-graduação em arte e comunicação na Universidade Nova de Lisboa. No currículo tem a peça de circo contemporâneo Forgotten Fog (2015) e as peças de dança Raw a Nude (2019), 12 979 Dias (2019), Dueto (2020) e Duetos (2020).

“Era bailarina e acrobata e caí de um trapézio. Já tinha tido uns acidentes antes disso. Fiquei tetraplégica e acordei num corpo que não era o meu, porque eu tinha um corpo virtuoso de bailarina, altamente técnico. Isto trouxe-me uma nova perspetiva do mundo, do que nos faz invalidar o corpo dos outros”, recordou a artista. “Nesta peça não conto a história do meu acidente, mas proporciono a minha experiência de reformulação do meu corpo e da minha mente após o acidente.”

Diana Niepce descreve Anda, Diana como “peça de enamoramento”, por estar em preparação há seis anos, primeiro como ideia e só mais recentemente a caminho da concretização. Sublinha a importância de apresentar em cena corpos fora da norma mas sem cadeiras ou canadianas, “porque isso é quase um adestramento da sociedade para te fazer cumprir um ritmo que declara a eficiência daquele corpo, para o manter próximo da norma”.