São 9h30 e no piso 8 do Hospital de S. João, no Porto, o serviço de neurocirurgia tem marcada no calendário para esta quinta-feira uma cirurgia nova no tratamento da dor crónica. Dentro de poucas horas será implementado pela primeira vez um elétrodo medular numa doente de 58 anos, um procedimento feito apenas no ano passado em Coimbra. “Neste momento, a doente já está a ser anestesiada e os cirurgiões estão a reunir com um especialista francês, o Dr. Patrick Mertens, do Hospital Universitário de Lyon”, explica ao Observador Rui Vaz, diretor do serviço.

A operação será pela primeira vez supervisionada a mais de mil quilómetros de distância e em tempo real, uma prática pouco comum e que foi potenciada pela pandemia, já que numa situação normal o médico francês, que é uma referência mundial no tratamento da dor, estaria presente na cirurgia. A relação do S. João com Lyon surge de uma estratégia de desenvolvimento no tratamento neurocirúrgico da dor que inclui um plano de formação. Clara Chamadoira, uma das cirurgiãs da equipa, teve formação com o especialista para pôr em prática uma técnica nova que combate a dor crónica em mais 50%, graças a um elétrodo colocado na medula que, através da sua atividade elétrica, influencia as vias da dor.

Antes de entrar no bloco é necessário vestir um fato especial, calçar umas crocs hospitalares, tapar o cabelo com uma touca e manter a máscara cirúrgica no rosto. A zona onde irá decorrer a cirurgia é composta por duas salas e na primeira a azáfama é grande. Uns falam inglês ao telefone, outros arrumam caixas e carrinhos com material descartável, guardam coisas nos cacifos, olham para monitores de computador e conversam entre si ou lavam as mãos e os braços nos dois lavatórios disponíveis.

Através do vidro da porta automática branca é possível ver sala principal, onde paira um ambiente bem mais calmo. Na maca está a doente posicionada de barriga para baixo já anestesiada e totalmente tapada, sendo apenas visível a zona das costas, onde será intervencionada, e as suas mãos, cobertas com catéteres e adesivos. À sua volta estão quatro pessoas, entre médicos e enfermeiros, devidamente equipados e coordenados entre si.

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Acompanhada há um ano no S. João, a paciente tem um tipo de dor crónica consequente de um traumatismo provocado por uma entrose no tornozelo, resultando depois na síndrome da dor regional complexa. “São dores muito agudas que não respondem à medicação oral habitual, não sendo possível tratar”, explica a cirurgiã Clara Chamadoira, garantindo que esta condição retirava “grande parte da sua qualidade de vida”. Com a nova opção, onde a grande vantagem é a adaptabilidade, os resultados serão mais eficazes a longo prazo e a doente poderá fazer uma vida normal, sendo apenas necessária a mudança da bateria do elétrodo dentro de 15 a 20 anos. “Esperamos que a partir de hoje fique sem dor”, sublinha a médica.

Clara Chamadoira e Manuel Rito foram os cirurgiões de serviço

Uns óculos especiais, um microfone e um ecrã no bloco operatório

Ouve-se o apitar das máquinas, o aspirar dos tubos com sangue, os bisturis e as tesouras a serem pousados nos tabuleiros de alumínio ou o rasgar das embalagens descartáveis com luvas. É hora dos cirurgiões Clara Chamadoira e Manuel Rito prepararem a doente para a operação, abrindo a zona nas costas que será intervencionada e garantindo ter por perto todo o material necessário. Para isso contam a ajuda de duas enfermeiras.

Durante este processo habitual, que já causa pouco nervosismo e ansiedade nos profissionais da sala, há um elemento que dá nas vistas por segurar uns óculos e circular de um lado para o outro com um computador portátil. Está preocupado com cabos, monitores e enquadramentos e nada pode avançar sem ele. Trata-se de um profissional técnico da Boston Scientific, a empresa americana responsável pelo desenvolvimento e comercialização do novo elétrodo medular que será implantado, mas também por uns óculos inteligentes, através dos quais os cirurgiões vão poder ser supervisionados à distância pelo especialista francês. Eis a solução encontrada para que o trabalho decorresse em plena pandemia.

“Leves, práticos e intuitivos”, é assim que o técnico espanhol descreve estes óculos de armação preta, aparentemente normais, com um microfone, um pequeno auricular e três câmaras incorporadas — uma no meio das duas lentes, outra lateral, posicionada na haste direita, e uma outra interna na lente esquerda, que permite ao cirurgião visualizar o que o médico francês quiser partilhar.

Este nova tecnologia funciona através de uma vídeochamada a partir de um smartphone com um software específico e foi testada no serviço de neurocirurgia do S. João há duas semanas para garantir que a rede wi-fi não teria qualquer falha. “Tivemos de pedir ajuda ao sistema de informática do hospital para que tudo corresse bem. No bloco já tínhamos uma câmara que transmitia imagens para a biblioteca, onde geralmente estão os alunos, mas nunca com este grau de precisão”, realça Rui Vaz, diretor do serviço.

Depois de alguns minutos e muitos testes, o técnico da Boston Scientific conseguiu finalmente colocar um ecrã no bloco que transmite em tempo real a imagem que se vê através destes óculos e a operação começa. A cirurgiã Clara Chamadoira troca as luvas para colocar os óculos com o auricular e começa por cumprimentar o colega francês. “Não há resistência”; “penso que é preciso cortar”; “é para fixar esta parte?” são algumas frases que se ouvem, enquanto pede às enfermeiras agulhas mais pequenas, fios não absorvíveis ou gases com betadine.

Esta manhã, no bloco operatório ouviu-se falar português, espanhol e inglês

Uma hora depois, a medica passa os óculos especiais ao colega Manuel Rito, situado mesmo à sua frente, e é ele que termina os trabalhos trinta minutos depois. Uns metros ao lado da maca está Rui Vaz, diretor do serviço de neurocirurgia, atento ao monitor que transmite as imagens do implante do elétrodo em tempo real. “Mostra-me como está posicionado”, “aponta com a pinça”, “acho que está bem, mas aproxima-te”, ia dizendo à distância, preferindo ver no televisor o que se estava a passar, ainda que se queixasse da focagem e da amplitude da imagem.

“Correu bem!”, afirma Clara Chamadoira ao sair da porta automática e já sem luvas nas mãos. “A pandemia trouxe muitas cisas más, mas em termos tecnológicos houve um upgrade. Normalmente vinham colegas estrangeiros ajudar-nos e hoje estes óculos conseguiram substitui-los. Tivemos um colega em direto, uma referência mundial no tratamento da dor, a operar connosco”, diz Observador, visivelmente satisfeita.

Através dos óculos com que operou, Clara recebeu “dicas cruciais” do especialista francês, um acompanhamento que deverá receber nas próximas cirurgias com este método, consideradas o período “da curva de aprendizagem”. “É um procedimento que conhecemos as bases, mas que nunca fizemos, evidentemente que a supervisão é muito importante e faz com que as coisas corram melhor.”

Manuel Rito, que operou com Clara Chamadoira esta doente, também gostou da experiência de ser coordenado à distância com estes óculos especiais e nem o auricular lhe fez confusão. “Falarem-me ao ouvido não foi perturbador. O colega não interfere, vamos fazendo as coisas normalmente e perguntamos-lhe o que ele acha, se está bem ou mal, no fundo, para ter uma validação do nosso procedimento. Naturalmente se estivéssemos a fazer algo que ele não gostasse, interviria imediatamente.”

Entre as várias indicações que recebeu, o cirurgião destaca algumas etapas sensíveis como as manobras necessárias para implantar o elétrodo, a forma como este é fixado e a ligação da bateria. “São estes pequenos grandes pormenores que evitam as infeções, que é o nosso pior inimigo. Esta ajuda tecnológica é um passo importante que poderá ser o nosso dia a dia. Penso que no futuro poderá servir outras cirurgias, mais complexas”, sublinha Manuel Rito, deixando anda uma sugestão para o futuro. “Só precisava é que os óculos tivessem graduação e umas lentes que não embaciassem com a máscara.”