Enviado especial do Observador, em Tóquio

Um texto deve sempre começar pelo início e não pelo final. Um texto sobre Simone Biles concede de uma forma quase inconsciente essa benesse de poder começar pelo final para ser perceber o início. Foi assim, anos a fio, horas a fio, que construiu aquele que será sempre o maior legado na história da ginástica mundial. De trás para a frente, de frente para trás, do princípio para o fim, do princípio. No dia em que decidiu dar um passo ao lado, um pequenino passo ao lado, parou tudo. Esse passo, esse pequenino passo, valeu mais do que uma medalha ou um recorde mundial a vários níveis. Estava ali um ícone que não caiu, deu um pequenino passo ao lado para não cair. Aquele pequenino passo que tantos outros, com mais ou menos história, lamentam hoje não ter dado.

“Ao final do dia, não sou apenas um entretenimento, somos humanos. Penso que as pessoas se esqueceram um pouco disso”, disse na penúltima resposta que deu na conferência de imprensa após uma medalha de bronze que foi em paralelo a mais improvável mas a mais importante na carreira. O resto foi história. Ficará na história. Fez história. Tudo porque, esta terça-feira, o Ariake Gymnastics Centre foi muito mais do que se viu pela TV.

Ponto prévio: foi, no caso de muitos meios como o Observador, porque houve quase uma conjugação cósmica de interesses legítimos para que isso acontecesse. Apesar de nos termos cruzado com várias bancadas de imprensa com imensos lugares por preencher, muitas vezes ou existiam apenas bilhetes non tabled ou nem isso. Exemplo prático, a prova de Laurel Hubbard no halterofilismo que teve mais do dobro dos pedidos do que os lugares que eram colocados à disposição. Aqui não, o impossível tornou-se quase uma coisa inevitável e havia bilhetes para todos, a ponto de estarem cerca de 200 jornalistas além dos que tinham tabled seats (diferença: têm como diz o nome uma mesa, várias tomadas, fios para ligação mais rápida da internet e um ecrã para seguir melhor tudo o que se passa). Todos os olhares, desta vez muitos mais, estavam centrados numa pessoa. Aquela mesma pessoa que sentiu o peso do mundo nos seus ombros por ter todos os olhares centrados em si. Simone sorria.

“Conseguia ver nos seus olhos que queria muito fazer isto”, explicou no final Cecile Landi, treinadora da pequena gigante americana de 1,42 metros e o seu porto seguro onde esteja em prova pela forma como quase se aninha nela antes e depois dos exercícios. Na semana passada Simone Biles desistiu do concurso por equipas e explicou, tim-tim-por-tim-tim, tudo o que sentia para tomar essa decisão. Depois, quando foi ver as companheiras em ação, admitiu que chegou quase a ter tonturas só de ver os esquemas que faziam. Entretanto, foi sendo medicamente avaliada todos os dias duas vezes por um psicólogo de desporto. Quase à última, após prescindir do cavalo, do solo e das barras assimétricas, quis fazer a última final que ia ter em Tóquio. Quis voltar a ser feliz.

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“Sempre pensei que tinha de ser um dia de cada vez. Quando desisti foi porque achava que não era seguro”. A própria ida de Thomas Bach, líder do Comité Olímpico Internacional, ao Ariake Gymnastics Centre mostrou que Simone Biles teve um papel muito relevante para um dos grandes desafios do desporto na atualidade, adensado pelo período de pandemia que em muitos casos levou a períodos obrigatórios de quarentena mal resolvidos. Se o segredo do desporto é cada vez mais a força mental, a fraqueza dessa força é um problema.

Logo depois da final masculina das barras paralelas e posterior entrega das medalhas e demais protocolo, as oito ginastas apuradas provocou um excecional ruído nas bancadas muito mais cheias do que normal. Simone, a terceira, atrás da chinesa Xijing Tang e à frente da compatriota Sunisa Lee, voltava a ser Simone. A sorrir, a ser capaz de encher uma sala pelo carisma, a assustar as adversárias só por estar no mesmo desafio. Todos aqueles sacrifícios feitos ao longo de cinco anos, todos aqueles demónios que lhe tomaram a cabeça por não ter, a par das companheiras, a proteção que merecia contra um monstro chamado Larry Nassar, todas as questões mentais que lhe retiraram a confiança que era um grande trunfo, tudo estava por menos de uma hora posto de parte.

A medalha de bronze, a mesma que tinha ganho no Rio de Janeiro em 2016 no aparelho, foi o menos importante. Chenchen Guan, uma chinesa de 16 anos, conseguiu ganhar a final com 14.633, superando a compatriota de 18, Xijing Tang (14.233). No final, a vencedora foi Simone Biles. Dentro do pavilhão, na zona mista, na conferência.

Muito apoiada por elementos da delegação americana, por membros de outras comitivas e até por jornalistas que por momentos mostraram que também são humanos como ela e não resistiram a levantar-se para aplaudir um exercício que não esteve isento de erros mas que mostrou bem o fenómeno que é, Simone foi aquilo que mais gosta de ser, onde mais gosta de ser, com quem mais gosta de ser: sempre próxima de Cecile Landi, apoiou as adversárias nos seus números, aplaudiu movimentos mesmo das adversárias diretas, recuperou um sorriso genuíno que nos últimos tempos mais não era do que uma máscara para esconder a tristeza que sentia. Quando foi chamada, os telemóveis de dezenas e dezenas de pessoas saíram dos bolsos, começaram a gravar e ficaram na memória com aquilo que os Jogos não vão esquecer: a prova da maior de sempre que se tornou grande também por assumir que não estava bem para contornar aquilo que era uma pessoa num corpo pequeno e frágil.

Uuuuuaaaaauuuuu! Yeeeaaaahhhhh! O exercício de Simone era o exercício de todos e todos queriam apenas que o exercício de Simone fosse o melhor. Não foi. Mas a própria era talvez a pessoa menos preocupada com isso: ao sair, foi abraçar Cecile Landi, recebeu uma ovação de pé e ainda ficou surpreendida com um sorriso de orelha a orelha com alguém que disse depois na zona mista (onde voltou a haver o problema da escassez de lugares) não conhecer e que levou dois posters de tamanho bem razoável com os cães da ginasta – embora, pelo que nos foi permitido perceber na bancada, tenha vindo com elementos da delegação americana que se sentaram na zona mais perto da trave. Não foram menos de 20 cumprimentos e aplausos às adversárias até ser oficializado, com as duas últimas prestações de Flávia Saraiva e Chechen Guan, que ganhara a medalha de bronze.

“A pressão estava lá mas estava a fazer isto por mim. Sinceramente, não sei como me estou a sentir agora. Agora, agora mesmo, sinto apenas que tenho de ir para casa, trabalhar no meu bem estar e ficar bem com o que tiver de acontecer. O que aconteceu? Estava saturada? Onde é que os fios deixaram de ligar entre si? Isso foi complicado porque treinei toda a vida, fisicamente estava mais do que preparada para os Jogos. Não estava à espera de sair daqui com uma medalha, só queria ir lá para dentro e fazer isto por mim. Futuro? Se tiver uma oportunidade de poder voltar a uns Jogos vai significar o mundo para mim”, disse no final, entre zonas rápidas da TV, zona mista e conferência. E disse feliz porque, hoje, Simone Biles voltou a ser feliz a fazer o que mais gosta de fazer.