Flordelis, cantora, pastora, fundadora de uma igreja evangélica brasileira e política, foi expulsa esta quarta-feira da Câmara dos Deputados por estar acusada de matar o marido (adotado pela deputada quando ele tinha 14 anos e ela 30), o pastor evangélico Anderson do Carmo, num crime que está a chocar o Brasil. 437 dos 513 membros da Câmara Baixa do Congresso votaram a favor da cessação do mandato, após um parecer do Conselho de Ética que indicou que a intérprete “usou o mandato para coagir testemunhas e ocultar provas”.

“Saio de cabeça erguida”, disse a deputada eleita em 2018 pelo Partido Social Democrata (PSD), que frisou estar “inocente”. “A minha inocência será provada e vou continuar a lutar para garantir a minha liberdade“, reforçou na sessão plenária em que se realizou a votação.

Rodrigo Faucz, advogado de defesa de Flordelis e presente nessa sessão, salientou que a cessação da deputada é uma “mistura de perversidade histórica temperado com misoginia e machismo estrutural”. Assinalou ainda que a sua cliente estava a ser “massacrada” pelos seus “inimigos” com “acusações levianas de adversários políticos e religiosos”.

Por seu turno, o relator do caso e o deputado Alexandre Leite referiu que as provas da investigação “não deixam dúvidas da participação que circunscreve o homicídio de Anderson do Carmo por parte da deputada“. Reforçou ainda que “o relacionamento entre a deputada e o marido, perante as conversas intercetadas, já vinha há muito tempo em maus caminhos e mal encaminhado, até este fim trágico”.

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O assassinato de Anderson do Carmo ocorreu em junho de 2019. O pastor foi surpreendido quando chegava a casa de uma caminhada — quando entrou na garagem, foi atingido por mais de 30 tiros (sete dos quais na região da pélvis), relata a Globo. Horas mais tarde, Flordelis alegou que se tratou de uma tentativa de assalto.

No entanto, a polícia brasileira não confirmou a versão da cantora, tendo detido um dos filhos do casal (ao todo terão quatro filhos biológicos) e um adotado (Flordelis adotou cerca de 50 crianças e jovens ao longo da vida), alegados autores do crime.

Flordelis só viu o seu nome envolvido diretamente no crime em agosto de 2020, juntamente com mais 11 pessoas (sete dos quais filhos), noticiou a Globo. O Ministério Público do Rio de Janeiro acusou a viúva de ser a mentora do crime e também concluiu que Anderson do Carmo foi morto devido a razões económicas. Além disso, as autoridades brasileiras descobriram que a cantora tinha tentado envenenar o marido com arsénio desde 2018.

Na altura, a cantora não pôde ser julgada por ser deputada e pelo estatuto de imunidade parlamentar que lhe é inerente — o que acaba de cair. A defesa de Flordelis já pediu para não ser presa, alegando, segundo a Globo, que se trata de uma pessoa idosa (por ter 60 anos), por ter comparecido a todas as sessões e devido à Covid-19.

Nascida na favela do Jacarezinho do Rio de Janeiro em 1961, Flordelis dos Santos de Souza teve uma educação religiosa dentro do evangelismo. Casou com o seu primeiro marido (tendo-se depois divorciado), teve três filhos, mas foi num encontro com um jovem de uma favela que estava prestes a ser morto por traficantes que lhe revelou a sua vocação. Para o salvar, a cantora chegou mesmo a colocar em sua vida em risco. O menor sobreviveu e depois adotou-o.

De acordo com um perfil publicado no órgão norte-americano New Yorker, foi a partir desse momento que Flordelis começou a adotar crianças em circunstâncias muitas vezes inusitadas, ainda que muitos duvidem da sua veracidade.

A pastora conheceu Anderson do Carmo numa destas suas torpecias e devido à religião — com o tempo, Flordelis começou a dedicar-se à religião. A cantora assegura também que a relação com o seu ex-marido começou apenas quando ele era maior de idade. “Ele começou por ter uma grande admiração por mim, que se transformou em amor”, relatou ao órgão norte-americano. Casaram e, três meses depois, a mulher decidiu adotar 37 crianças.

Foi aí que o casal começou a ter problemas com a Justiça, uma vez que as adoções não foram formalizadas nem reconhecidas. A polícia chegou mesmo a andar à procura de Flordelis, que se foi escondendo em casa de conhecidos e chegou mesmo a viver na rua com os filhos. Entretanto, conseguiu marcar uma reunião com um representante das Nações Unidas para expor o seu caso — e depois a situação regularizou-se, tendo sido criada uma associação para o efeito.

Com os filhos e tendo gozando de uma forte popularidade na comunidade, Flordelis começou a ser bastante conhecida. Muitos procuravam a sua ajuda e aconselhamento, ao qual a cantora respondia com salmos e com frases religiosas. Daí até criar a sua própria igreja — dentro do Evangelismo –, foi um pequeno passo, tendo-se tornado uma pastora e fundando a sua própria igreja na garagem da sua casa: o Ministério Flordelis, que organizava missas, celebrações e reuniões.

Neste contexto, tornou-se visível outro talento de Flordelis: o canto. Com um carro com uma rádio e altifalantes que ecoavam cânticos, ela e o marido andavam pelas favelas do Rio de Janeiro. O seu nome começou ainda ser mais conhecido e a catapulta para a fama, em termos nacionais, surgiu com um convite para ir ao programa da apresentadora de televisão Xuxa. 

O seu nome foi ganhando notoriedade e revelo e, em 2006, um diretor de cinema comoveu-se com a história de Flordelis e decidiu fazer um filme sobre a sua vida. Com vários atores da TV Globo (como Bruna Marquezine, Deborah Secco, Fernanda Lima), a longa-metragem “Flordelis: Basta uma Palavra para Mudar” estreou em 2009. Não teve grande sucesso comercial, mas foi na sua sequência que a cantora conseguiu assinar um contrato com o maior grupo de música gospel do Brasil: o MK.

“Comecei a dar uma melhor vida aos meus filhos”, confessa Flordelis ao The New Yorker. E o seu sucesso musical extravasou as fronteiras brasileiras: a cantora atuou na Europa e nos Estados Unidos. “Consegui realizar quase todos os meus sonhos enquanto cantora”, disse, acrescentando apenas “falta ser nomeada para um Grammy”.

A política é a sua mais recente paixão e surgiu após Flordelis estar sozinha numa estrada. Ao que relatou ao The New Yorker, uma voz disse-lhe para andar em direção a uns papéis que tinham quatro dígitos (os deputados federais possuem sempre associado uma espécie de código) e a sua fotografia. Este sinal divino foi o incentivo para se candidatar ao cargo de deputada.

Com a sua popularidade, Flordelis conseguiu arranjar facilmente alguém que a introduzisse no mundo político. Arolde de Oliveira, gerente da companhia de música de gospel MK, já era deputado a nível federal. E isso facilitou a sua entrada na política, que teve bastante impacto. Com a gravação de um jingle e com a sua reputação, conseguiu obter um forte apoio junto dos evangelistas.

Foi eleita em 2018 e teria um mandato até 2022, caso não tivesse sido expulsa pela Câmara dos Deputados. Esta é uma nova parte da longa-metragem que dá (aliás, já deu) a vida de Flordelis.