Morreu a escritora portuguesa Isabel da Nóbrega, aos 96 anos, confirmou ao Observador fonte da família da autora, cuja vida e obra são indissociáveis da afirmação feminina como força indisciplinadora na literatura portuguesa, nos anos 60.

Maria Isabel Guerra Bastos Gonçalves, ou Isabel da Nóbrega, pseudónimo pelo qual ficou conhecida, nasceu em Lisboa, em 1925, no seio de uma família protestante. Foi uma cronista de pena luxuriante, sem frases feitas, nem sentimentalismos bacocos, no tempo em que não abundavam mulheres nas redações de jornais, muito menos na escrita de crónicas.

Mas foi também escritora de contos, teatro, romance e literatura infantil. Em 1965, a obra Viver com os Outros valeu-lhe o prémio Camilo Castelo Branco e a conquista de um lugar na literatura portuguesa. Um lugar próprio e corajoso, cru e terno que olhava para o quotidiano das vidas comuns perdidas numa sociedade atrasada e apelava aos direitos cívicos, sobretudo aos direitos das mulheres, onde  se encontravam influencias de Virginia Woolf e do nouveau roman francês

Isabel da Nóbrega tornou-se conhecida no meio literário português dos anos 50 e 60 pela irrequieta inteligência que manifestava na sua vida de jornalista; foi uma das fundadoras do mítico jornal A Capital, mas escreveu também no Diário de Notícias, no Diário de Lisboa e no Primeiro de Janeiro. Deixa também obra como tradutora em várias editoras, entre elas a Estúdios Cor, com José Saramago.

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Isabel da Nóbrega, a musa que Saramago apagou da (sua) história

Fascinou a Lisboa do seu tempo e, em 1954, protagonizou um frisson no meio literário lisboeta ao abandonar o marido para casar com o famoso crítico literário João Gaspar Simões. Foi ainda a companheira e musa de muitos anos do escritor José Saramago e a grande instigadora do trabalho literário do futuro Prémio Nobel que, na altura, lhe dedicou o livro Memorial do Convento.

Para lá de jornais, fez televisão e rádio, até se retirar da vida pública, há cerca de dez anos. O seu último trabalho foi Allegro Vivace, na Antena 2. Isabel da Nóbrega vivia atualmente com uma das filhas. Era avó da jornalista Alexandra Abreu Loureiro.

A mulher que via por dentro

O filósofo italiano Guido Ceronetti escreveu que cada ser humano é único, como cada pão que fermenta e coze no escuro forno de barro do velho Egito. Cada pessoa é uma luta entre a luz e a escuridão, um triunfo da vida sobre a morte. Isabel da Nóbrega era sem dúvida uma criatura que não estava prevista no seu tempo, no seu meio social, nem no ambiente político e cultural português. Porque a sua luta corajosa para pensar contra a maré e viver contra a moral e os bons costumes tornam profundamente injusto que hoje em dia só seja lembrada como uma das companheiras do escritor José Saramago. Ora ela foi muito mais do que isso, foi a feiticeira do seu próprio pão, a inventora dos seus fermentos, a dona da sua vida, num tempo em que sê-lo não era acessível a todas as mulheres.

Criada numa família protestante, num ambiente liberal, com um pai que desde cedo lhe abriu a porta para os prazeres dos livros, Isabel far-se-ia uma bela rapariga, de olhos verdes “demoníacos”  como escreveu Gaspar Simões, que não percebeu que acima de tudo eram olhos com asas e com muita vontade de voar. Casou cedo e teve três filhos, coisa que nunca lhe deu o sentimento de completude que se esperava de uma mulher  dos anos 40.

De leitora fez-se escritora, um dia deixou o marido e os filhos e juntou-se a Gaspar Simões, tornou-se amiga de Sophia, Natália Correia, Ruben A., frequentadora de festas e tertúlias literárias, viajante. Conheceu Henry Miller, andou no elétrico chamado “Desire”, em Nova Orleães, e não enlouqueceu como Blanche Dubois, apesar das contrariedades da vida. Pelo contrário. Forjou uma obra literária a olhar para o interior das pessoas comuns, procurando fugir às mentiras convencionais sobre o papel das mulheres, o aborto, a maternidade e o amor. Contou, numa entrevista, que foi ela quem ajudou Saramago a escolher o nome “Blimunda” para a personagem principal do romance Memorial do Convento. Personagem que levava uns olhos que viam por dentro dos corpos, tal como Saramago dizia que ela conseguia fazer.

Para a lenda de uns ficará como a mulher sem a qual Saramago nunca teria escrito nada. Para outros como uma alma luminosa que despertava paixões ao redor. A sua beleza, o seu porte aristocrático, não perderam nada quando se aproximou de Saramago, do PCP e, dizem, “deixou de usar salto alto”. Fez carreira como cronista, terá escrito mais de três mil crónicas, ao longo de décadas, como jornalista. O livro Quadratim, de 1976, reúne os seus melhores textos, mas será sem dúvida escasso face à dimensão da sua obra. Também neste ano, de furor revolucionário, foi uma das organizadoras do 1º Congresso de Escritores da APE, foi divulgadora de poesia junto das classes trabalhadoras, missão que, em 2009, há-de recordar em lágrimas no Festival Literatura em Viagem. Foi uma das suas últimas aparições públicas. Tinha, na altura 84 anos, uma voz firme e uma agilidade jovial.

Em 2015 o Observador tentou entrevistá-la e, embora não tendo aceitado o convite, sabemos que gostou do artigo e lhe criticou a pontuação. Era uma mulher tão elegante quanto assertiva, quando isso não era considerado uma forma de agressividade ou arrogância. Nunca disse, em público, uma palavra sobre o livro infame que João Gaspar Simões escreveu sobre ela (As Mãos e as Luvas), depois da separação, tal como não disse uma palavra sobre o facto de Saramago ter apagado dos livros as dedicatórias que lhe tinha feito, substituindo-as por dedicatórias a Pilar del Rio.

Sabe-se contudo que o romance entre os dois foi um coup de foudre, uma paixão irremediável (pelo menos para ela). É Isabel quem integra Saramago no meio literário, que o instiga a escrever e que acreditava, logo nos anos 80, que ele viria a ganhar o Nobel da Literatura. De certa forma, a partir dos anos 70, a escritora parece desinvestir de si mesma e da sua vida literária, para investir em Saramago e nos trabalhos junto da comunidade como divulgadora de literatura; quer em pequenos cursos dados em empresas, quer em programas de televisão e rádio.

Na altura em que o Observador escreve o artigo “Isabel da Nóbrega, a musa que Saramago apagou da (sua) história”, a família assumiu que Saramago fora, de facto o grande e insuperável amor da sua vida e na biografia do Nobel, escrita pelo jornalista Joaquim Vieira, em 2018, ficámos a saber que Isabel da Nóbrega tinha guardado o fraque do seu pai, para Saramago usar na entrega do Nobel, com o qual já então ela sonhava.

Ainda assim, parecendo imune aos venenos que os amores deixaram na sua vida, Isabel continuou a sua missão de divulgadora de literatura e poesia muito depois da partida de Saramago para outros braços. Com uma cultura invejável que ia da música erudita às metáforas usadas, por acaso, na boca de um trabalhador anónimo, a escritora que foi uma allumeuse tornou-se uma mistura de sabedoria e mistério e uma sorte para quem a pôde conhecer. Hoje, neste tempo de suaves raparigas, de tanto bater o seu coração parou.

As cerimónias fúnebres da escritora terão lugar amanhã, sexta-feira, na basílica da Estrela, em Lisboa.

Presidente da República envia “sentidas condolências” pela morte de escritora Isabel da Nóbrega

O Presidente da República manifestou esta quinta-feira as “sentidas condolências” pela morte da escritora, jornalista e tradutora Isabel da Nóbrega, aos 96 anos, assinalando a “forma inconformada e aguda” como questionou “o quotidiano burguês e o lugar das mulheres”.

“À família de Isabel da Nóbrega apresento as minhas sentidas condolências”, pode ler-se numa nota publicada no sítio oficial na Internet do Chefe de Estado.

Marcelo Rebelo de Sousa destacou também que Isabel da Nóbrega foi, com Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Natália Nunes ou Graça Pina de Morais, uma das escritoras que, na segunda metade do século XX, questionaram de forma inconformada e aguda o quotidiano burguês e o lugar das mulheres.

Associada muitas vezes a escritores com quem partilhou a vida, é de justiça que seja lembrada pelo seu contributo para a descrição de uma época e de uma sociedade, para a experimentação narrativa e, acima de tudo, para a revolução antes da revolução que já constituía a escrita das mulheres em Portugal em meados do século”, salientou ainda.

A autora de “Viver com os outros” morreu esta quinta-feira, no Estoril, aos 96 anos, disse à Lusa fonte familiar. O velório realiza-se esta sexta-feira, 3 de setembro na Basílica da Estrela, em Lisboa, a partir das 17h30, e o funeral terá lugar no sábado, no Cemitério dos Prazeres.