Este ano há uma boa notícia com o fim do Tremor, o festival de São Miguel, Açores, que voltou agora a acontecer pela primeira vez desde 2019: é que não será preciso esperar 12 meses pelo regresso.

Para 2022 não é para marcar férias para o verão — a organização já soprou que vai voltar às datas originais, ali algures entre o fim do primeiro trimestre (março) e o início do segundo (abril). Como dizia o outro senhor, é fazer as contas: daqui a seis ou sete meses o baile recomeça.

Os próximos dias devem trazer novidades. Mas com o regresso às datas originais — fora da época alta, o que reduz custos e permite levar pessoas a São Miguel numa altura de menor pressão turística —, devem voltar os concertos nas salas fechadas emblemáticas do festival, que este ano não puderam servir de palco devido à Covid-19 e às restrições de lotação. Fala-se aqui da loja de roupa Londrina, da Garagem Varela, de cafés, de oficinas, de espaços aparentemente inusitados para a música ao vivo.

Foi uma edição coerente com a história do festival, na estética da programação, na manutenção (até reforço) das atividades paralelas aos concertos tradicionais — instalações, exposições, trilhos pedestres ao som de música, concertos surpresa — e na tentativa de fazer os espectadores também percorrerem e descobrirem a ilha, usando a música como motivação. No Tremor é como se a música fosse simultaneamente um ponto de chegada e um ponto de partida: partimos da música para descobrir a ilha ou vamos descobrindo a ilha na nossa busca por música?

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Ao mesmo tempo, esta foi também uma edição muito diferente das anteriores e dos restantes festivais que se estão a começar a fazer nesta fase ainda algo anémica de retoma da música ao vivo. Por um lado, com a mudança de calendário, o Tremor passou para setembro e este ano o tempo ajudou: a chuva ficou circunscrita ao início de um dos dias (nesse caso, antes dos principais concertos) e à tarde e noite de outro (o último). Para cinco dias nos Açores não está nada mau.

Por outro lado, a dificuldade em contratar artistas internacionais (por causa da Covid-19, maioritariamente, mas nesta época também não é tão fácil levá-los aos Açores quanto na primavera) foi notória no cartaz, mais ancorado na música portuguesa. Isso permitiu, em contraponto, ter concertos de projetos nacionais com maior dimensão popular, como Lena d’Água e sobretudo os Clã.

Antes mesmo do festival começar, o diretor criativo do Tremor, Márcio Laranjeira, confessava: “Estávamos a pensar trazer Clã desde que o festival existe”. Dava outro exemplo: “Os Sensible Soccers já têm uma história com o festival, tocaram cá na segunda edição e queríamos voltar a trazê-los”. E defendia o cartaz: “Acho que a nossa indústria esteve muito mal como um todo com essa desculpabilização, principalmente os grandes festivais ao não fazerem nada por não terem cartazes. Foi como se o nosso país só fosse capaz de produzir bandas de abertura para tocar às 17h. Se um promotor de espectáculos pensa assim, o público…”.

A tese de que o diretor criativo do Tremor estava convencido, antes de tudo isto começar, era que “há qualidade” em Portugal e que “é um desafio diferente mas possível programar com a arte que tens no teu próprio país”.

Está mais ou menos comprovada, mesmo que à escala (bem mais pequena) do Tremor: as centenas que foram a São Miguel por estes dias não foram pelos nomes do cartaz, foram pela identidade do festival que as faz confiar que vai correr tudo bem com os concertos. Não precisam de conhecer tudo ou sequer grande parte, voam para São Miguel mais ou menos à confiança. Até porque não há palcos principais noutros festivais com a classe da charmosa ilha de São Miguel.

Depois há a parte musical que comprova a tese. Quantos trios norte-americanos ou britânicos existirão, por exemplo, com mais talento do que Norberto Lobo – Filho da Mãe – Ricardo Martins, que vimos no Arquipélago? Quantas bandas de pop-rock elegante, mas também enérgico, darão concertos melhores do que o dos Clã na noite de encerramento? Que rapazes estrangeiros conseguiriam com mais classe fazer do Tremor uma discoteca a céu aberto como o fizeram os Sensible Soccers? E podíamos continuar nisto o dia todo, mas temos um voo para apanhar e não convém.

O sonho dos Clã e o baile dos Ferro Gaita

Chamaram-lhe “um sonho” e pela voz de Manuela Azevedo. Foi logo no início do concerto dos Clã, no Pinhal da Paz, uma mata verdejante de grande dimensão (tem 50 hectares de área) em Ponta Delgada, ideal para passeios pedestres entre concertos: “Boa noite Tremor. Isto parece um sonho”. O “sonho” não era apenas, neste caso, atuar no festival — coisa que a organização procurava há vários anos. O sonho dos Clã era fazê-lo naquele espaço e voltando a ter uma plateia de pé, ao invés de sentada, a dançar ao som das canções e sem grande distanciamento (algo que as regras atuais em São Miguel permitem).

[O concerto dos Clã em imagens:]

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Quem nunca viu os Clã não sabe o que perde e até foi quando um dos elementos da organização do Tremor viu um concerto ao vivo da banda de Manuela Azevedo, Hélder Gonçalves e companhia que a vontade de levar o grupo a São Miguel surgiu.

Além de terem 30 anos de carreira e um longo curso de canções e discos de pop-rock elegantíssimo, os Clã são uma máquina ao vivo. A banda sabe tudo o que tem de fazer em palco e tem em Manuela Azevedo uma frontwoman única — arriscaríamos até dizer que se trata da melhor vocalista portuguesa de pop-rock das últimas décadas, pela voz mas também pela teatralidade e comunicação corporal.

A atuação no Tremor passou por algumas das canções recentes, primeiro, e aqueceu depois com os “clássicos”. Entre os primeiros temas mais recentes, ouviram-se “Véspera” — canção-alerta sobre as alterações climáticas, apresentada como um tema dedicado aos “miúdos que fazem greve à escola para defender o nosso futuro comum” — e “Jogos Florais”, obra musical dos Clã e lírica de “um rapaz talentoso e perfumado chamado Samuel Úria”. Acrescentaria Manuela Azevedo: “É uma oportunidade para apreciarem o talento da pena do Samuel Úria. É uma das poucas canções que tem a palavra loquaz”.

Com a banda embalada, uma catrefada de músicos coordenados ao detalhe, e já depois de “H2OMEN” e “Sangue Frio” (recuperadas ao disco Lustro, de 2000), a magia aconteceu: de pandeireta na mão, a tocar aqui e ali, Manuela Azevedo cantou a espantosa “A Paz Não Te Cai Bem”, abundantemente cantada na plateia, e daí em diante teve o público na mão.

Em ritmo de animada festa popular, ouvimos “Tempo-Espaço” (uma parceria com “uma mulher do norte absolutamente extraordinária, talentosa, chamada Capicua”), “Tudo no Amor” (parceria recente com Sérgio Godinho — e uma das grandes canções em língua portuguesa dos últimos anos) e a também fresca “Armário”. E depois vieram os grandes clássicos: “GTI” primeiro (“O sonho dos meus amigos é ter / um GTI”), com Manuela Azevedo a saltar, dançar e coordenar a multidão virando o microfone para o público e pedindo cantoria e a aceleração de “Tira a Teima” (do disco Cintura, de 2007) depois.

A ginga e a experiência dos Clã ficam à vista até na gestão de um concerto: poucas pausas entre as canções mais dançantes e aceleradas, não há grande conversa pelo meio nem grandes tempos mortos entre clássicos, só se para quando a seguir vem uma balada. “É bom voltar a ver-vos na multidão, é uma bela noite para nós, muito obrigado por esta prenda”, ia dizendo a vocalista, uns minutos antes de cantar o hit “Problema de Expressão” e antes da chuva começar a cair copiosamente, obrigando os festivaleiros menos protegidos a fugir.

Os mais precavidos (ainda eram muitos), de impermeáveis e de guarda-chuva aberto, ainda ficaram para assistir ao final de um concerto que voltou a provar (como se ainda fosse necessário) que os Clã são uma das melhores bandas que este país já teve e que hoje tem.

A noite foi dos Clã mas foi também dos Ferro Gaita: a histórica banda de funaná que faz de cada concerto uma comemoração comunitária, uma celebração dançante da vida e dos ritmos quentes. Num concerto dos Ferro Gaita o ritmo é constante, permanente, com a concertina e o “ferrinho” — mas também as percussões e as harmonias vocais — a comandarem o ritmo, o baixo a marcar o balanço e o trombone a dar força.

Na manhã seguinte, este domingo, encontrávamos um dos membros dos Ferro Gaita no elevador e numa conversa rápida sobre o concerto resumia-nos tudo numa frase cristalina: “Os nossos ritmos são quentes”. São mesmo: a noite não estava especialmente quente (também não estava fria e, mais importante do que isso, já não estava chuvosa) mas os Ferro Gaita tornaram o clima muito mais ameno, com centenas de pessoas a dançarem como que possuídas por uma enorme alegria.

[As imagens do concerto dos Ferro Gaita:]

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Foi história aquilo a que se assistiu no concerto dos Ferro Gaita: quando uma banda com tantos anos volta à ribalta e volta aos concertos regulares, não é garantido que aconteça o que aconteceu este sábado no Pinhal da Paz.

 Um dinamarquês gentil: “Espero que este festival exista para sempre, é lindo”

Especial foi, também, o concerto de Casper Clausen, vocalista dinamarquês dos Efterklang que viveu nos últimos anos em Portugal e que construiu uma ligação estreita com o festival, não apenas enquanto artista (tocou no Tremor por mais de uma vez com diferentes projetos) mas também como espectador.

Apresentando as canções de “Better Way”, álbum editado este ano em que passeia por águas eletrónicas e marítimas (as canções estão cheias de referência a esse ideário oceânico, como uma travessia marítima que metaforicamente é uma viagem espiritual), Casper Clausen mostrou-se um estupendo vocalista. As canções mais íntimas em que pegava na guitarra acústica foram talvez as menos entusiasmantes, pelo menos face ao espanto que causou quando, qual DJ-vocalista, deixava as batidas eletrónicas tocar e mostrava que é um cantor exímio.

Entre batidas, efeitos de voz, e uma simpatia contagiante, foi passeando pelo palco e deixando palavras simpáticas sobre o festival e o país. É especialmente surpreendente ver a alegria de um artista a tocar para poucas centenas de pessoas, num festival em São Miguel, quando a banda que integra — os Efterklang — toca para milhares de pessoas por todo o mundo, em salas mais institucionais e de grande prestígio. Clausen, porém, parece o anti-estrela: ia deambulando entre mesas de som, microfones, pratos de bateria (pegou em baquetas e cá vai disto), livrou-se dos sapatos para se pôr confortável, soprou a harmónica e constatou maravilhado: “Estou aqui convosco, algures no meio do Atlântico”.

Cantou “I Used to Think”, talvez a canção mais acessível e de reação imediata (e enérgica) do disco — tanto que a repetiria no fim. E cantava quase de olhos fechados, com pathos, como se estivesse numa catarse musical e emocional, embrenhado no seu transe musical. Pegou na guitarra acústica, chamou a palco o violinista Samuel Martins Coelho (que apresentara antes o seu álbum Cura, num horário feliz e com o sol a ajudar ao relaxamento e à absorção), elogiou um “país lindíssimo e de pessoas lindíssimas” agradecendo a forma como foi recebido e acolhido.

Ainda houve tempo para voltar às batidas eletrónicas, voltando a colocar-se de pé e a encarar o público de microfone na mão, com as batidas eletrónicas de “Snow White” (canção de Better Way) a tocar. E apresentou de seguida “8 Bit Human”, dizendo que a escreveu a pensar nas “pessoas estúpidas que pensam que o melhor a fazer é ir para outros planetas” — uma canção dedicada à “insanidade da mente do Elon Musk”. Terminou no meio do público a cantar, de cócoras e pedindo às pessoas que se baixassem também para depois se levantarem em conjunto e dançarem coletivamente.

Casper Clausen ainda teve tempo para uma mensagem de amor direta para o Tremor: “Muito obrigado por me terem recebido aqui. É a minha quarta vez por cá e espero que este festival exista para sempre, qualquer que seja o molde em que aconteça. É lindo ver o que o Tremor faz e continua a fazer”.

[As imagens do concerto de Casper Clausen:]

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Além de Clã, Ferro Gaita e Casper Clausen, o Pinhal da Paz acolheu concertos do violinista e compositor Samuel Martins Coelho, dos açorianos Kazan e dos Dirty Coal Train. O festival terminou ao som de um DJ set cheio de hip-hop, trap e baile-funk brasileiro, responsabilidade do dominicano (residente em Los Angeles) Kelman Duran. Daqui a meio ano há mais.