A 18 de janeiro de 1981, um incêndio pôs termo a uma festa de aniversário cheia de adolescentes negros em New Cross, no sudeste de Londres. 13 jovens morreram, muitos sofreram queimaduras graves e outros múltiplas fraturas resultantes da queda, quando se lançaram das janelas do prédio para escapar às chamas. A causa do incêndio nunca foi apurada, as suspeitas de ataque racista nunca dissipadas – e o rastilho para um ano de confrontos na luta pelos direitos civis dos negros britânicos definitivamente aceso.
Steve McQueen tinha 11 anos à data dos acontecimentos. Em entrevista à IndieWire, recorda como, nos anos 70 e princípio dos 80, a história dos negros não era contada em lado algum. As pessoas desapareciam das ruas nos bairros de maioria negra à hora de “Roots”, porque era o único conteúdo em toda a televisão que os ajudava a perceber um pouco de onde tinham vindo – mesmo que não fosse extraordinariamente bom.
Agora, um pouco como Barry Jenkins nos Estados Unidos – ou, até à morte, o malogrado Chadwick Boseman nas suas escolhas enquanto ator e produtor – Mr. McQueen tem andado a tentar reconstituir essa história. A História dos negros ingleses, ou a História negra de Inglaterra e do imenso mundo que influenciou. De “12 Anos Escravo” a “Small Axe”. “Uprising” vem nessa descendência, da urgência de contar as histórias que, doutro modo, corriam o risco de permanecer invisíveis. Dos acontecimentos de miúdos em chamas que então ocuparam as páginas dos jornais durante uns dias para logo serem substituídos pelo casamento dos príncipes Diana e Carlos.
[o trailer de “Uprising”:]
Apesar dos pesares, os tempos estão a mudar – tinham de mudar. Hoje, McQueen propõe este documentário em três partes à BBC e a ideia é prontamente aceite. E tinha de ser na BBC, diz o realizador: só assim consegue “infiltrar na corrente sanguínea” dos ingleses os episódios até aqui calados da história de um país que, mesmo quando queria falar na escola da luta pelos direitos civis, só falava dos americanos. Na velha Britânia, não havia um problema, não se ninguém falasse dele.
A chegar até nós pelo DocLisboa (onde se estreia no domingo, dia 31, às 14h45 no grande auditório da Culturgest), “Uprising” começa por nos contextualizar nos anos 70, nas segundas gerações de ingleses negros – os que já tinham nascido na Grã-Bretanha –, na sua exclusão para os ghettos, na importância do reggae e do seu profeta, Bob Marley, como porta-voz quase solitário das suas dores e aspirações. Um tipo de inglês que só aparece nas notícias quando comete um crime, que é capturado, espancado e devolvido pela polícia à rua sem chegar a saber porquê, que é humilhado pelos insultos e agressões da Frente Nacional, os seus lugares vandalizados e destruídos, sem que nunca haja a detenção de um só responsável.
Margaret Thatcher, a vilã vitalícia de todo produto cultural britânico criado nos últimos 40 anos, tenha ou não tenha culpa, é mais uma vez aqui recuperada, mas, desta feita, sem meios de escapar. “People are really rather afraid that this country might be rather swamped by people with a different culture”, disse, com ar de mãe preocupada com os seus filhos, em 1978, então a um breve ano de deixar de ser líder da oposição. “As pessoas temem que este país possa ser inundado por pessoas de outra cultura”. Mas o original é mais eloquente: “swamped”. Não há verbo português equivalente. Inundar é pouco; significa “transformar num pântano”. E “pântano” foi o nome escolhido pela polícia para batizar o contra-ataque aos motins que então começaram a grassar pelos ghettos: “Swamp Operation”. Bonito serviço.
“Fire”, “Blame” e “The Fronte Line” são os títulos dos três episódios sensivelmente de uma hora cada. Começamos então no contexto socio-político, passamos para os acontecimentos daquela noite de 18 de Janeiro e seguimos pelas investigações inconclusivos e pelo rebentamento da revolta que afetaria a forma como brancos e negros ingleses se relacionaram durante toda a década que então começava. Da Black People’s Day of Action, o primeiro verdadeiro protesto organizado dos ingleses negros que levaram às ruas 15 a 20 mil pessoas, solidárias com as vítimas do incêndio de New Cross, em Março de ’81, aos motins de Brixton, que durante dois dias de Abril expiaram com violência e terror o ódio até ali contido de parte a parte e o momento decisivo que colocou, pela primeira vez, a juventude branca a lutar pelos direitos dos negros.
Steve McQueen e James Rogan, com quem partilha a realização, contam a história destes dias de forma delicada e equilibrada, nunca panfletária nem assoberbada pela vontade de, de algum modo, fazer justiça 40 anos depois. Concentram-se nas pessoas, nos pormenores dos acontecimentos, em levar-nos lá, àquela noite primordial do incêndio, compreendendo quem era cada um, que vidas normais ali estavam em jogo, a fragilidade da vida e de como ela pode mudar de um momento para o outro, totalmente fora do nosso controlo. Ouvem vítimas, pais e mães, amigos, viúvas. Mas também a polícia, os investigadores, os ativistas, todos os lados. Recordam as notícias, o contexto, aproximam-se das personagens, mas com pudor, mantendo a distância como McQueen não faz nas suas obras ficcionais. Deixam-nos tirar as nossas conclusões sobretudo porque nos deixam com as pessoas.
As pessoas, como George Rhoden, um polícia negro que teve de proteger os manifestantes da Frente Nacional que gritavam máximas racistas, atacado por manifestantes negros que o chamavam de traidor, protegido pelos colegas brancos que, instantes antes, rosnavam insultos racistas como se ele não estivesse ali ou não tivesse aquela cor de pele. Pessoas. Iguais em 1981 e 2021. Brancas ou negras. Em New Cross ou aqui. Com o fogo ainda a lavrar.