Seria mais uma pequena moradia na berma da estrada onde começa a freguesia de Nossa Senhora Graça Divor, a 12 quilómetros de Évora, mas uma bandeira da Rússia esvoaçante chama a atenção. Num segundo olhar vê-se uma segunda bandeira pintada na parede da fachada da casa, com uma imagem do presidente Vladimir Putin e uma frase em russo por baixo. Há anos que aquelas imagens estão ali, mas agora com a invasão da Ucrânia pela Rússia tornaram-se incomodativas ao ponto da Associação dos Ucranianos em Portugal estar a preparar uma queixa crime contra o proprietário da casa.

A denúncia começou por ser feita à Câmara Municipal de Évora numa carta enviada pela Associação dos Ucranianos em Portugal e reproduzida na sua página de Facebook na noite de domingo. Segundo a publicação, vários cidadãos ucranianos que vivem naquela zona sentiram-se incomodados com as imagens que mostram apoio ao Presidente russo. “Para nós, ucranianos, o Putin tornou-se o símbolo de morte e de crime e da maior tragédia humana no século XXI. Comparamos os crimes do Putin com os crimes de Hitler no século passado. Por isso o autor destes desenhos e textos a favor de Putin provoca uma grande dor moral aos refugiados ucranianos e à comunidade ucraniana que vive no seu distrito”, lê-se na publicação, em que se considera mesmo estar em causa um crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.

A publicação foi feita pelo presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadokha, que esta segunda-feira, segundo contou ao Observador, reuniu com a sua advogada para perceber como podia avançar com uma participação. Pouco antes desse encontro, porém, percebeu que no local já tinha estado uma equipa de jornalistas da TVI. “O dono da casa ameaçou os jornalistas e os ucranianos e nós vamos usar essas imagens para sustentar a participação”, explicou Pavlo Sadokha.

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“Falem com o meu presidente Vladimir”

Assim que os dois cães ladram junto ao portão da moradia, onde a bandeira russa está içada, aparece o dono que comunica com eles naquilo que parece ser a língua russa.”Ele aprendeu russo sozinho. E fala russo com os cães. Não sei se fala bem ou não porque não conheço a língua”, conta minutos depois ao Observador o dono do café das Espadas, a 500 metros dali.

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No portão da casa de Jorge “Maninha”, como lhe chamam, a receção não é calorosa. “Saiam daqui. Se quiserem vão falar com o meu presidente Vladimir. Ele que vos explique como é que 75% de uma população de 150 milhões de pessoas o apoia”, grita, sem dar oportunidade para perguntas e sem querer dar respostas. Regressa a casa irritado e a dar a conversa por terminada.

De volta ao café da freguesia, que tem pouco menos de 85 km2 e 489 habitantes, algumas pessoas explicam que há anos que Jorge vive isolado, incompatibilizado com a mulher e com a filha, que não mais o visitaram. E com uma relação pouco estável com a irmã, que vive ao lado, e com os vizinhos, com quem tem por vezes algumas implicâncias. Nas contas de um desses vizinhos, que se junta à conversa no café, há pelo menos 13 anos (os que ali vive) que existe uma bandeira russa pintada na fachada da casa de Jorge. A segunda bandeira é içada de vez em quando, como está agora. A imagem de Putin desenhada pela mão de Jorge, colocada numa mica e afixada na parede, assim como uma mensagem de apoio ao exército russo já são mais recentes.

À medida que os clientes chegam ao café vão contribuindo para o novelo da história de Jorge. Trabalhou como “caixeiro viajante” durante anos, “era violento com a mulher”, que o deixou, e está reformado há já algum tempo apesar de só agora ter 66 anos — contam, pedindo anonimato. Ao lado dele, numa moradia colada à sua, vive a irmã e o cunhado, Joaquim. “Ele sempre teve uma admiração com a Rússia e começou a dedicar-se ao tema. Aprendeu a falar sozinho a língua, é defensor do país e da sua política. Mas nunca lá esteve sequer”, conta Joaquim, do outro lado do portão, disponível para defender o cunhado por considerar que, apesar da sua “fixação” pelos russos, “ele não faz mal a ninguém”.

No café da freguesia de Nossa Senhora Graça Divor, os vizinhos dizem que Jorge apenas é visto às vezes, quando sai no seu jipe de “marca russa”: “Deve ir à compras”. Mas lembram quando uma vez a GNR foi à sua casa por causa dos problemas com a mulher e os militares foram avisados de que ali “estavam a pisar território russo”.

Não existem famílias ucranianas a viver na freguesia

O presidente da junta de freguesia, porém, é mais taxativo: “aquilo é uma questão de saúde, está identificado. Já teve problemas com a mulher e com a filha, tem aquela paixão, não comunica com ninguém ali. Não fala com ninguém há anos”, diz Nuno de Deus (CDU), referindo que nem nunca se tinha apercebido de que a pintura representava da bandeira russa.

Sabia que era relacionado com um regime ou com um país, mas nem sabia que era russo. No outro dia é que me disseram que tinha lá uma fotografia de Putin”, acrescenta.

Na freguesia, por agora, não habitam cidadãos ucranianos. Mas terão sido cidadãos naturais da Ucrânia a reportarem a um representante da associação na zona de Évora as bandeiras na casa de Jorge e o sentimento de intimidação. “Não tenho tido relatos semelhantes, mas nos últimos três domingos durante a missa na Igreja de São Jorge de Arroios, em Lisboa, tem havido pessoas a entrar aos gritos e a dizerem frases contra os ucranianos”, conta por telefone ao Observador, Pavlo Sadokha.

Fonte oficial da GNR de Évora disse ao Observador que, para já, ainda não chegou nenhuma queixa contra Jorge. “Temos este indivíduo monitorizado por sabermos da sua admiração pela Rússia, mas nunca tivemos qualquer informação de que pudesse constituir um perigo para alguém”.