Há pelo menos duas razões para darmos os parabéns aos Rolling Stones por Exile on Main St.: a primeira é que faz anos — 50, para sermos precisos (foi editado a 12 de maio de 1972); a segunda é que é possivelmente o último grande disco dos Stones, mesmo tendo em conta que em 1981 houve uma espécie de renascimento com Tatoo You.

Para uma parte da humanidade, Exile on Main St. fica abaixo da produção anterior dos Stones, enquanto outro grupo o considera a obra-prima da banda; um terceiro bando está em crer que álbuns posteriores são igualmente obras-primas, mas não devemos ouvir estas pessoas – de facto, a nossa obrigação é, caso tenhamos o azar de depararmos com uma, fugir dela, pois trata-se de gente fanática e com falta de noção.

Exile on Main St. não é um álbum comum na discografia dos Stones: o seu contexto está rodeado de ainda mais mitos que o habitual na banda que (possivelmente) mais roupa interior feminina fez cair; a sua feitura, por uma vez, obedeceu menos ao pragmatismo e sentido de carreira de Mick Jagger que aos humores, inspiração e influências de Keith Richards, um homem que conseguiu enriquecer sem nunca olhar para uma folha de Excel ou para a conta bancária, que resistiu a tantas sobredoses de heroína que é possível que ele próprio se tenha tornado numa droga dura.

Pelo menos, e de acordo com um daqueles rumores que entretanto se tornou verdade absoluta, terá passado tempo suficiente a dormir para Mick Jagger pelo meio das sessões empernar com Anita Pallenberg, a namorada de Keith. Na maior parte das bandas isto seria o suficiente para a dissolução, mas nos Stones sempre foi difícil perceber quem era namorado de quem (Anita, por exemplo, já havia estado envolvida com Jagger antes), como além disso os rapazes sempre tiveram uma capacidade rara de continuarem a fazer boa música independentemente do que se passava nas suas vidas pessoais e do quanto odiavam o gajo do lado.

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[“Tumbling Dice” ao vivo em 1973]:

O lado, neste caso, era Villa Nellcôte, uma terreola no sul de França, onde Keith Richards se havia instalado, não se percebe bem se para fugir à heroína e ao caos e viver o seu amor com Anita, se para sucumbir à heroína e assim perder Anita. Mulheres ou drogas?, esta sempre foi uma das decisões mais difíceis que os grandes criadores tiveram de enfrentar – por norma ganham as drogas. Já agora, e para que não seja tudo mito, a real razão da fuga para França foi o fisco. É sempre o fisco.

Keith queria gravar o próximo disco na cave da casa que arrendou, queria um disco mais solto, menos preocupado com refrões pop, feito de forma mais relaxada – e conseguiu-o, ao ponto de Bobby Keys, que tocou saxofone no disco, descrever Exile… como “tão ensaiado como um soluço”. Mick Jagger durante anos desmereceu Exile…, embora isso possa ser atribuído ao facto de – ao contrário com a maioria da produção dos Stones – não ter sido ele a liderar o processo; terá, contudo, sido ele a encarregar-se de que o disco era acabado e misturado porque, segundo disse, se não fosse ele a tratar-se disso ninguém o faria, já que o resto da entourage era (e passo a citar) “um bando de bêbedos e drogados”.

A primeira fase dos Rolling Stones, o casulo, foi a aprendizagem dos blues tradicionais; a segunda foi o desenvolvimento dos blues brancos enquanto fenómeno popular – aquilo a que hoje chamamos rock’n’roll, com pontes e refrão bem definidos dentro de uma estrutura a que chamamos canção, que mantinha alguma brusquidão e aspereza dos blues, mas transformava o que era música de negros em algo mais apropriado ao palato dos brancos, numa época em que estas divisões ainda existiam. (Também se pode dizer que os Stones acabaram com essas divisões.)

[“Sweet Virginia” em 1972:]

Em 1968 eles estavam a fazer “Jumpin’ Jack Flash” – quando chegou a hora de gravarem Exile on Main St. já haviam sido presos por posse de drogas, atentado ao pudor (diz-se que um dia a polícia encontrou Marianne Faithfull com uma barra de Mars ligeiramente enfiada na vagina e Mick Jagger pronto a provar, mas ela nega que fosse uma barra de Mars), Brian Jones havia morrido e o mesmo acontecera a um fã no concerto de Altamont: os Stones já não eram propriamente nem aprendizes de bluesmen nem uma banda divertida de rock’n’roll, antes uma instituição mitificada pelo seu despautério, o seu despudor, a sua ausência de regras e dignidade, e uma abundância de drogas e depravação que os tornava o maior pesadelo de qualquer pai de adolescente.

Também eram uma máquina autofágica, que produzia êxito após êxito enquanto as relações entre os membros da banda se degradavam à medida que o dinheiro entrava e os escândalos empilhavam e cada um procurava refúgio fosse na heroína ou no álcool ou numa quantidade absurda de mulheres e corrida (Jagger).

Por esta recontextualização percebe-se o mito de Exile on Main St.: nenhuma banda com o êxito dos Stones produziria um disco assim, rasgado, solto, sem laçarotes nem embrulhos geometricamente calculados, visceral, tão espontâneo e gutural que parece mais próximo da origem dos blues do que as mais antigas gravações de blues que conhecemos. Não haveria a segunda fase de Tom Waits sem “I just want to see his face”, que é possivelmente a canção mais esquisita que os Stones escreveram.

Pode-se aventar a hipótese de que a banda queria regressar às origens – ou pelo menos Keith assim o desejaria – mas o resultado final é menos polido do que os blues do qual haviam partido anos antes; Exile on Main St. acabou por ser – em termos metafóricos – o disco que matou os Stones: sim, houve boas canções depois disso, mas nunca mais houve uma banda, inteira, a compor numa casa, numa cave, em diferentes estados de estupefação, a produzir um som único.

[“Rip This Joint”, ao vivo em 1972:]

Exile… arranca com “Rocks Off” e nos seus primeiros segundos define os Stones: há um riff, o ataque à tarola e Jagger grita “Yeah”. Depois “Rocks Off” contorna a via que a levaria a ser uma canção de rock e, muito graças ao piano e aos metais, ganha contornos honky tonk, de banda de beira de estrada perdida nos EUA. Os Primal Scream, os Strokes, todo esse rock vagabundo e janado clássico nasce exatamente aqui – e não admira que este seja o disco preferido de Tom Waits.

“Rocks Off” e “Tumbling Dice” são o mais próximo que há no disco de canções prontas a subir tabelas de vendas – e mesmo assim “Tumbling Dice”, apesar do som cheio (os coros dão-lhe uma riqueza inacreditável), soa mais a uma improvisação da The Band na Pink House do que a um single da maior banda de rock’n’roll do mundo. Mas como resistir ao seu charme? As guitarras ficam ali, como debulhadoras avariadas, a levar tudo à frente, Jagger e o coro regressam e quando a percussão regressa é sempre a subir a partir daí.

Esse tom de jam confere a Exile… uma patine inesperada: nunca sabemos exatamente o que vai acontecer, seja na rockalhada maravilha de “Stop breaking down”, na bluesada de “Shake your hips”, na delicadeza honky tonk (com coros e sax e harmónica e slide) da lindíssima “Sweet Virginia” (que, basicamente, é – juntamente com um par de pratos e um microfone – a base para a carreira de Beck). Em “Sweet Virginia” a voz de Jagger (como aliás no resto do disco) surge meio abafada na mistura, o que por sua vez confere um estranho efeito: é como se Jagger por uma vez parasse de querer parecer cool e estivesse a esforçar-se imenso por se fazer ouvir, como se berrasse, como se tivesse uma entrega danada. As palmas embalam o resto da canção até um lugar onde a depravação e a beleza são equivalentes.

[“All Down The Line”, 1972:]

Os blues, a country, a soul, tudo isto encontrou o seu lugar em Exile on Main St., por entre órgãos Hammond, slide guitars, saxofones, ecos de Nova Orleães, harmónicas, coros – e muito caos. Happy, por exemplo, foi composta por Keith, mal acordou do seu torpo de heroína – e nem um instrumento foi tocado por um perito no mesmo: as bases da canção foram gravadas por quem estava acordado, a bateria por um dos saxofonistas, etc. Esta liberdade torna Exile… único – no duplo de sentido de não existir igual no mundo e de ter sido o último em que os Stones compuseram sem pensar na sua conta bancária.

Os Stones tinham saído de Inglaterra por razões pragmáticas, para fugir aos impostos altos que taxavam quem ganhavam muito. Mas uma vez em França, uma data de garotos endinheirados com demasiado tempo livre deram por si rodeados de álcool, drogas e, como contava Bobby Keys, o saxofonista que tocava o que pusessem à frente, “algumas senhoras debochadas”. O que foi uma decisão monetário tornou-se em êxtase, numa última libertação, a derradeira ida ao bordel antes de casar e assentar.

Exile on Main St. pode ter acabado com os Stones – mas antes reabilitou a fé da humanidade no rock’n’roll enquanto substância que liberta os honestos contribuintes das amarras sociais e os torna mais propensos à festa, à alegria, à pele, a todas as coisas que fazem bem.