O documento Powerpoint estava há mais de uma década guardado num disco externo. Diogo Trigo escreveu-o para um trabalho do Programa Doutoral em Biologia Básica e Aplicada (GABBA), da Universidade do Porto, em 2009. Era sobre um possível adesivo feito com nanomateriais que agia como remendo de neurónios magoados. “Era uma coisa muito básica, com conceitos muito teóricos”, diz o cientista de 36 anos. Apresentou-o, guardou-o e esqueceu-o.

Andou por outros caminhos: primeiro, ainda durante o doutoramento, a trabalhar na área de neurofisiologia na University College London, depois, a fazer pós-doutoramento no grupo de descoberta de novas drogas do King’s College, também em Londres. Chegou à Universidade de Aveiro, onde é atualmente investigador, em 2017. Foi por essa altura, com mais autonomia intelectual, que começou a revisitar documentos antigos, em busca de ideias. E esbarrou no trabalho teórico sobre nanopartículas para reparar neurónios que tinha escrito oito anos antes.

Hoje, o adesivo ou emplastro tem um nome – NanoSpin – e, em torno dessa ideia inicial muito básica, o investigador desenvolveu um projeto premiado que aposta na libertação de medicamentos mediada por nanopartículas para reparar as lesões na espinal medula. Já foi financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT) e recebeu este ano uma nova ajuda, desta vez da Fundação “la Caixa”. Mas “a ideia não é a mesma que em 2009”, faz questão de frisar. Porque nesse aspeto a ciência é como um processo artístico: as ideias levam tempo a ser maturadas. “Quando é lançada uma música na qual o artista trabalhou durante anos, é claro que há uma grande diferença entre a maquete original e a versão final”, exemplifica o investigador.

“O desafio não é ter a ideia, mas conseguir desenvolvê-la para que possa ser aplicada”, diz Diogo Trigo. É nisso que trabalha neste momento

Além disso, não basta a ideia ou conceito. “Qualquer criança diz que, se temos um ferimento, devemos pôr um penso por cima para o tratar”, brinca. “O desafio não é ter a ideia, é conseguir desenvolvê-la para que possa ser aplicada.” É isso que Diogo Trigo está a está a fazer agora: a encontrar uma forma de, no futuro, administrar nanopartículas carregadas com medicamentos pró-regenerativos às pessoas que sofrem lesões graves na medula espinal .

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Estima-se que, todos os anos, entre 250 e 500 mil pessoas sofram uma lesão na espinal medula (LEM) no mundo inteiro, a maioria em consequência de acidentes de viação. Os sintomas são muito diversos, dependendo da gravidade da lesão, e incluem a perda das funções motoras, do controlo dos esfíncteres e da função reprodutora, além de dor crónica.

Quando há uma lesão na espinal medula – “que, em traços simplistas, funciona como uma rede de cabos eléctricos” – os “cabos” ficam quebrados. A recuperação destas lesões está relacionada com o grau de regeneração dos axónios – os prolongamentos dos neurónios, responsáveis pela condução dos impulsos elétricos até aos músculos e outros órgãos. O problema é que a sua capacidade de regeneração é muito limitada.

A recuperação de lesões na medula está relacionada com a regeneração dos axónios – os prolongamentos dos neurónios, responsáveis pela condução dos impulsos elétricos até aos músculos e outros órgãos

Os neurónios são células muito especializadas. Não há como eles para fazer a condução do impulso nervoso, mas a realidade é que, ao contrário da maioria das outras células, não sabem fazer mais nada.

Os neurónios são muito pouco autónomos, uma espécie de prima donas que precisam de suporte de outras células para tudo.”

Assim, quando sofrem um trauma, são outras células, as células gliais, que que vão formar a cicatriz. Mas esse tecido não é bom. “É como deitar cola em cima de uma coisa estragada para tentar não estragar mais. Mas como a cicatriz é um tecido vitrificado, isso também impede fisicamente a regeneração.”

Então, após um trauma, há dois problemas a superar: a ausência de fatores pró-regeneração próprios das células e a presença de fatores anti-regeneração, como a cicatriz glial que se forma. O NanoSpin vai intervir nas duas frentes ao libertar um fármaco que promove o crescimento de neurónios ao mesmo tempo que impede a formação da cicatriz.

O plano é que o NanoSpin possa ser colocado logo após o trauma. “Sabemos que cerca de um terço dos pacientes que sofrem uma lesão tem de ser operado logo após o transporte para o hospital, para fazer a descompressão do inchaço que se cria”, explica o investigador. Estes são habitualmente os casos mais graves e é para eles que o tratamento está a ser pensado. O objetivo é que, durante esta cirurgia de descompressão, o neurocirurgião possa implantar o dispositivo à volta da zona da lesão, onde ficará a libertar localmente os fármacos regenerativos durante duas a três semanas, até se degradar sozinho.

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O resultado desejado é melhorar a qualidade de vida e a funcionalidade dos pacientes. “Há graus muito diferentes de gravidade, mesmo entre os cerca de 33% de pacientes que são submetidos a cirurgia, mas a ideia é que todos os casos que sejam submetidos à cirurgia aguda possam ser melhorados.” Concretizando um pouco mais: “quem ficaria acamado, se calhar não fica, e poderá andar de cadeira de rodas; quem perderia a capacidade de andar, poderá andar com andarilho; quem perderia o controlo da função excretora, conseguirá controlá-la.” A expectativa é também diminuir a mortalidade, o tempo de internamento hospitalar e o número de anos com incapacidade que impossibilite o trabalho.

Atualmente, o cientista está a trabalhar ainda na validação pré-clínica desta tecnologia, fazendo testes em células neuronais, bem como ensaios de biocompatibilidade e toxicidade com vários materiais inertes e biodegradáveis. Ao mesmo tempo, estão a investir no planeamento regulatório para que, no futuro, a aprovação pelas entidades reguladoras seja mais fácil e a passagem ao mercado mais rápida. “É diferente de fazer uma investigação básica, só com o intuito de publicação de resultados. Estamos muito focados na translação para a clínica, já desde o início, e a trabalhar com o gabinete de transferência de tecnologia da Universidade, para assegurar a futura entrada no mercado”, explica o cientista.

Se tudo correr bem com o NanoSpin, “quem ficaria acamado, se calhar não fica, e poderá andar de cadeira de rodas; quem perderia a capacidade de andar, poderá fazê-lo com andarilho”

Para esse efeito, os financiamentos que têm sido atribuídos ao projeto NanoSpin têm contemplado a formação de Diogo Trigo em áreas como empreendedorismo, funcionamento de ensaios clínicos e proteção de propriedade intelectual. É desafiante para um cientista ter de sair da bancada para pensar em questões regulatórias ou de mercado, mas o investigador garante que lhe isso abriu os horizontes em temas sobre os quais não tinha conhecimento algum.

E, se tudo correr bem, todo este planeamento conseguirá antecipar em dois ou três anos a entrada da tecnologia no mercado, que está planeada para daqui a uma década ou 15 anos. “O que estamos a desenvolver não é uma tecnologia que vá dar solução a nenhum paciente de hoje e também não dá resposta a doentes crónicos. Vai ser uma solução – se tudo correr bem – para os pacientes do futuro, que ainda não tiveram nenhum acidente e que, se calhar, ainda nem nasceram.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Nanoparticle-mediatedControlledDrugRelease for SpinalCordInjury, liderado por Diogo Trigo, da Universidade de Aveiro, foi um dos 17 selecionados (três em Portugal) – entre 97 candidaturas internacionais – para financiamento (setenta mil euros) pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do CaixaResearchValidate, um programa que promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2023 deverão abrir em novembro.