Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Há quatro dias, quando Portugal “atropelou” a Suíça, Cristiano Ronaldo, que entrara no decorrer do segundo tempo e tinha visto um golo anulado por fora de jogo, foi até à zona do meio-campo, chamou todos os seus companheiros para irem agradecer à bancada onde estava concentrada a maioria dos adeptos portugueses e acenou em forma de despedida, mas aquilo que mais ficou a nível de imprensa (sobretudo internacional) foi o facto de ser o primeiro a abandonar o relvado rumo ao balneário. Agora, após a derrota frente a Marrocos que afastou Portugal do Campeonato do Mundo, teve os cumprimentos de dois adversários quase como se tivessem esperado por ali por aquele momento e viu um adepto que invadiu o campo à sua procura acabar por ser barrado por seguranças mas aquilo que mais ficou foi o facto de ter saído lavado em lágrimas.

“Um mito. Uma lenda. Uma máquina. Obrigado, Cristiano!”, escreveu pouco depois a FIFA através das suas redes sociais, numa homenagem a soar a despedida. Agora já não era o capitão que teve uma má reação após a substituição com a Coreia do Sul ou o indiscutível que passou a começar os encontros no banco. Era, apenas e só, Ronaldo. Aquilo que mais queria antes do Mundial além de terminar com um título, aquilo que sentiu durante o Mundial, aquilo que não terá depois do Mundial. As lágrimas, aquelas lágrimas, não se resumiam apenas à derrota num jogo que valeu a eliminação. Não eram de um dia. Eram de sete meses.

Ronaldo ainda conseguiu terminar a última temporada com alguns golos importantes mas insuficientes para que o Manchester United conseguisse segurar uma das quatro vagas da Champions. No entanto, a marca da perda do filho estava lá. Esteve sempre lá. E a decisão que tomou ainda na pré-temporada com os red devils de falhar a digressão pela Ásia, a que se juntou depois o pedido para sair e a tentativa de encontrar clube em várias ligas sem sucesso, começou a marcar aquele que seria o período menos positivo no plano desportivo. O Mundial surgia como oportunidade de ouro para a redenção; ao invés, ainda adensou esse cenário.

O número 7 chegava à concentração da Seleção com um total de 16 jogos entre Premier League e Liga Europa (que nunca tinha jogado) mas apenas 1.050 minutos e três golos com mais duas assistências. Até mais do que isso, chegava com o peso de uma explosiva entrevista a Piers Morgan que dinamitou tudo o que eram as suas bases até aí: o treinador Erik ten Hag, os proprietários do clube, os companheiros de equipa, alguns comentadores. Basicamente, foi tudo à frente sabendo que era uma bomba demasiado grande para que não rebentasse de vez com a paciência e o contrato que tinha com o Manchester United. Tão ou mais importante, falou do acontecimento traumático que teve com a perda de um dos filhos gémeos no parto, em abril. E era evidente a marca ainda não reparada do que acontecera sem que sentisse o apoio que desejava do clube.

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Chegado ao Qatar, depois de ter falhado o último particular com a Nigéria em Alvalade, Ronaldo deparava-se com uma espécie de contexto perfeito para ressurgir das cinzas e poder voltar aos tempos que o definiram ao longo de duas décadas: Portugal era apontado como um dos candidatos ao título, havia uma autêntica onda de milhares de adeptos com a camisola 7 dos mais variados países que às vezes pareciam ser mais da equipa de Ronaldo do que propriamente da Seleção, os estádios estavam cheios para ver o jogador cinco vezes Bola de Ouro. Foi isso que se sentiu no Estádio 974 onde ganhou um penálti que converteu na vitória por 3-2 frente ao Gana. Foi isso que se sentiu no Estádio Lusail onde não marcou no triunfo por 2-0 com o Uruguai. O conjunto nacional começava bem, o capitão voltava a recuperar o sorriso de esperança.

Depois, e em pouco mais de uma semana, tudo mudou. E mudou já depois dessa notícia que dava conta da rescisão de contrato por mútuo acordo com o Manchester United e de outra que colocava o avançado no Al Nassr da Arábia Saudita no maior contrato de sempre de um desportista à razão de 200 milhões de euros por época. Quando se pensava que o número 7 poderia ficar de fora da partida com a Coreia do Sul, quando só muito dificilmente o primeiro lugar fugiria, Ronaldo foi mesmo titular, fez o pior de todos os jogos neste Mundial (e um dos piores da época) e teve aquele caso com Fernando Santos ao discordar de uma forma percetível com o selecionador na altura da substituição. Fosse por uma questão disciplinar para dar o exemplo ao restante grupo, fosse por uma opção meramente técnica, o avançado acabou mesmo por sair.

Já com a família no Qatar, o que dava para aproveitar nas folgas que eram concedidas após as partidas, a viragem de paradigma na Seleção com o abdicar da figura mais consagrada das opções iniciais acabou por ser uma mudança também para o jogador a nível de Mundial. A tal alegria desapareceu, os comentários de familiares (e de Piers Morgan) nas redes sociais foram-se multiplicando, o número de minutos em que passou a ser utilizado baixou de forma drástica até à triste realidade vivida este sábado, com quase uma parte inteira em campo sem conseguir mais uma vez marcar e a sair desolado para o balneário primeiro do que os outros. Passagens pela zona mista ou comentários nunca mais, aumento de forma aberta entre os membros da família das críticas a Fernando Santos sim. E esse foi um dos pontos que marcou este dia.

O papel de Ronaldo na Seleção foi-se perdendo. Ninguém coloca em causa o legado que deixou no futebol nos últimos 20 anos e todos admitem que dominou o mundo do futebol com outro extraterrestre chamado Lionel Messi mas o peso no balneário desvaneceu-se de forma natural perante uma nova era que se foi criando com outros intérpretes de uma nova geração. Quando parecia ter o contexto para uma despedida de Campeonatos do Mundo como tanto sonhava, acabou por sair como uma das deceções nacionais. E, mais até do que isso, com uma perceção crescente de que o lado da razão no meio da tormenta era o de Santos.

Agora, depois de ter um curto de período de férias com a família, Ronaldo terá pela frente um conjunto de decisões que irão marcar o que ainda sobra da sua carreira. A primeira, claro está, é fácil de entender: não tem clube, as portas dos principais conjuntos europeus continuam sem qualquer abertura, há a possibilidade de rumar à Arábia Saudita. A segunda, quase em paralelo, tem a ver com a continuidade ou não na Seleção após ter conhecido um estado que nunca tivera por Portugal. A terceira, a mais global de todas mas a que estará mais longe, de acordo com a entrevista a Piers Morgan, passa pelo dia em que sentir que não tem mais condições para continuar jogar. No entanto, e no meio de toda esta tormenta, fica clara a tradução da imagem de CR7 a chorar no último Mundial – foi mais uma explosão de sentimentos pela derrota.