A coordenadora nacional da Estratégia contra a Pobreza acredita que a redução do IVA nos bens essenciais teria “muitas vantagens” e “benefícios imediatos” para as famílias e teme que 2023 traga um aumento do número de pobres. Sandra Araújo defende o reforço do apoio social às pessoas mais vulneráveis, capacitando os serviços públicos e melhorando a qualidade do serviço prestado.

Em entrevista à agência Lusa, cerca de dois meses depois de ter assumido a coordenação da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP) 2021-2030, Sandra Araújo entende que o combate à pobreza não se faz apenas com transferências diretas de dinheiro, mas admitiu que uma medida como a que o Governo espanhol implementou, em que eliminou o IVA dos alimentos básicos, teria “muitas vantagens”.

“Não sei se o Governo vai ou não ponderar tomar essa medida em Portugal, mas acho que haveria naturalmente benefícios imediatos para todas as famílias portuguesas e não só para aquelas para quem esta estratégia se dirige mais em particular”, destaca.

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Sublinha que a ENCP tem “um foco muito particular naqueles que já estão em situação de pobreza”, em particular quem está de forma continuada, apontando que estão também previstas “ações de natureza preventiva” para impedir ou evitar que famílias que não estão em situação de pobreza possam vir a estar.

“Essa medida (de redução do IVA) seria, sem dúvida, bastante mais generosa e iria ser transversal a toda a sociedade portuguesa”, defende.

Lembra, por outro lado, que está inscrito na Estratégia um compromisso de aumento do salário mínimo nacional que até 2026 chegará aos 900 euros e destacou que desde 2015 já subiu cerca de 40%.

Referiu igualmente a atualização de 8,4% do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), com reflexo em todas as prestações sociais, o que, na sua opinião, demonstra “uma sensibilidade importante deste Governo” com as famílias mais vulneráveis e com a “adequação das medidas de proteção social”.

Questionada sobre uma possível revisão do Rendimento Social de Inserção (RSI), como medida de combate à pobreza extrema, Sandra Araújo recorda que está prevista na Estratégia, reforçando a componente monetária, mas também promovendo a inclusão social dos beneficiários.

“Existe esta preocupação de reafirmação do RSI como uma medida capaz de assegurar consistência num conjunto de medidas sociais que estão atualmente disponíveis de apoio às famílias mais vulneráveis”, afirma, acrescentando esperar vir a ter “alguma capacidade de intervenção”.

Defende que a componente de inclusão social “é muitíssimo importante” para a integração plena das pessoas mais vulneráveis na sociedade, apontando que seria necessário aumentar os recursos humanos afetos a esta dimensão.

Pobreza pode aumentar em 2023

Sandra Araújo receia que 2023 traga um aumento do número de pobres, mas disse acreditar que a estratégia tem as medidas certas, com metas possíveis de concretizar, apesar de “muitíssimo ambiciosas”.

Após mais de 30 anos de trabalho na Rede Europeia Anti-Pobreza Portugal, Sandra Araújo mostra-se positiva e confiante sobre a concretização das metas da Estratégia Nacional contra a Pobreza (ENCP), nomeadamente retirar desta condição 660 mil pessoas nos próximos sete anos.

“Acredito, sinceramente, que há condições para concretizarmos as metas, apesar de considerar que elas são muitíssimo ambiciosas”, afirmou, em entrevista à agência Lusa.

Disse mesmo que se não acreditasse na viabilidade da estratégia e da possibilidade de concretização das suas metas não teria aceitado o desafio, salientando que a conjuntura atual é “bem diferente” daquela em que foi aprovada a ENCP 2021-2030.

A propósito, apontou para o impacto negativo da nova crise provocada pela guerra na Ucrânia, à qual se soma a crise inflacionária, com um “impacto muitíssimo forte nas condições de vida de todos os portugueses, em particular naqueles que já estavam em situação de pobreza e exclusão social”.

“Há sempre esse receio (de aumento do número de pobres). Vivemos tempos muito incertos, é sempre muito difícil fazer previsões”, apontou.

Segundo Sandra Araújo, em 2020, antes da crise pandémica provocada pela Covid-19, o país estava a “fazer um percurso muito positivo”, que depois sofreu “um recuo muito relevante e forte em grande parte dos indicadores” com a pandemia provocada pela Covid-19.

Depois, em 2022, nova crise com a guerra na Europa, o disparar da inflação, aumento das taxas de juro e estagnação da média dos ordenados, o que voltou a trazer “tempos de muitas incertezas”.

“Evidente que há esse temor, essa ansiedade, relacionada com esses indicadores, mas também, ao mesmo tempo, há esperança e o importante é transmitir essa esperança porque esta estratégia traz-nos essa luz e essa esperança de compromisso, diálogo e reforço de algumas medidas que estão integradas e sabemos que é o caminho que temos de fazer porque sabemos que vai dar frutos”, defendeu a responsável.

Admitiu que ao risco das pessoas normalmente mais expostas a vulnerabilidades, junta-se agora o risco em relação aos que “eventualmente estariam acima do limiar da pobreza”, mas que agora, face ao agravar do custo médio de vida, “ficam presos nesta armadilha da pobreza”.

Tem consciência que “o tempo é escasso”, tendo em conta que a estratégia foi desenhada para até 2030.

“Realmente são sete anos e eu tenho quase 30 anos de combate à pobreza na sociedade civil. Mas se olharmos para trás e para a evolução dos indicadores, nunca tivemos uma redução tão expressiva e tão significativa em 30 anos”, ressalvou.

Ainda assim, e apesar de dizer que “é um sonho” e “uma utopia”, sublinha que é uma utopia na qual quer acreditar.

Disse acreditar que a atual estratégia tem “medidas estruturantes” e que há trabalho a fazer em matéria de trabalho social, “nomeadamente na garantia de sistemas de proteção social” contra a pobreza e a exclusão social.

Destacou as questões do trabalho como “extremamente relevantes”, classificando como “completamente inaceitável” a elevada taxa de trabalhadores pobres que existe no país.

Entende, por isso, que é obrigação de todos, enquanto sociedade e enquanto país, enfrentar este problema e contribuir para que seja resolvido. Apontou ainda que esta estratégia irá obrigar as várias áreas governativas a dialogar, destacando igualmente que todas as metas vão estar em constante escrutínio.

Sobre a necessidade de uma possível reavaliação das metas, à luz da conjuntura atual, Sandra Araújo disse que isso está previsto acontecer no final de 2025.

Combate à pobreza precisa de melhores serviços e de mais proximidade

A coordenadora defende também o reforço do apoio social às pessoas mais vulneráveis, capacitando os serviços públicos e melhorando a qualidade do serviço prestado, mas também com acompanhamento de maior proximidade.

Sandra Araújo aponta algumas das áreas de intervenção que considera prioritárias, desde logo “a necessidade de reforçar o apoio e intervenção social a famílias em situação de vulnerabilidade”.

“Passa desde logo por tornar a informação acessível a uma dimensão muito importante, (…) orientando as próprias pessoas que estão em situação de necessidade e que recorrem aos serviços para obtenção de respostas”, afirmou, admitindo que tem também de ser tido em consideração a falta de literacia e a “dificuldade” que os serviços de atendimento têm “muitas vezes” em prestar “uma informação importante, atual e relevante”.

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Na opinião de Sandra Araújo, importa melhorar a qualidade do atendimento dos serviços públicos, “orientando as pessoas que estão em situação de necessidade e que recorrem aos serviços para obtenção de respostas”.

“Estou convencida que essa dimensão de melhoria do atendimento social e a melhoria do atendimento dos serviços públicos pode ser um eixo muito, muito importante que deverá naturalmente ser reforçado”, apontou.

Defendeu, para isso, a capacitação de “todos os operadores” para que exista de facto “um sistema e um fluxo de informação que possa ser prestado a quem precisa e que recorre aos serviços, dando orientações muito concretas para responder às suas necessidades”.

Noutra área, a responsável entende que seria igualmente importante investir num acompanhamento de proximidade, naquilo que chama de “dimensão de restituir dignidade”, apontando que existe “um certo sentimento”, por parte de alguns cidadãos, “de que não são tratados com a devida dignidade, como sujeitos de direitos”.

“Isto é transversal e atravessa todas as políticas públicas, mas também o próprio setor social e solidário e, portanto, nós temos que investir, qualificar e capacitar essa área e os serviços de proximidade”, disse Sandra Araújo.

Referiu como outro desafio o aumento da esperança média de vida e o consequente envelhecimento da população, uma realidade conhecida, “mas que de repente se tornou bastante mais preponderante”, sublinhando que é preciso “olhar com muita seriedade para o envelhecimento demográfico do país”, para a velocidade a que está a acontecer e para o desequilíbrios e desafios que isso coloca do ponto de vista das respostas sociais.

Acredita também ser “muitíssimo importante” olhar para as atuais assimetrias territoriais, cada vez mais evidenciadas, com grandes concentrações populacionais nas áreas metropolitanas, enquanto “o resto do país está deserto”.

Nesse sentido, defende a “necessidade de olhar para o território e aumentar a coesão territorial”, promovendo o desenvolvimento local e criando medidas de fixação das populações nas áreas de menor densidade, criando “uma maior convergência”.