791kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Franco Berardi: "Fim da História? Está mais viva do que nunca"

Este artigo tem mais de 1 ano

O filósofo e ensaísta Franco Berardi regressa a Lisboa para uma conferência sobre desejo, depressão e deserção. Palavras-chave, diz-nos, para se compreender a Europa que vive uma "crise de valores".

Nos últimos anos, o autor tem-se especializado na análise de psicopatologias que, diz, são um efeito do capitalismo e da presença quotidiana da tecnologia nas nossas vidas
i

Nos últimos anos, o autor tem-se especializado na análise de psicopatologias que, diz, são um efeito do capitalismo e da presença quotidiana da tecnologia nas nossas vidas

Nos últimos anos, o autor tem-se especializado na análise de psicopatologias que, diz, são um efeito do capitalismo e da presença quotidiana da tecnologia nas nossas vidas

Em 1977, Bolonha era um dos lugares centrais da agitação popular em Itália. Para os que diziam acreditar numa revolução do Estado, a cidade tornava-se epicentro de um mal-estar generalizado que se tinham extremado nos anos anteriores – mesmo com recurso à violência armada. No Reino Unido, nesse mesmo ano, os Sex Pistols lançavam “God Save the Queen”, enfatizando na canção o verso: “No future, no future for me”.

O filósofo Franco Berardi, mais conhecido por “Bifo”, era já nessa época um emergente autor e ativista, nascido precisamente em Bolonha, em 1949. Mesmo agora, em conversa com o Observador, não esquece como a letra do célebre grupo punk ecoava – e continua a ecoar – como sintoma generalizado. Esta terça-feira, 7 de fevereiro, em Lisboa, dá uma conferência no Teatro do Bairro Alto (TBA, 18h30), para falar de “Desejo, Depressão e Deserção”, acompanhado por Ideal Maia, ativista pelo clima.

Nos últimos anos, o autor tem-se especializado na análise de psicopatologias que, diz, são um efeito do capitalismo e da presença quotidiana da tecnologia nas nossas vidas. No aprofundar dessa análise, acrescenta o conceito de deserção, ou seja, de desmobilização. Berardi sustenta que a pandemia e a guerra na Ucrânia vieram acelerar os processos de precarização, onde a ideia de desejo caiu por terra. Sem desejo, não há motivação para pensar no futuro – é uma questão de sobrevivência. No meio da depressão, diz, precisarmos de um escape, mas não como fuga. “Estamos à procura de novas formas de vida e de novos valores. A deserção, como a entendo, não é um ato solitário, mas sim algo que temos de viver de uma forma coletiva. Não é uma acordar no deserto, é acordar sim num lugar onde podemos reconstruir e criar novas formas de estar”, sintetiza.

Não tivesse acontecido a pandemia e a guerra na Ucrânia, estaríamos a olhar para o futuro de forma diferente daquela que defende?
Comecemos pela pandemia. Podemos dizer que se tratou de algo completamente novo, inesperado e brutal. Tudo isso é verdade e não é. A pandemia não criou um novo mundo. Veio acelerar alguns processos que já estavam escondidos no dia-a-dia. Primeiro, a relação com a tecnologia. Não é novidade, foi acontecendo a diferentes velocidades nos últimos 30 anos, sendo que agora, sobretudo no que toca à comunicação e à informação, explodiu, mas não é algo de novo. Quanto à precariedade, é notório que a pandemia também a acelerou, mas o processo já existia. Diria que o que mudou foi a agressividade e a relação com a depressão. A pandemia foi, de facto, um laboratório para a depressão. Criou a perceção de que vivemos num mundo onde não existe espaço para nós. Por último, a nossa relação com o meio ambiente. Temo-nos preparado para isso nos últimos cem anos mas, de repente, o vírus tornou-se um sinal – como uma espécie de anúncio – de que ultrapassámos o limite. Tal e qual o que vimos no desastre nuclear de Fukushima, em 2011.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A isso junta-se também a guerra.
Tendo a pensar que os extremismos, o nacionalismo e a guerra são, em geral, resultado daquilo a que podemos chamar uma “depressão em massa”, uma humilhação massificada. Se olharmos para o que sucedeu com o Tratado de Versalhes, depois da I Guerra Mundial, em que se faz o aviso para não se humilhar os alemães, porque se podiam tornar novamente uma ameaça, a verdade é que os franceses e os britânicos fizeram o que queriam sem se importar realmente. É assim que chegamos a Hitler. O mesmo sucede agora. Acredito que Putin é o efeito de uma humilhação longa e dura para com a população russa. E a pandemia criou um estado de alienação, que se junta a uma acumulação de frustração e depressão que agora conheceu a força de uma explosão. Nesse sentido, vejo a guerra como uma anfetamina para um cérebro deprimido. Mas é a pior coisa que pode acontecer.

No seu trabalho fala de um iluminismo obscuro, em que o futuro é um horizonte que amedronta, e fala de uma geração permanentemente precária. Realismo ou pessimismo exacerbado?
É interessante pensar sobre estes conceitos por comparação. Em 2018, Henry Kissinger escreveu, ou alguém escreveu por ele, um artigo com o título “How the Enlightenment Ends” na revista The Atlantic. Debruça-se sobre a inteligência artificial [AI] e alega que esta irá destruir o legado do iluminismo. É interessante… embora ele fale de um tema diferente daquele que estamos a falar, tendo a ver ambos os lados desta história. De um lado, esse “iluminismo obscuro” quer dizer que a lei do amor e da razão acabaram, porque a nação está de volta, a raça está de volta, identidade e agressividade identitária estão de volta. Neste sentido, o iluminismo foi cancelado. Ao mesmo, observamos um reverso, em que essa ideia de iluminismo se inscreve na máquina. O que é a AI se não um conjunto de processos de automação mecânica desse legado da razão? Faço esta associação porque já me debrucei no passado sobre este artigo do Kissinger, ao mesmo tempo em que abordo o trabalho do filósofo chinês Yuk Hui, que responde ao artigo, alegando que Kissinger pensa que a AI está a destruir o iluminismo. O tal filósofo diz que ele está errado. Yuk Hui diz que a AI é a plena realização do propósito do iluminismo em si. Portanto, acredito que estamos num período interessante, mas também perigoso, porque testemunhamos em simultâneo o fim do iluminismo corpóreo – do corpo enquanto parte estrutural da democracia e da sociedade. Enfim, do papel e lugar ocupado pelas pessoas. A este nível, a razão é destruída; ao mesmo tempo, assistimos a uma objetificação da razão por meio de máquinas.

E onde ficamos no meio dessa projeção que faz?
Bem, podemos sobreviver apenas como escravos da AI. A história humana está a tornar-se numa espécie de versão caótica e reimpressa de uma velha história.

Mas diferente da visão de Fukuyama do Fim da História?
Diria que essa visão advém da realização plena da razão moderna e do triunfo do neoliberalismo democrático. Essa utopia – que é uma premissa hegeliana clássica – durou dois anos (1989-1991), mas em 1991, quando começa a guerra do Golfo, a utopia da paz e da democracia tornava-se fake e caía por terra. Não compro a teoria, mas tem algo de interessante. Por oposição, fez-nos pensar que a História não está morta, ao contrário da profecia. Fim da História? Está mais viva do que nunca, mas num mau sentido. A guerra, o racismo, a agressividade regressaram. E em simultâneo temos uma espécie de realização frígida da razão na máquina e na tecnologia. Esta simultaneidade é a charada do nosso tempo. O humano ou a máquina, qual irá prevalecer? Não, eles terão de coexistir na pós-história.

GettyImages-913388752

Getty Images

Há uma referência aos Sex Pistols e ao versos da canção “God Save The Queen” que aparecem recorrentemente nos seus livros, uma canção de 1977. Porquê?
Como vemos, a ideia de que não há futuro é antiga. A música tem quase 50 anos. Mas o que é que sucedeu em 1977? Primeiro, é uma espécie de piada, mas é o ano da morte de Charlie Chaplin, e a verdade é que na minha imaginação ele é um símbolo de uma possível gentileza da modernidade, que se esvaziou por completo. É também o ano em que Margaret Thatcher começou a conquista de poder no Reino Unido. Por outro lado, no Leste, na União Soviética, o então líder da KGB, Yuri Andropov, escreve uma carta a Leonid Brejnev na qual diz que o Ocidente está a vencer a batalha da informação e que, em não havendo progresso nesse campo, seria o fim do regime comunista. Estava aqui plasmada a ideia de que a informação seria essencial para ter poder, algo que se iria confirmar e acentuar nas décadas seguintes. Ainda nesse mesmo ano, Steve Jobs e Steve Wozniak [fundadores da Apple] conceberam o primeiro computador pessoal sob o lema democrático de que a informação capacita as pessoas, fortalecendo-as politicamente. São eventos simbólicos, mas é importante perceber que o início do neoliberalismo está ligado a algumas destas transformações – sobretudo no campo da tecnologia – e que a transformação política e económica está conectada a esta mutação. Destruiu a ideia de futuro que existia numa perspetiva humanista. Podíamos ter escolhido outro caminho? São questões puramente teóricas, mas a questão é que vemos onde chegámos e esse legado humanista perdeu-se por completo.

Também foi um ano importante em Itália, com toda a tensão que existiu com os grupos de ação política armada.
É singular, sim, mas acho que não tínhamos total consciência do que estava a suceder. Sentíamos que o legado do movimento dos operários e do socialismo estava a ser menosprezado. Nos anos de 1970, sentimos que estávamos a viver a última oportunidade possível para se mudar o mundo – pelo menos de forma racional e social. Mas a questão que coloco atualmente é se alguma vez esse projeto [socialista] foi realista… talvez a modernidade já tivesse destruído essa possibilidade. Dito isto, parece tudo pessimista, mas no final do dia vejo como há uma geração de pessoas muito jovens que dizem “somos a última geração e vocês estão a matar-nos”. Atualmente, mesmo em termos filosóficos, temos de ser corajosos e chegar ao ponto de nos perguntarmos, a nós mesmos, quais são as nossas possibilidades de sobrevivência.

Em 2019 escreveu que, embora fosse inegável o crescimento do nacionalismo e até mesmo do racismo, o fascismo não estava de volta. Mantém essas palavras, sobretudo olhando para o que se passa hoje na Europa, mesmo em Itália?
Mantenho. Uma coisa é chamar a certos políticos de fascistas, na falta de uma melhor expressão. Mas quando escrevo isso, o que quero dizer é que não estamos a falar do fascismo que existiu com Mussolini. O fascismo histórico foi, essencialmente, um movimento de jovens, agressivos e entusiasmados, mesmo face à pobreza e à humilhação dos países em que viviam. Estes jovens esperavam um futuro de glória, de conquista e vitória, de colonização sobre outros povos. O que vemos atualmente é o reverso: são as gerações mais velhas que têm medo dos imigrantes africanos e asiáticos que vêm para a Europa… estamos velhos, a Europa é um continente velho. Portanto, trata-se de uma espécie de fascismo revertido – não aquele que se baseava numa ideia de futuro e de conquista pela agressão, mas o de uma perceção de medo e da ideia de que estamos a ser invadidos na Europa. O medo e a depressão são as expressões que melhor explicam este fenómeno.

Mais do que palavras como “Nostalgia” e “Melancolia”?
Mais do que melancolia. Diria que há um sentimento feroz e agressivo nas pessoas. A agressividade tornou-se a única resposta que muitas pessoas e até uma certa classe política conhecem.

Mas essa agressividade não usa a nostalgia como ferramenta?
Sim, sem dúvida. É um ponto interessante. Porque ao mesmo tempo há uma certa nostalgia que serve aquilo a que se chama gemeinschaft, ou seja, uma comunidade perdida e que recorre a esta ideia de pátria, enfim, a um conjunto de premissas retóricas datadas. Vemos isso em França, um país cuja identidade é uma construção puramente simbólica, mas existe este medo geral de perda de identidade e de referências culturais. Mas a França sempre foi uma mistura de culturas.

O Franco tem este conceito de “psycho-deflation”, relacionado com a ideia de resignação como forma de resistência. O que significa? É possível resistir admitindo a resignação? Não é contraditório?
Comecei a acreditar que a palavra depressão não era o melhor termo. Quando falo de depressão, penso no Mark Fisher [teórico cultural, filósofo inglês e crítico musical, que morreu em 2017 aos 48 anos], que embora seja meu contemporâneo, em certa medida, representa uma geração que tinha ideais e expectativas sobre a democracia e a prosperidade, mas quando essas expectativas se perderam, o desejo sobre esses ideais caíram por terra. A depressão começa quando o desejo morre. Mas o problema é que essa tal geração perdida nunca teve expectativas ou esperança, portanto, o que perceciono é algo muito mais próximo do conceito de deserção.

Conceito que vai abordar na conferência em Lisboa. Pode explicá-lo melhor?
A deserção acontece quando se retira o desejo. Se não se deseja, não se investe uma energia e motivação psicológica nalguma forma de expectativa. Vejamos este movimento de resignação e de pessoas que deixam de aceitar ir para o seu emprego em troca de salários miseráveis. Chamam-lhe a burst strike. E também esta crença contra a procriação, de não quererem deixar filhos ou uma nova geração ao mundo como ele existe. Temos de pensar novamente no conceito de depressão. Todos os psicólogos dizem que a depressão se está a alastrar por todo o mundo. Um inquérito recente, nos Estados Unidos, diz que 54% da nova geração tem sintomas de depressão clínica. Mas há algo de não muito claro, que tem de ser clarificado.

O Franco defende a deserção, o ato de “desistir perante o inevitável” como forma de produzir “paz, prazer e vida”. Não está a ser demasiado otimista?
É o que penso, de facto. A deserção, como o [filósofo Gilles] Deleuze dizia, é escape, mas não estamos a apenas a escapar. Estamos à procura de novas formas de vida e de novos valores. A deserção, como a entendo, não é um ato solitário, mas sim algo que temos de viver de uma forma coletiva. Não é um acordar no deserto, é acordar num lugar onde podemos reconstruir e criar novas formas de estar. Voltamos à hiper semiotização do desejo.

Esse “desejo” de que fala é o que também alimenta a sexualidade? Ou está a falar de outro tipo de desejo?
Freud fala de sublimação e da forma como o desejo está ligado ao corpo, mas às vezes o nosso desejo pode ser investido em algo mais espiritual. Pessoalmente, não diria “espiritual”, diria antes “semiótico”. O prazer é cada vez mais semiótico e estético.

Muitos teóricos associados à esquerda têm surgido, mas as ideias por mais singulares que sejam, parecem não motivar a mobilização. O ativismo climático pode ser a ignição?
Não tenho uma resposta, mas duas: por um lado, agrada-me a ideia de mobilização e gosto que haja de novo manifestações na rua; por outro, quero acreditar que a desmobilização, ou seja, a deserção é o único caminho possível. É uma contradição? Sim, em certo sentido. Não quero perder, por um lado, a ideia de que a revolução moderna ainda é um conceito vivo, mas ao mesmo tempo, penso e acredito que esse legado está morto. A nível prático, temos de acreditar em ambas as possibilidades. Como filósofo posso ser niilista; como ser social, quero que as lutas sejam possíveis.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora