A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica partilhou esta segunda-feira sete histórias de vítimas de abusos sexuais que denunciaram os seus casos à equipa ao longo do último ano. As histórias foram partilhadas, sem nomes, nem grandes detalhes geográficos, na sessão de apresentação do relatório final e foram contadas, quase sempre em discurso direto, pelos sociólogos Ana Nunes de Almeida e Vasco Ramos. Leia-as aqui.

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“Esse serial killer pedófilo abusou de pelo menos 100″

Homem nascido na década de 70 e filho de operários. Conhece o Padre [X.], na altura com 30 a 40 anos, na igreja paroquial e no agrupamento de escuteiros que frequentava. Foi vítima de exibição de zonas genitais, manipulação de órgãos sexuais, toque de outras zonas erógenas do corpo e/ou beijos nas mesmas zonas, masturbação e sexo oral. Os abusos prolongaram-se com regularidade durante um ano e meio. Dez anos depois dos abusos, contou a um padre amigo a situação, que o encorajou a falar com a Comissão Independente.

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Esse serial killer pedófilo abusou de… pelo menos 100. Mais até, imaginem os anos que ele andou nisto até fugir para vendedor. Abusava. Dizia que eu tinha um órgão muito grande e que o queria vez, mexer, chupar. Horrível. Esse homem de nome Padre X. chegava-se a todos os rapazes escuteiros da zona e naquela época — anos 90.

Quantos terão sido? Do meu agrupamento, embora de reações diferentes, penso que fomos todos sem exceção, pois mais tarde vários entre nós falámos disso, embora cheios de dificuldade. Se eu disse 50 é pouco. Cem é de certeza mais próximo — até porque, depois, o psiquopata foi para outro agrupamento mais perto de Lisboa.

“Mandava-me ir buscar rebuçados quando tivesse maus pensamentos. Um dia consegui 26”

Homem nascido na década de 50 e abusado num seminário do interior do país

“Só aos 21 anos desabafei sobre as coisas que me aconteceram no seminário. A minha família é muito católica. Os meus pais tiveram 11 filhos, sendo que quatro já morreram. Nasci em Lisboa, nesta casa onde não havia nem água, nem luz. Os meus pais viam em mim a vocação para ser padre — era assim nas famílias numerosas. Aos 10 anos vou então para o seminário [X]. Era uma forma de dar menos despesa aos meus pais, que viviam muito aflitos. Era uma aparente vocação.

O padre [B.] era o prefeito da camarata e engraçou comigo. Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me, perguntava-me se eu já pecara. Vivi sempre sobressaltado: tinha medo porque era pecador e ia para o inferno. Mandava-me ir buscar rebuçados de cada vez que tivesse maus pensamentos. Houve um dia que consegui 26 rebuçados.

Quando ia ao seu quarto buscá-los, ele apalpava-me todo e metia a língua toda. Até comecei a pedir para me confessar com outros padres para não ser sempre o mesmo. Só que às tantas todos sabiam dos meus pensamentos e da minha vida. Através de um amigo, chegou aos ouvidos do vice-reitor, que me deu um chapadão e fui expulso por más companhias.

No seminário, as coisas extrapolaram para outras coisas. Relação pedófila. Na Páscoa, chegou o postal a dizer que ia ser expulso — desgosto enorme para os meus pais. Puseram-me a trabalhar, mas não conseguiram. Fui parar a Leiria, a um refúgio para infância desvalida. Eram 20 rapazes órfãos. Estava lá o frei [W.]. Era bem pior, porque era sádico, porco, muito mau.

Não aprendia nada. Tinha modos por ter andado no seminário — e, por isso, no meio daqueles rapazes, era eu quem acompanhava o frei [W.]. Um dia, fui com ele a casa de um benfeitor e, durante a noite, disse-me para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes, deitava-se e adormecia. Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo. Depois dizia: “Agora tens de te ir confessar.” Sentia muita culpabilidade, atolado em pecado. Não contava nada na confissão, sabia lá”.

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“Penso onde andará esse tarado, pois em qualquer sítio fará mal a outros”

Homem nascido na década de 80, abusado numa viagem de finalistas do 2.º ciclo organizada pela escola particular que frequentava, no interior Norte . Tinha então 12 anos e, durante a noite, foi vítima de abuso violento por parte do padre que os acompanhava — o professor de Religião Moral e Católica.

“Sei que não fui o último — pelo menos mais outros dois rapazes do meu quarto. Éramos os mais tímidos, talvez os mais medrosos. Estávamos juntos. Eu fui uma noite, o [F.] outra e o [H.] foi duas vezes — a primeira e a última da viagem.

Tenho vindo a ver o seu trabalho e decidi que era agora. Sei que ele ainda é vivo, mas já não trabalha naquela escola. Mas penso onde andará esse tarado, pois em qualquer sítio ele fará mal a outros. Nunca me esqueço que o meu amigo não aguentou. Numa noite chegou, a meio da noite, e vinha a chorar, a chorar. Estava sentado na cama dele no nosso quarto.

Ele não disse nada e eu também não contei que já tinha sido vítima disso na noite anterior. Então perguntei-lhe se ele tinha medo e ele, a chorar, disse que sim. Eu disse-lhe para ele se deitar na minha cama e assim dormíamos os dois e adormecemos, mas ele demorou tanto, tanto a parar de chorar.

Não sei descrever isto. Foi no verão de 2000, nós estávamos de viagem de turma e estávamos ali sozinhos, longe de casa e dos pais. Não havia nada, nem ninguém a quem contar. Só nos consolámos um ao outro. E desculpem, pois agora estou eu a chorar. Escrevo isto e não sei mais dele.

No final dessa viagem, acabámos a escola, separámo-nos e eu nunca mais o vi. Soube que ele partiu com os pais para a emigração. Sabem o que penso? Onde andará ele? E se isto for com o meu filho? Filho da puta do padre”.

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“Não consigo ter namorados. Tenho medo que queiram fazer coisas para fazerem sentir porca”

Rapariga nascida na primeira década do século XXI e abusada num confessionário. No 7.º ano de escolaridade, com 12 anos, confessava-se com alguma regularidade enquanto andava na catequese. Várias raparigas juntaram-se e contaram à chefe sobre os abusos de que sofriam. A chefe acreditou nos relatos.  

“A chefe disse para não nos irmos confessar mais e que os chefes iam falar com o bispo. Não aconteceu nada. Nada foi feito. Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está. Eu sei que faz o mesmo.

Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja. Não consigo ter namorados porque tenho medo que me perguntem coisas ou que queiram fazer coisas para me fazerem sentir porca.

O padre meteu-me muita vergonha e perguntava coisas como se fosse maluco, arfava e gritava com as raparigas. Ameaçava com o diabo”.

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O padre mostrou-lhe os dentes de uma caveira. Depois os seus

O quarto caso é o de Guillaume, um turista francês nascido na década de 70 que foi abusado na Capela das Relíquias, no interior do país, quando estava em Portugal de férias com os pais e o irmão mais novo. Contactou a Comissão e foi entrevistado por Zoom num sábado de manhã. A entrevista foi interrompida a meio porque Guillaume entrou num choro compulsivo. Ana Nunes de Almeida, socióloga da Comissão, contou esta história em discurso indireto.

Tinha então 16 anos e, como muitos turistas, visitava com os pais a capela na igreja. Ao saírem, dirigindo-se para a porta, viu alguém que identificou como um padre a chamá-lo com a mão. Tivera uma educação católica e, para ele, os padres eram pessoas em quem se podia confiar, sério. O padre tinha uns 60 anos. Levou-o para o fundo da igreja e mostrou-lhe uma Virgem, cujo olhar parecia acompanhar o seu. Achou mágico.

Depois, levou-o para a capela — sempre a falar português e com gestos — para lhe mostrar outras coisas. Só os dois. Mostra-lhe os dentes de uma caveira e depois os do próprio padre. O pároco começa a acariciar-se nas calças, sempre a olhar para Guillaume, que nota que o padre tem uma ereção. “Não me sinto muito bem, alguma coisa não está bem”, terá dito o rapaz em francês.

Guillaume dá-se então conta de que está sozinho com o padre, que se coloca atrás de si. A um dado momento, surge um outro homem que interpela o padre. Este começa subitamente a falar em francês e pergunta a Guillaume se o pai estava com ele. Começa a enervar-se e repele-o, ordenando-lhe que saia.

Guillaume sai da capela, entra na igreja completamente vazia e encontra a porta fechada à chave. Fica aterrorizado. Alguém por trás de si abre então a porta e fecha-a de novo à chave. Encontra no exterior os pais perturbadíssimos, preocupados com a sua ausência e diz-lhes que esteve com um padre. “Ele fez-me umas coisas”, disse Guillaume. A mãe desvalorizou e ralhou-lhe: “Que mania tens de fugir. Assim ficas a saber que não deves afastar-te dos pais”.

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“Estava ele agora no chão como um animal e o padre por trás”

A vítima é um homem nascido na década de 40 que foi abusado numa pequena paróquia no norte rural. É um testemunho indireto, prestado pela irmã. O padre deveria ter cerca de 40 anos e visitava a casa da família depois da morte do pai, para dar apoio à mãe. Não esteve muito tempo na paróquia. 

“O meu irmão faleceu agora. Ora, eu penso que ele nunca contou nada do que eu vi — e o que eu vi não foi bonito. Não posso eu ir para o outro mundo, falecendo a carregar comigo este segredo.

Uma vez, na casita, eu estranhei. Quando fui lá espreitar, estava o meu irmão, coitadinho. Ele era muito bonito e perfeito, branquinho de pele. Estava ele despido, de calças e roupa de baixo, e o padre assim meio que no chão a por o sexo dele na boca. Nunca tal tinha visto na vida. Dantes, essas coisas não se viam.

Parecia tudo a passar muito rápido, pois fugi com o olhar. E quando voltei a olhar, estava o meu irmãozito — coitadito dele, o que ele sofreu. Sei lá eu o que aquela alma deve ter sofrido. Estava ele agora no chão como um animal e ele, o padre, por trás a enfiar-se nele. E ele aflito, de lágrimas de chorar.

Peço desculpa, já não consigo contar mais. Espero que chegue para saberem que foi tudo verdade. Ele [o irmão] detestava padres, tanto que disse que, quando morresse, não havia de querer nenhum. Que o deixassem ir em paz. Assim foi, quando faleceu agora há pouco tempo”.

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“As palavras suaves do padre, as festas na mão, na cara, nas costas e, a seguir, dentro das minhas cuecas”

História de abuso sexual de meninas num colégio de freiras contado por uma mulher nascida nos anos 60, abusada na preparação para a Primeira Comunhão.

“Quando nos estávamos a preparar para a Primeira Comunhão, na disciplina de Religião e Moral, a nossa turma de 28 alunas dividiu-se em grupos de 10. O meu grupo foi para a capela, onde ficámos sentadas nos bancos à espera. [Havia] um arco à frente e, por trás desse arco, do lado esquerdo, o confessionário escondido.

À medida que duas, três ou quatro colegas voltavam para os seus lugares, vinham coradas e nervosas — para mim, estranhas. Quando chegou a minha vez, percebi porquê: as palavras suaves do padre, as festas na mão, na cara, nas costas e, a seguir, dentro das minhas cuecas. E sempre com palavras suaves.

Senti-me mal. Aquilo não era normal. Era esquisito, falso e desconfortável. Comentei não me lembro com quem no meu grupo de colegas e passado algum tempo, talvez duas horas, não tenho bem a noção, a madre chamou-me ao quadro e, diante da turma, diz que eu sou uma mentirosa, pecadora; e que devia ser castigada.

Mandou-me ir à cozinha buscar uma colher de pimenta em pó, com a nota de que não deixasse cair nem um bocadinho. Cheguei à aula com a colher cheia. Fez-me engolir tudo de uma vez diante da turma inteira, porque era uma pecadora e mentirosa que tinha de ser castigada em público. Ainda sinto a sensação de quase morrer asfixiada com a pimenta na garganta, nariz, pulmões, olhos e ouvidos. Senti-me violentada pela segunda vez no mesmo dia”.

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“Sabia que era algo de mau, que não queria, que não devia acontecer”

A vítima é uma mulher nascida na década de 80 abusada nos espaços privativos do padre. O pároco, com 50 a 60 anos na altura da prática dos abusos, era o diretor do coro numa aldeia muito pequena. Era também uma pessoa da confiança da mãe e catequista na paróquia. 

“Não me lembro do princípio, nem do fim. Sei que frequentava o 1.º ano do ciclo e pertencia ao coro. A casa ficava ao fim de uma rua escondida, onde não havia ninguém. Ele ia buscar-me a casa porque eu cantava e havia os ensaios do coro que ele dirigia. Era essa a desculpa.

Depois, íamos para a sua casa. Durante mais ou menos três horas via televisão, lanchava e depois, sentada no sofá, começava a tocar-me. Nunca foi penetração — só uma vez encostou o pénis ao meu corpo. Despia-me, mas não totalmente. Baixava as cuecas, mexia-me e masturbava-me.

Não me lembro como terminou. Mas talvez o facto de eu ter ido estudar para outra escola para fora da aldeia tenha sido a causa. Não me lembro do último dia. A última imagem de que me lembro é de eu própria a masturbar-me.

Até ter contado, e agora a fazer psicoterapia, percebo o sentimento de culpa que senti e que me impediu de o fazer. Sentia que o que me acontecia era por minha culpa e que era errado. Sabia que era algo de mau, que não queria, que não devia acontecer. Mas não me lembro de ser ameaçada. Sentia-me culpada. O padre amigo a quem contei, em 2016, aconselhou-me a ligar-vos. Já na altura do caso Casa Pia congelava quando ouvia as notícias”.