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Foram quase duas horas de discurso, quase o dobro do que tinha sido inicialmente avançado pelo porta-voz do Kremlin, e para quem seguiu a longa intervenção de Vladimir Putin na manhã desta terça-feira em Moscovo o discurso foi quase uma metáfora para a própria guerra lançada pela Rússia contra a Ucrânia em fevereiro do ano passado: sem fim à vista.

No discurso do estado da Nação, perante os membros das duas câmaras do Parlamento russo, os ministros do governo e múltiplos chefes militares, Vladimir Putin insistiu nos argumentos que, segundo a sua visão, justificaram a invasão da Ucrânia: a suposta necessidade de proteger o povo ucraniano dos “neonazis ucranianos” e a alegação de que foram os Estados Unidos e o Ocidente que desencadearam a guerra por encherem o “planeta” com “bases americanas”.

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O Presidente russo também dedicou uma grande parte do discurso às questões internas, procurando pacificar os russos no que toca à economia do país e garantindo não só que o desemprego está em “mínimo histórico” como, apesar das sanções aplicadas pelo Ocidente, a economia russa está a prosperar. Ainda assim, Putin deixou um apelo aos empresários russos afetados pelas sanções para que regressem à “pátria” e invistam no país.

Putin guardou, para o final do discurso, a parte mais dura da intervenção: o anúncio de que a Rússia vai suspender a sua participação no acordo nuclear New START, assinado em 2010, que previa a redução em cerca de metade das armas nucleares estratégicas e que era o último grande acordo nuclear entre Rússia e EUA que ainda se mantinha de pé. Nessa parte do discurso, Putin deixou também avisos ao Ocidente: a Rússia está preparada para testar armas nucleares.

O longo discurso de Putin acontece apenas três dias antes de se completar um ano desde a invasão russa da Ucrânia — e exatamente um ano depois de um outro discurso, pejado de revisionismo histórico, com que o Presidente russo abriu, em 21 de fevereiro de 2022, a porta à guerra na Ucrânia.

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A culpa da guerra? “Todo o planeta está cheio de bases americanas”

Vladimir Putin arrancou o discurso evocando o início do conflito com a Ucrânia há um ano — e reiterando os vários argumentos que, ao longo do último ano, foi repetindo para justificar a invasão da Ucrânia.

Sublinhando que a Rússia e o mundo vivem um “tempo complicado, diria mesmo fundamental”, marcado por “grandes mudanças”, Putin destacou que este momento vai determinar o destino da história, segundo a tradução que foi feita na SIC Notícias pelo histórico jornalista José Milhazes, antigo correspondente na Rússia. “Cada um de nós tem uma grande e pesada responsabilidade.”

“Há um ano atrás, nós entrámos nos nossos territórios históricos para travar os neonazis ucranianos e começámos uma operação especial”, disse Vladimir Putin, lembrando o primeiro argumento russo para a invasão da Ucrânia: a suposta necessidade de proteger os ucranianos de um regime alegadamente “nazi“. “Andámos devagar, passo a passo, e consequentemente estamos a resolver esse problema.”

“Desde 2014, o povo [russófono ucraniano] lutou para viver no seu território e falar a sua língua, mas era constantemente atacado pelo regime de Kiev. E esperava que a Rússia viesse ajudar”, disse Putin. “Entretanto, e vocês sabem bem disso, fizemos tudo, realmente tudo, para resolver isto de forma pacífica.

“Realizámos conversações de paz para evitar a guerra. Mas, por trás das nossas costas, estavam a desenhar um cenário completamente diferente”, salientou Putin. Contudo, para o Presidente russo, “era tudo mentira”.

“O Ocidente tentava ganhar tempo, fazia equilibrismo diplomático, o regime de Kiev lançava ataques contra a religião, contra o Donbass, organizando também ataques terroristas. Criaram batalhões nacionalistas, forneciam-lhes armamento“, acrescentou Vladimir Putin, virando-se para os grandes alvos do discurso: os EUA, a NATO, a União Europeia e o “Ocidente” no geral.

“Quero sublinhar particularmente que, ainda antes da operação militar, a Ucrânia já estava a receber sistemas de defesa anti-aérea e outros armamentos”, alegou Putin. “O regime de Kiev poderia até obter armas atómicas. Os Estados Unidos começaram a criar bases militares à volta do nosso país e a preparar o teatro dos futuros combates.

O Presidente russo repetiu várias vezes que Moscovo esteve sempre disponível para “conversações com o Ocidente”, mas que foi Washington a desencadear a guerra. “Defendíamos que a Europa e o mundo precisavam de uma segurança indivisível. E lutámos e trabalhámos para isso. Mas a reação era falsa e houve ações concretas: o alargamento da NATO e a aproximação das fronteiras russas, a instalação de bases perto da Rússia e contingentes de militares”, disse.

“Quero sublinhar, mas toda a gente sabe disto: nenhum país do mundo tem tantas bases militares no estrangeiro como os EUA. Centenas de bases em todo o mundo. Todo o planeta está cheio de bases americanas”, afirmou Vladimir Putin.

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Mas o Presidente russo foi mais longe e alegou mesmo que os EUA estariam mesmo a preparar uma “ação sangrenta” na Ucrânia no final de 2022.

“Abandonaram acordos fundamentais unilateralmente, nomeadamente sobre o desarmamento nuclear, e fizeram isso por algum motivo”, disse Putin. “Finalmente, em dezembro de 2021, nós enviámos aos EUA e à NATO um projeto de tratado sobre a garantia de segurança, onde estavam os princípios fundamentais para nós, e recebemos um ‘não’ direto.”

“Ficou claro que eles não iriam parar as suas intenções agressivas. Aumentava a tensão e as informações mostravam que em 2022, no final, estava preparada uma ação sangrenta na Ucrânia. Nomeadamente, com emprego de aviação”, disse Putin, sem especificar a que se estava a referir, mas acusando os EUA de violar os “princípios do direito internacional”.

“Quero sublinhar: foram eles que desencadearam a guerra. Nós utilizámos a força para fazer parar a guerra”, salientou ainda Putin, acusando o Ocidente de continuar a alimentar uma “corrente de dinheiro para a guerra“, enquanto apregoa o “combate à pobreza e a luta pela ecologia”.

Mais: para Putin, o que se passa é que os EUA querem fazer esquecer as guerras começadas por Washington. Afirmando que as guerras causadas pelos EUA nos últimos 10 anos causaram 38 milhões de refugiados, Putin sublinhou: “Eles querem que a Humanidade esqueça esses crimes dos EUA. Mas nós não vamos esquecer.”

“Querem, em vez da democracia, impor o totalitarismo neoliberal. Insultam os dirigentes de outros países a fim de encobrir os seus problemas de corrupção. E as contradições sociais e económicas dentro do país”, acrescentou Vladimir Putin.

Reiterando as já repetidas comparações entre o Ocidente e Hitler, Putin acusou os EUA e a Europa de “russofobia” e “nacionalismo” e disse que, para cumprir os seus objetivos, o Ocidente se alia a “terroristas, neonazis, seja o que for“. “O povo da Ucrânia é refém do regime de Kiev e dos donos ocidentais, que na prática ocuparam a Ucrânia do ponto de vista militar e económico”, disse ainda.

“Destruíram a indústria ucraniana, provocaram a degradação social e a pobreza na Ucrânia e claro que criaram um lugar para retirar recursos para a guerra. Agora, fazem das pessoas carne para canhão”, acrescentou Putin. “A responsabilidade pelo conflito na Ucrânia é toda dos líderes ocidentais e do regime de Kiev, ao qual o povo russo é alheio.

O Presidente russo não terminaria o discurso sem ameaças mais ou menos veladas à Europa. “Não vou agora analisar os planos da Europa para inverter o curso da guerra”, disse, embora acrescentando de seguida: “Quanto mais forem utilizadas armas de longo alcance, mais nós avançaremos para garantir a segurança da Rússia.”

“Eles querem a derrota estratégica da Rússia. Ou seja, querem acabar connosco de uma vez por todas. Eles querem passar de um conflito local para global. Claro que nós estamos prontos e vamos reagir como é devido. Trata-se da existência do nosso país”, acrescentou.

Vladimir Putin criticou também a “depravação” dos valores ocidentais — outro dos argumentos várias vezes invocados por Putin para justificar a defesa das tradições russas e da fé cristã com recurso à força. “Querem obrigar os sacerdotes a abençoar casamentos homossexuais”, escandalizou-se Putin.

“Nós não vamos ingerir-nos na vida das pessoas, mas olhem para a Bíblia: lá está tudo escrito. Nomeadamente, que a família é a união de um homem e de uma mulher, com filhos. Estes textos sagrados são agora postos em dúvida”, disse ainda.

“A Igreja Anglicana discute agora qual será o género de Deus. Milhões de pessoas veem que estão a ser conduzidas para uma catástrofe espiritual. Nós devemos defender as nossas crenças e vamos fazer isso. Vamos defendê-los da degradação e da depravação“, acrescentou.

O discurso interno para pacificar os russos

Após uma longa parte do discurso apontada diretamente ao Ocidente, Vladimir Putin voltou-se para dentro e alongou-se numa intervenção sobre a realidade interna da Rússia. De modo geral, o tom foi de tentativa de pacificar os russos com a necessidade de conflito: elogios aos heróis, ameaças aos traidores, garantias de que a economia está saudável apesar das sanções ocidentais e anúncios de projetos rodoviários e ferroviários milionários.

“O nosso povo multinacional, a esmagadora maioria absoluta da nossa população, tem uma opinião clara em relação à operação militar: apoiar as nossas ações”, disse Putin, sublinhando que foi possível ver, nos últimos meses, o “verdadeiro patriotismo, sentimento inerente na história do povo russo“, ou seja, “a consciência profunda de cada um da indivisibilidade entre ele e o destino do país”.

Numa longa lista de agradecimentos àqueles que considera serem os heróis russos, Putin deixou também “uma palavra particular para os habitantes de Lugansk e Donetsk: vós próprios definistes o vosso destino. Fizeram uma opção firme, não obstante a pressão dos neonazis. Vós quereis estar com o vosso povo, a vossa pátria.”

No discurso, Putin pediu um momento de silêncio pelos russos que morreram em combate e propôs ao Parlamento a criação de um “fundo estatal” para ajudar as famílias dos soldados que morreram e os veteranos. Comparando os heróis aos soldados soviéticos da II Guerra Mundial, Putin disse que a Rússia vai apoiar “os familiares daqueles que combateram pela Rússia”.

Os familiares deverão ser alvo de preocupação especial das autoridades“, disse.

Além do apoio aos veteranos, que comparou às atuais estruturas para ajudar veteranos da II Guerra Mundial e de outros conflitos, Vladimir Putin propôs também que todos os soldados possam ter 14 dias de férias para poderem visitar a família, devido à “enorme pressão psicológica” que os militares sofrem.

Vladimir Putin procurou também deixar garantias aos russos de que a economia do país está saudável. Criticando o Ocidente pelas sanções — cujo objetivo é “obrigar os nossos cidadãos a sofrer” —, Putin destacou que o governo russo tem em curso planos que estão a garantir o “desenvolvimento económico” e a impedir o desemprego. Além disso, as parcerias com “países amigos” têm permitido que o rublo não perca valor e que a Rússia se torne independente do euro e do dólar.

Antes da pandemia tínhamos 4,7% de desempregados, agora temos 3,7%. É um mínimo histórico. A economia da Rússia superou os obstáculos”, destacou Putin.

Ainda assim, Putin reconheceu que as sanções tiveram impacto na Rússia — mas que o país deve ver aí uma oportunidade. A Rússia tem de aproveitar “os nichos deixados pela saída das empresas estrangeiras”, disse, falando ainda em planos para projetos para a construção de novas infraestruturas rodoviárias, ferroviárias e marítimas da Rússia, aumentando as ligações com países do Médio Oriente, Ásia central e China.

Numa tentativa de demonstrar que as sanções ocidentais causaram mais danos no Ocidente do que na Rússia, Putin disse que a inflação na Rússia está entre os 4% e os 5% — enquanto, na União Europeia, há países com inflações de 17%, 20%, 12%. A Rússia “não precisa de pedir dinheiro”, salientou o Presidente russo.

Mas precisa, acrescentou, dos seus empresários. Putin aproveitou parte do discurso para falar aos empresários russos que são alvo de sanções ocidentais e para lhes dizer que devem voltar à sua “pátria”.

Não devem humilhar-se a andar a pedir de mão estendida o seu dinheiro”, disse Putin. “Invistam na Rússia. Apresentem novos projetos. Aumentem o emprego. Assim aumentarão os vossos capitais e receberam o agradecimento dos cidadãos no futuro.”

“Cada um pode escolher. Viver até ao fim da vida num palácio que está preso pelas autoridades e o dinheiro também está preso nos bancos”, acrescentou. “Para o Ocidente, essas pessoas foram sempre pessoas estranhas, com que se pode fazer tudo.

“Mas há outra escolha: viver na sua pátria, trabalhar para os seus concidadãos. Nós temos muitos desses empresários e é desses que vai depender o futuro. O futuro só pode ter lugar no seu próprio país”, disse ainda, num discurso em que promoveu o regresso a modelos soviéticos da sociedade, incluindo no que toca à educação, e anunciou mais financiamento para a reconstrução de escolas.

A ameaça nuclear no fim do discurso

Vladimir Putin guardou para o final do discurso o anúncio mais duro: a suspensão da participação russa no acordo nuclear New START, um acordo assinado entre Rússia e EUA em 2010 que prevê a redução em cerca de metade das armas nucleares estratégicas, e que era o último grande acordo nuclear entre Rússia e EUA que ainda se mantinha de pé.

Na verdade, as autoridades norte-americanas já tinham dado conta de que o tratado não estava a ser cumprido por parte da Rússia. Mas Vladimir Putin diz que é um “delírio” exigir o seu cumprimento.

Putin destacou que a Rússia não abandona o acordo, mas suspende a sua participação “até compreendermos o que é que querem a NATO, a Grã-Bretanha e a França”.

“No início de fevereiro deste ano houve uma declaração da NATO exigindo da Rússia voltar ao cumprimento do acordo sobre armas nucleares estratégicas de médio alcance. O Ocidente está envolvido, com o regime de Kiev, no bombardeamento de alvos militares russos a médio alcance. Nas condições atuais, isso é pura e simplesmente um delírio pedir o respeito desse acordo”, disse.

“A NATO apostou em ser participante do acordo de redução dos sistemas estratégicos ofensivos. Isso é bom, se a NATO quiser fazer isso. Porque não só os EUA têm arsenais nucleares, mas a Grã-Bretanha e a França também têm, desenvolvem, aperfeiçoam, e também estão contra a Rússia”, apontou ainda.

“O acordo sobre o limite dos armamentos estratégicos foi assinado com os EUA numa situação completamente diferente e servia para reforçar a confiança entre ambos”, numa altura em que “a Rússia e os EUA não se consideravam inimigos”.

Mas, agora, tudo mudou. “O tratado de 2010 era fundamental, porque previa a indivisibilidade da segurança, mas isso foi tudo esquecido. Os EUA saíram do acordo de defesa anti-míssil, as nossas relações degradaram-se”, disse Putin. “Isso é culpa dos EUA. São eles, depois da União Soviética, que começaram a rever os resultados da II Guerra Mundial e a tentar impor um sistema de um senhor só.”

Vladimir Putin não escondeu, ainda, a possibilidade de testar armas nucleares. “Temos que ver todo o conjunto de armamentos da NATO”, disse. “Se a NATO quer entrar nestas conversações, vamos a isso.”

“Sabemos que o prazo de validade de algumas munições nucleares está a chegar ao fim e por isso alguns pensam fazer testes naturais de armas”, acrescentou. “A Rússia deve estar preparada para testar armas nucleares. Se os EUA fizerem testes, ninguém deve ter dúvidas de que isso irá destruir a paridade existente.”