O bispo auxiliar de Braga, D. Nuno Almeida, defendeu esta segunda-feira que os bispos católicos têm autoridade para afastar preventivamente os sacerdotes sobre os quais recaia uma suspeita de abuso sexual, contrariando o que tinha sido dito no domingo pelo cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, que considerou que afastar um padre das funções “não é uma coisa que um bispo possa fazer por si”, mas apenas a “Santa Sé”.

Num texto publicado no site da arquidiocese de Braga, D. Nuno Almeida começa por citar o Papa Francisco, afirmando que “pedir perdão é necessário, mas não é suficiente”, e considera que “é preciso pôr em prática, sem hesitação“, as normas internas da Igreja Católica para lidar com suspeitas de abuso — e que incluem a possibilidade de suspender preventivamente os suspeitos. O manual de instruções do Vaticano para casos de abusos prevê, sublinha o bispo auxiliar de Braga, a possibilidade de serem tomadas “medidas de tipo administrativo contra a pessoa denunciada”, entre as quais “o afastamento ou proibição de exercício do ministério”.

O texto de D. Nuno Almeida surge após um fim de semana de duras críticas à Igreja Católica pela reação tímida ao relatório da comissão independente que, ao longo do último ano, investigou o fenómeno dos abusos de crianças na Igreja em Portugal. O relatório dá conta de 512 testemunhos válidos, que permitiram estimar um universo de 4.815 vítimas potenciais entre 1950 e 2022. A comissão entregou também aos bispos portugueses a lista dos alegados abusadores ainda no ativo em funções na Igreja.

Na última sexta-feira, depois de uma reunião plenária dos bispos portugueses em Fátima, o presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, deu uma conferência de imprensa em que insistiu particularmente nas limitações da informação que chegou à Igreja da parte da comissão: sublinhando que os bispos apenas receberam uma “lista de nomes” de alegados abusadores, Ornelas salientou que, sem mais informações, incluindo as identidades das vítimas (a maioria das quais testemunhou de forma anónima), era “muito difícil” investigar os abusos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Depois de lerem relatório sobre abusos na Igreja, bispos propõem cinco medidas — mas avisam que há limitações à investigação dos abusadores

No fim de semana, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, reiterou esta ideia em declarações aos jornalistas na Sé de Lisboa. “Aquilo que nos foi entregue pela Comissão Independente foi uma lista de nomes. Se essa lista de nomes for preenchida por factos, tanto nós como as autoridades civis podemos atuar”, disse. Questionado sobre a possibilidade de afastar das suas funções os padres sobre os quais recaiam suspeitas, afirmou que os bispos não têm esse poder: “Essa é uma pena muito grave, é a mais grave que a Santa Sé poderá dar e é a Santa Sé que a poderá dar (…). Não é uma coisa que um bispo possa fazer por si.

Manuel Clemente afasta suspensão de padres sem “factos comprovados”

A reação da Igreja mereceu várias críticas, não apenas por parte da sociedade civil, mas também da parte da própria comissão independente. O psiquiatra Daniel Sampaio, um dos elementos da comissão, disse à Agência Lusa que aquilo que os bispos tinham dito não era verdade.

Não é verdade que é só uma lista de nomes“, afirmou. “A lista foi obtida a partir das denúncias de vítimas em que a vítima X diz que foi abusada pelo padre Y e da investigação resultante do Grupo de Investigação Histórica junto dos arquivos. E a lista que foi entregue resulta da junção destas duas.”

Daniel Sampaio nega que Igreja tenha lista de nomes de padres abusadores sem mais dados

Garantindo que “cada nome é do conhecimento das dioceses“, Daniel Sampaio disse também que a postura dos bispos representa um “atrasar do problema” e que “quando o cardeal-patriarca diz que a Igreja não tem dados não é verdade”.

Agora, o bispo auxiliar de Braga vem também garantir que os bispos têm o poder e em muitos casos o dever de afastar os sacerdotes suspeitos. D. Nuno Almeida, que já no ano passado se tinha posicionado contra a “conspiração do silêncio” sobre os abusos de crianças dentro da Igreja (uma declaração elogiada pela comissão independente como “a mais importante” da parte da Igreja), explica que o primeiro passo que os bispos têm de dar, agora que têm a lista dos alegados abusadores nas mãos, é “pôr em prática, sem hesitação, o que consta nos números 9 a 31 do Vademecum” — ou seja, do manual de instruções do Vaticano para estes casos.

Abusos. “Não podemos tolerar conspiração do silêncio”, diz bispo auxiliar de Braga. Comissão elogia “a mais importante” declaração da Igreja

Nesse documento, diz-se “que o Bispo deve acolher, analisar, avaliar e aprofundar, com a devida atenção, todas as denúncias, independentemente da forma ou do canal utilizado”.

“Deverá dar todo o apoio e proteção possíveis às vítimas e retirar as consequências necessárias, nomeadamente, segundo o n. 20: tomar medidas de tipo administrativo contra a pessoa denunciada, que poderão LEVAR A LIMITAÇÕES NO MINISTÉRIO“, escreve ainda D. Nuno Almeida, colocando esta última expressão integralmente em maiúsculas.

Ir à polícia e investigar todas as denúncias (até duvidosas), menos na confissão. O manual do Vaticano para responder aos abusos sexuais

Mais à frente, o bispo volta a insistir: “A Igreja poderá ou deverá ter de retirar o agressor identificado da atividade pastoral (Vademecum n. 58 a 65: trata-se de ‘MEDIDAS CAUTELARES’ que PODEM INCLUIR O AFASTAMENTO OU PROIBIÇÃO DE EXERCÍCIO DO MINISTÉRIO enquanto decorre a ‘investigação prévia’, ou após a sua conclusão. A medida cautelar não é uma pena, pois as penas só se impõem no final de um processo penal, mas um ato administrativo. Tudo isto deve ser bem esclarecido ao interessado, para evitar que ele pense ter sido julgado ou punido antes do tempo). Mas a Igreja não deve abandonar o presumível agressor, porque a ‘redenção é sempre possível’, embora só com a ‘admissão da culpa’ por parte do alegado criminoso.”

No texto publicado esta segunda-feira, D. Nuno Almeida destaca também que, “além da disponibilidade, por parte das Comissões Diocesanas, para acolher e acompanhar as vítimas, urge disponibilizar pessoas e programas para acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, bem como de acompanhamento espiritual e de reconciliação para as vítimas que o desejarem”.

O bispo auxiliar de Braga sustenta também que é preciso aprofundar a cooperação entre comissões diocesanas e sugere também que “poderá ser conveniente que uma denúncia seja apresentada e recebida noutra diocese”. D. Nuno Almeida pede ainda que a Igreja abra “um canal de comunicação com o Ministério Público ou Polícia Judiciária” e encontre “formas de colaboração com a APAV” a nível nacional.

“Ainda não temos programas de acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, de acompanhamento espiritual e de reconciliação nem para as vítimas nem para abusadores. Há que estudar as boas práticas de outros países e avançar também em Portugal com percursos de cura e reconciliação”, destaca o bispo, sublinhando que é fundamental não abandonar os agressores.

“O primado é o da justiça, como defendia Bento XVI e agora o Papa Francisco, mas nunca pondo de lado a oferta de redenção, de perdão, reconciliação e cura”, diz o bispo.

“É preciso reforçar uma nova consciência sobre o poder de cada um para saber ouvir e ler os sinais de alerta, pois não é possível manter a impunidade nem o silêncio. Que estes dias duros que vivemos, de via purgativa, de estrada penitencial, nos levem a caminhos novos em ordem a comunidades cristãs sãs e seguras, conscientes de que não pode continuar a haver vítimas, agressores e encobridores”, termina D. Nuno Almeida.