À consciência, talvez Zeno a tenha, mas nós não. A Consciência de Zeno é um dos livros definidores da ficção contemporânea, mas talvez seja, das grandes alavancas literárias, uma das mais discretas. Se a maior parte dos leitores sabe que deve os códigos da escrita contemporânea a Joyce ou a Faulkner, já a consciência de que estes se devem também a Italo Svevo e à sua Consciência de Zeno nos parece mais rara.

No entanto, este é um dos livros mais interessantes do princípio do Modernismo, não só pelo que anuncia, mas por aquilo que acabou esquecido. Zeno não tem aquele arrojo formal de Virginia Woolf ou de Ulysses; do ponto de vista estilístico, é um romance contido, e mesmo a sua estrutura mais relaxada está próxima dos Cadernos de Malte Laurids Brigge ou do Livro do Desassossego. Não chega, aliás, ao grau de indiferença pelo enredo que estes livros revelam: é, claramente, um livro desta tradição psicológica, mais interessada em contar um carácter, uma mente, do que uma história, mas não arrisca sequer perceber quais são os limites da abstração enquanto matéria ficcional. Em toda a matéria formal, em tudo o que diz respeito ao arrojo, à originalidade mais visível, A Consciência de Zeno é mais um anúncio do que uma concretização.

Se traçarmos a genealogia da literatura, conseguimos perceber que A Consciência de Zeno prepara o leitor para os romances sobre a forma, que demonstra a possibilidade de expurgarmos o romance das futilidades mais burguesinhas e que toca as monomanias, as psicopatologias escondidas, o potencial romanesco do material psicanalítico, a análise filosófica assistemática e todo este caos teórico que o romance contemporâneo abarca; no entanto, se o livro se resumisse a este papel de João Baptista de Cristos muito mais vistosos, mereceria um lugar na história, mas não na literatura. Seria importante para quem quisesse saber como se chegou ao grande romance do século XX, mas não mereceria ser lido: para isso, mais valia ler aqueles que cumpriram o anúncio.


Título: “A Consciência de Zeno”
Autor: Italo Svevo
Tradução: Ana Cláudia Santos

Editora: Penguin Clássicos
Páginas: 464

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Acontece que há, nestas memórias de Zeno, de um velho burguês que não consegue deixar de fumar e que concentra toda a atividade da sua vida na tentativa de abandonar o vício, uma confluência de tradições que tornam o romance muito mais do que um prólogo ao melhor modernismo. O romance de engano não é uma novidade de Svevo. Há, em O gato Murr, o famoso duplo prefácio em que a segunda prosa desdiz a primeira. Kierkegaard tem o seu jogo de autorias contraditórias, de tal modo que a evidência de que a ficção é ficção, de que não se trata de uma transparência da realidade, não se deve a Svevo. Ainda assim, aquilo que este faz em A Consciência de Zeno é elevar esta arte a um patamar difícil de atingir e – sobretudo – a um patamar que, depois, tantas vezes se julgou ultrapassado sem que fosse sequer tocado.

O livro começa com uma advertência do psicanalista de Zeno, em que este explica que não se pode acreditar em tudo o que este diz. Há muita coisa inventada e muita coisa distorcida. Desta ideia, o mundo do romance contemporâneo aquele perspetivismo cubista que se revela na paixão por ter vários narradores da mesma cena, numa alteração constante de perspetiva. Isto, contudo, só de uma maneira muito marginal tem o alcance de Zeno. Quando o romancista contemporâneo sobrepõe perspetivas diferentes sobre o mesmo assunto, o que está a criar é uma espécie de ponto de vista total, numa ilusão democrática de que pela soma de ângulos se consegue uma verdade mais aprofundada sobre um assunto.

O que o prefácio às memórias de Zeno nos dá é diferente: é não só a consciência de que este ponto de vista total não vai ser alcançado, mas também de que não sabemos em que é que o ponto de vista que nos é dado é falso. Isto é, dizer que há algumas mentiras equivale obriga-nos a desconfiar de todo o texto, porque não temos maneira de perceber aquilo que é verdade ou não. Ao mesmo tempo, sabemos que nem tudo é mentira, o que nos põe numa posição de incerteza permanente em relação à personagem. Note-se que o importante não é saber se o facto concreto é mentira ou verdade. Pouco importa que Zeno tenha embriagado a empregada da casa de repouso – afinal, é apenas ficção. Contudo, é essencial para a avaliação do seu carácter sabermos se está a inventar a história ou não. Mesmo um carácter ficcional só pode ser percebido diante de um certo grau de certeza. Zeno é sobretudo um aldrabão ou um homem arrojado? Admirou sinceramente o seu sogro e mostra-nos candidamente o mau carácter deste, ou é capaz de uma perfídia mais elaborada e mostra habilidosamente este carácter?

A maneira como Svevo gere o engano em A Consciência de Zeno é um dos traços mais interessantes do romance e aquilo que faz dele uma verdadeira obra aberta, no sentido que lhe dá Eco. Poucos livros podem ter ao mesmo tempo um sentido tão claro e estarem tão abertos a uma diferença radical de interpretação como este Zeno, precisamente porque, com duas ou três frases assassinas, o grau de verdade do livro é minado de alto a baixo.

É também interessante que, neste aspeto, o livro de Svevo funcione como uma espécie de contra-modernismo. Toda a ideia do fluxo de consciência, da focagem interior, está relacionada com uma aproximação a um método mais preciso de captar o modo como a perceção funciona. Nós não pensamos narrativamente, em acontecimentos lineares, e a simultaneidade do estilo de Eliot ou de Joyce revela isto mesmo. Ora, o livro de Svevo não é um livro de aproximação à verdade mas de afastamento dela, e isto torna-o mais interessante quando tentamos integrá-lo na estrutura de perceção modernista. Isto é, podemos ver Zeno como o avesso do método de Joyce, mas também podemos integrar este avesso nesse método.

É possível que, dentro da nossa perceção, coabitem estas zonas de vazio, em que não sabemos aquilo que é verdade e aquilo que não é. É até possível que, em certas instâncias, consigamos olhar para um livro como se isso não importasse. E é, ainda, possível que, para montarmos uma consciência de alguma coisa, precisemos de elementos não verdadeiros. Isto é, podemos não saber o que é verdade e o que não é nas memórias de Zeno, mas não precisamos da distinção entre uma coisa e outra para chegar a uma ideia de quem é Zeno. Esta intromissão do falso no nosso ponto de vista é, assim, um lado estranho e perturbador da experiência que Svevo apanha com particular inteligência..

Tudo isto, porém, diz apenas respeito a um lado estrutural de A Consciência de Zeno. Isto é, seria possível conseguir ter este artifício teórico e não passar de uma boa ideia para um romance, sem com isso fazer um romance interessante. O mundo particular de Zeno, contudo, é tão sagaz como a sua estrutura. Na luta de Zeno contra o fumo, Svevo não é moderno, é universal. A descrição de uma consciência fraca, as quedas constantes, o diabólico jogo dialético que inventa razões para ceder, os vários estágios do vício, com humores tão diferentes e tão descontrolados, a solidão de uma alma presa, tudo isto tem no livro uma clareza e um alcance, é de tal modo completo, transparente e preciso, que A Consciência de Zeno não precisava de ser um livro vanguardista para ser interessante. As misérias de um homem preso por si próprio àquilo que não quer não são novas, mas são sempre únicas e parecem sempre mais fortes a quem as sofre. Svevo soube captar essa força, e isso faz do livro mais do que um anúncio da modernidade – faz dele uma confirmação das misérias que vêm do princípio dos tempos.