“Como é que ele se transformou nisto?”, pergunta Abbas Gallyamov, cientista político que lidou de perto com Vladimir Putin, escrevia discursos para o Presidente russo mas agora, no exílio, acaba de ser colocado na lista dos “mais procurados” pelas autoridades russas. O politólogo deu várias entrevistas à imprensa internacional nos últimos meses, o que terá levado a que tenha sido colocado na mira da justiça.

A acusação que é feita a Gallyamov é que “distribuiu conteúdos criados por agentes estrangeiros, a um círculo ilimitado de pessoas, assumiu posições contra a operação militar especial na Ucrânia e colaborou, enquanto especialista, com plataformas de informação patrocinadas por estruturas estrangeiras”. Ao telefone com a Associated Press, Gallyamov, que vive fora da Rússia, diz que apenas soube pelas notícias que tinha sido posto na lista dos “mais procurados” – não foi contactado por qualquer entidade policial ou judiciária.

“Presumo que, formalmente, será uma acusação de crime por desacreditar as forças militares. [Essa acusação] está a ser usada contra qualquer pessoa que recuse amplificar a propaganda do Kremlin e tente fazer uma análise objetiva e imparcial do que se está a passar”, afirma o cientista político, citado pela Associated Press. “É uma estratégia de intimidação”, acrescenta.

Poucos dias antes de se saber que tinha sido colocado na lista dos mais procurados, Abbas Gallyamov deu (mais) uma entrevista a um órgão de comunicação – a RadioFreeEurope/RadioLiberty – onde recordou os tempos em que trabalhou na equipa que escrevia os discursos de Putin (na altura, entre 2008 e 2012, o atual Presidente era primeiro-ministro, com Dmitrii Medvedev na Presidência).

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Gallyamov não interagia muito diretamente com Putin – apenas o líder da equipa de assessores estava autorizado a falar pessoalmente com ele – mas, “sim, via-o muitas vezes, estava presente nas reuniões, tanto reuniões públicas como não públicas, e por vezes estávamos só ali algumas pessoas presentes na reunião, à porta fechada”. “Quando a guerra começou, perguntei-me a mim próprio muitas vezes, como é que este homem, que eu conheci há tantos anos, como é que ele se transformou naquilo que é agora?”, confessa Abbas Gallyamov.

Abbas Gallyamov vive fora da Rússia, sobretudo em Israel, há vários anos.

Gallayamov recorda que Putin “era um homem que sabia colocar questões, era um bom gestor, muito racional, muito lógico – ninguém poderia imaginar que ele um dia faria o que está a fazer agora”. O cientista político de 50 anos trabalhou para o Presidente russo entre 2008 e 2010, embora tenha deixado o serviço público após a anexação da península da Crimeia, em 2014.

Naqueles anos, no final da década de 2000, quando este cientista político trabalhou perto de Putin, “ele era muito cuidadoso em não pressionar as pessoas quando estava a ouvir as suas respostas – porque quando se é um chefão e se expressa a sua opinião, depois todas as outras pessoas tendem a alinhar-se com essa opinião, em vez de transmitirem a sua visão das coisas”.

Uma possível explicação que Gallyamov encontra para a “transformação” que diz ter havido em Putin é que “naquela altura ele estava a trabalhar em matérias importantes mas não existenciais – não eram coisas das quais a sua vida política dependesse, não eram coisas como a suspeita de que a NATO possa estar a querer derrubá-lo, por exemplo”. “Ou seja, naquela altura ele não estava a enfrentar [o que Putin acreditará serem] ataques pessoais contra ele”, diz o cientista político.

E a razão por que Gallyamov suspeita que essa possa ser a diferença entre o então e o agora é que “mesmo naquela altura, quando alguém o culpava por alguma coisa que pudesse ter feito erradamente, ele rapidamente se transformava em alguém totalmente irracional e emotivo“. “Ele preocupa-se muito com a demonstração da sua força, é o seu fetiche, não se consegue imaginar a passar uma imagem de fraco”, afirma o seu antigo assessor.